quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Quatro olhos, seis dedos

Míriam Santini de Abreu

Ultimamente estou a pensar no quanto as nossas anormalidades, os nossos defeitos, definem quem somos. Eu nasci com um dedo a mais na mão direita e, ao sete anos, já tinha sete graus de miopia. Hoje são 21 graus em cada olho, mais uns três de astigmatismo que o tipo de lente de contato que posso usar não corrige. Os dois fatos marcaram a minha infância.
Na escola, eu sempre era a menor da turma, com raras exceções. E estava sempre com o uniforme azul e branco da escola, as horríveis congas, um casaco de pêlos na gola e nas mangas e o tenebroso óculos com lente de fundo de garrafa. Eu detestava o casaco, mas era o único que havia. Mas detestava ainda mais o óculos.
O pai e a mãe podiam comprar a lente, mas não o aro. Então a mãe ia até o antigo INAMPS, onde havia aros doados, e trazia para casa o melhor que encontrava. Uma vez, apareceu com um modelo horrível, com os cantos puxados: - Óculos de gatinha, minha filha!
Ai, como eu sofria! Era vítima freqüente do que hoje chamam de bullying, por causa dos “quatro olhos” e dos seis dedos, o sexto retirado ainda na infância, mas com cicatriz visível. E de nada adiantava chegar em casa e choramingar. A mãe, às voltas com a rotina e as costuras para ajudar a sustentar os três filhos, respondia: - Resolve, minha filha! E eu resolvia. No tapa. Uma das brigas memoráveis foi no beco lá de casa. Eu e outra menina, depois e ainda hoje grande amiga, nos atracamos, rolamos no chão, pastas escolares voando no meio da refrega, o corpo e a roupa empoeirados, as duas aos berros. Como éramos endiabradas!
Há algum tempo vi o documentário “Janela da Alma”, de João Jardim e Walter Carvalho (disponível em http://video.google.com/videoplay?docid=1046435147561692538). Como me identifiquei com os depoimentos! Um dos entrevistados circula de carro na cidade, e vê as luzes da forma como vejo, bolas gigantes, coloridas e desfocadas. O escritor João Ubaldo revela que nunca teve problemas com seus óculos, a não ser quando alguma companheira de cama pedia que ele os tirasse na hora de fazer sexo: - Eu as achava degeneradas! – diz o escritor. É vero... Não se pede tal coisa a um míope de alto grau. Nudez de vista, nem pensar.
Um dos meus constrangimentos memoráveis aconteceu justamente no consultório de um velho oftalmologista lá de Caxias do Sul. Eu fazia aquele teste de tentar ler as letras e números dentro de um círculo de luz, mas não via absolutamente nada, por mais que ele aumentasse o tamanho dos caracteres. Suava frio!
- Mas então tu tá cega! – exclamou ele.
Eu, de tão nervosa, olhei para cima, e lá estavam as letras e números. Enormes. O problema foi que antes eu tentava enxergá-los no abajur, uma bola redonda em cima da mesa do consultório!
- Ai, doutor, começa de novo – eu pedi, sem coragem de revelar a verdade.
Outra característica do míope de alto grau é a visão microscópica de perto. Sem óculos ou lentes, a gente consegue ver os poros da pele, os pigmentos de tinta de uma letra em um papel, a veia mais sutil de uma folha. O mundo se revela em detalhes que a visão normal não consegue perceber.
A Jeane, colega de trabalho, me mostrou um livro que o filho dela adora, intitulado “Um Garoto Chamado Rorbeto”, escrito por Gabriel O Pensador, que fala de um menino que tem seis dedos na mão direita. Eu li, deliciada, a história, e fiquei com uma saudade do meu dedinho!

Um comentário:

Anônimo disse...

Se tu escreves assim com dez dedos, imagine com 11. Serias 10 porcento melhor. Cesoca.