sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Polícia catarinense prende líderes do MST em “ação preventiva”


Um dos coordenadores estaduais do MST em Santa Catarina, Altair Lavratti, foi preso na noite desta quinta-feira em Imbituba numa ação que lembra os piores momentos de um estado de exceção. Com uma força de mais de 30 policiais militares, a prisão foi efetuada no momento em que ele realizava uma reunião pública, num galpão de reciclagem de lixo da cidade. A acusação é de que Lavratti, junto com outros sindicalistas e militantes sociais preparava uma ocupação de terras na região. Foi levado sob a alegação de “formação de quadrilha”.

Segundo informações divulgadas no jornal Diário Catarinense, que estava “magicamente” no ato da prisão ao lado da polícia, os integrantes do MST estavam sendo monitorados desde novembro depois que um integrante do Conselho de Segurança Comunitária de Imbituba passou informações sobre a organização de uma suposta ocupação em terras do estado. Outras duas pessoas também foram presas, sendo que uma delas, Marlene Borges, presidente da Associação Comunitária Rural, está grávida. Ela teve a casa cercada na madrugada de sexta-feira e foi levada para Criciúma. Outro militante, Rui Fernando da Silva Junior, foi levado para a cidade de Laguna.

Integrantes do MST, advogados e um deputado estadual estiveram procurando por Lavratti durante a noite toda, mas não haviam conseguido contato até a manhã de sexta-feira, quando souberam que de Imbituba ele havia sido levado para Tubarão.

Ainda segundo informações da polícia, o juiz Fernando Seara Hinckel autorizou gravações telefônicas e determinou a intervenção do Ministério Público. Também teria havido a participação de P-2 (policiais a paisana, disfarçados) infiltrados nas reuniões dos militantes sociais da região de Imbituba.

Usando de um artifício já usado contra o Movimento dos Atingidos das Barragens, que foi o de prender “preventivamente” integrantes do movimento alegando “suspeita de invasão”, o poder repressivo de Santa Catarina repete a dose agora contra o MST. Para a polícia e para o poder público, reuniões que envolvam sindicalistas e lutadores sociais passam a ser “suspeitas” e sendo assim, passíveis de serem interrompidas com prisão. Só para lembrar, este é um tipo de ação agora muito usado nos Estados Unidos, depois de 11 de setembro, quando o presidente George Bush acabou com todas as garantias individuais dos cidadãos. Lá, e agora também aqui, o estado pode considerar suspeita qualquer tipo de reunião que envolva movimentos sociais. Conversar e organizar a luta por uma vida melhor passa a ser coisa de “bandido”.

A acusação de formação de quadrilha não encontra respaldo uma vez que é pública e notória a preocupação do MST com a situação das famílias daquela região, que vem sistematicamente tendo que abandonar a zona rural em função da falta de apoio à agricultura familiar, enquanto o agronegócio recebe generosa ajuda governamental. A reunião na qual estava Lavratti justamente discutia esta situação e levava a solidariedade do movimento às famílias que seguem sendo despejadas de suas terras, ações que fazem parte do cotidiano do MST. A ação do governo se deve ao fato de em Imbituba ter sido criada uma Zona de Processamento e Exportações que tem engolido fatias consideráveis de dinheiro público sendo, portanto, considerada estratégica para os empresários da região.

Para o MST, as prisões foram descabidas, e só reflete a forma autoritária como o governo de Santa Catarina tem conduzido a relação com os movimentos sociais, criminalizando as tentativas dos catarinenses de realizar a luta por uma vida digna. Já para dar respostas aos atingidos pelo desastre em Blumenau, ou aos desabrigados pelas chuvas que tem caído torrencialmente este ano em Santa Catarina, não há a mesma agilidade estatal. Como bem já analisava o sociólogo Manoel Bomfim, no início do século vinte, ao refletir sobre a formação do estado brasileiro: “desde o princípio o Estado foi um aparelho de espoliação e tirania, feroz na opressão, implacável na extorsão. É um parasita”. Sempre aliado aos donos do poder e da riqueza, o Estado abandona as gentes e só existe para o mal do povo. É por conta disso, que, conforme Bomfim, “a revolta contra as autoridades públicas é o processo normal de reclamar justiça” já que as populações são sistematicamente abandonadas pelo Estado e pela Justiça enquanto a minoria predadora dos ricos e poderosos tem seus interesses defendidos, inclusive com o uso do dinheiro e do patrimônio que é de todos.

Como exemplo disso, basta trazer à memória o escândalo da Moeda Verde, quando ricos empresários locais fraudaram laudos ambientais para a construção de grandes empreendimentos na cidade de Florianópolis. Presos sob a luz dos holofotes, não ficaram um dia sequer na cadeia e o governador do Estado segue frequentando suas festas e dizendo ao país inteiro, através da televisão, que os empreendimentos construídos a partir da fraude são os mais bonitos da cidade e necessitam ser conhecidos e consumidos. Outro caso emblemático e atual, que não recebe a mão pesada do poder público, é o que envolve o vice-governador Leonel Pavan, enredado em escândalo de corrupção, e que também muito pouco interesse provoca na mídia. Não precisa ir muito longe para observar que Manoel Bomfim está coberto de razão: “os estadistas devem inquirir das condições sociais, indagar se as populações se sentem mais felizes e as causas dos males que ainda as atormentam, para combatê-las eficazmente”. Mas, em vez disso, lutadores do povo são presos e os direitos coletivos se perdem diante do interesse privado de uma minoria.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Outro fim para Avatar


Por Elaine Tavares - jornalista

Filmes de aventuras míticas me encantam demais. Gosto destas coisas arquetípicas da raça. O bem, o mal, tudo muito claro, sem as nuances da vida real, na qual tudo fica meio misturado e a gente parece não conseguir mais saber quem é o quê. Por isso fui ver Avatar. Vibro com histórias que tecem os temas imemoriais do humano: a cobiça, a coragem, o medo, a inveja, o altruísmo, a covardia, o amor que tudo salva.

E ali, no filme de James Cameron tudo se apresenta, sem claro/escuro, tudo na luz. Um homem perdido, um mundo perfeito, uma cientista boa, um empresário ganancioso, um militar sanguinário. Temas como o meio ambiente, a guerra e a ambição desenfreada permeiam a trama hollywoodiana. Tudo no filme é bonito. A moral da história é absolutamente contemporânea. No mundo dos navy a harmonia é coisa natural entre os seres que vivem. Há a luta pela sobrevivência, mas não há acumulação. Os bichos são caçados, mas não vão para o freezer e a grande mãe é uma árvore, responsável pela ligação simbiótica de tudo o que ali vive. Então, vem o ser humano e sua sede de riqueza. Empresas terráqueas exploram um mineral e vão destruindo o planeta. A vida dos navy está ameaçada. Para completar, há um militar que não vê a hora de empreender a jornada da destruição, desalojando as famílias autóctones. Uma história que bem conhecemos, nós, os latino-americanos.

Então, o homem perdido entra na história. É o herói estadunidense típico. Arrojado, engraçadinho, valente. Ele se transforma num navy a partir de um projeto de criação de avatar. O nome avatar vem do sânscrito e significa, na cultura indiana, a encarnação de uma divindade. É quando um deus ocupa um corpo material. Mas, nos nossos tempos internéticos são esses bonequinhos que as pessoas fazem de si mesmas e que podem viver uma segunda vida num mundo virtual. Pois o soldado mutilado estadunidense passa a viver uma segunda vida como um navy e, é claro, como bem cabe a um filme de aventura, tão logo chega ao mundo deles, se apaixona pela filha daquele que comanda o povo local. Mas o garoto vai mais fundo ainda, ele se enamora também do modo de vida dos navy, passa a compreender o que significa esse equilíbrio da vida e das coisas que vivem. Sua segunda vida passa a ser a primeira.

Então, quando o exército mercenário dos humanos vem destruir o mundo navy, ele, a cientista que o criou e outros amigos assumem um lado na história: o lado dos navy. E aí vem o pecado original do filme: sua mensagem subliminar. Para além do cuidado com a natureza, explícito, para além do ódio que podemos sentir contra o empresário ganancioso ou o general fanático, está a mais verdadeira das verdades: o mundo só pode ser salvo pelo herói que chega de fora, o “soldier”, o “mariner”, o salvador da pátria. Eu, que curti o filme, fico cá pensando com meus botões. Avatar teria sido perfeito se em vez de ser o garoto estadunidense aquele que consegue montar o animal mítico dos navy e salvar o mundo, tivesse sido o herdeiro natural do comando da raça, aquele que era o prometido da princesa navy e que fica apenas como o subalterno. Ele perde a mulher e ainda tem de ver o “que veio de longe” ser aquele que domina a força da natureza do seu povo. O autóctone parece nunca ser capaz de tomar o destino de seu povo nas mãos. Terrível metáfora de todos nós. Pecado de Cameron, explicável até. Ele é estadunidense e deve ter isso marcado na pele.

Eu teria feito diferente. Aceitando o terráqueo que chegou e compreendeu o mundo navy, mas fazendo com que fosse o príncipe navy a ser o que monta a ave mítica. Ele comandaria a ação de defesa do seu mundo. O estadunidense seria apenas um a mais no grande exército navy, o que bem mais sabe das artimanhas terráqueas, o grande trunfo. Mas, certamente o guerreiro navy seria capaz de comandar seu povo, soberano e feliz, ainda que tivesse perdido a amada. Ah, o cinema estadunidense e sua moral redentora! Que pena ser sempre tão igual.

Fico ainda a pensar e me vem à cabeça a grande saga cubana. Havia el Che, o grande trunfo, mas foi Fidel, amparado em Martí (ambos cubanos da gema), quem comandou as gentes rumo a vitória final. Cuba é meu final de Avatar. Nele, não há redenção vinda de fora, há consciência popular e líderes autóctones. Por isso não me importo muito de ir ao cinema e ficar de boa... Porque, ao fim, a vida é real!!! E pelas terras de “nuestra América” caminham os avatares... Cuba, Haiti, Bolívia, Equador, Venezuela...

sábado, 23 de janeiro de 2010

Via Pane: a nova padaria da Pobres

Por Elaine Tavares

Florianópolis é uma cidade feita para ricos. Aqui, as ruas priorizam carros e o transporte coletivo é o pior do sul do país. Caro e ruim. Opções de lazer também quase não existem e ao pobre resta a praia, que tampouco é uma opção barata. Com o ônibus custando 2,50, ir e vir, para uma única pessoa, já custa cinco reais. Se for a família toda, aí a coisa pega. Tudo é difícil para quem não tem dinheiro. Um encontro para o café no final de tarde, então, nem pensar. A gente sai do trabalho, já estressado pensando na maratona de ônibus que vai enfrentar até chegar a casa, e uma paradinha para o café com os amigos é coisa difícil de fazer porque os preços estão pela hora da morte. As confeitarias tiram o escalpo e um café chega a custar três reais, com um pão de queijo, já se vão seis reais. Nas livrarias chiques, tudo é bonito, há paz, mas os comes são caros. Aí não dá. As lanchonetes mais baratas são tumultuosas e a gente tem de comer em pé. Não há condições. A hora é de relaxar.

E foi na busca de um lugar barato para tomar café no fim da tarde que nós, “as pobres”, encontramos a Padaria Brasília. É uma padaria que fica bem em frente a Praça XV, tem bastante movimento de gente, lugar para sentar e um café mais um pão com manteiga ficam por 1,50. Perfeito. Enfim, tínhamos um lugar. E essa padaria acabou sendo nosso referencial para os finais de tarde. Passeatas, greves, protestos e passeios, tudo acabava ali, onde as atendentes, apesar de lentas, eram simpáticas e já conhecidas. Até a Pobres e Nojentas nasceu ali, naquelas mesas entre farelos de pão bem quentinho.

Pois um belo dia, tudo ruiu. Voltávamos de uma grande mobilização de trabalhadores que havia fechado a ponte e causado um grande engarrafamento na cidade. Tudo já tinha acabado e decidimos tomar café, para comemorar, e esperar acabar a confusão do trânsito para voltarmos para casa. Lá fomos nós para a Padaria Brasília. Desfrutávamos nosso café com pão, e falávamos excitadas, sobre a grande manifestação. Estávamos felizes, havia muito tempo não tínhamos tantos nas ruas, mobilizados e em luta. Então , um homem que estava na mesa ao lado começou a gritar com a gente. Estava indignado com o fato de não ter podido sair da cidade. Era de Tubarão e queria ir embora. Ficou trancado na cidade por conta do fechamento da ponte. A gente tentou conversar, explicar os motivos dos trabalhadores estarem mobilizados, mostrar que ninguém gosta de trancar a ponte e apanhar da polícia. A gente faz isso para ser visto, ouvido, para reivindicar, quando ninguém mais nos escuta. Nada adiantou, o cara foi se alterando e já estava quase partindo para a porrada.

Foi quando chegou a dona da padaria e passou a dar razão a ele. Basicamente a mulher estava nos enxotando. Não importava que fôssemos suas clientes de anos, que vivêssemos fazendo propaganda do seu café com pão, que a tivéssemos quase como uma velha amiga. Aflorou ali o seu pensar político. Ela também era contra as manifestações, os trabalhadores em luta e tudo mais. Ela também nos achava um bando de vagabundo, baderneiro e tudo mais que os conservadores pensam de gente que precisa lutar para poder viver. Foi o fim. Saímos dali perplexas, chocadas, ainda ouvindo os gritos do homem. Acabava-se o sonho da padaria Brasília. Nunca mais poríamos o pé ali. Foram anos e anos de convivência quase diária e acabava assim, numa descoberta infeliz. A mulher dera razão a um cara lá de Tubarão, que nunca tinha entrado na padaria, que só tinha entrado ali para esperar a ponte abrir. A mulher era contra as lutas. Era contra nós. Pois ela nos perdeu. Saímos e batemos o pó das sandálias. Nunca mais voltamos.



Desde então iniciou nossa jornada em busca de uma padaria onde pudéssemos comer e conversar nos finais de tarde. Foram meses de procura pelo centro da cidade. Achamos algumas, mas sempre na lógica do lugar apertado e pequeno, onde não se podia sentar. Zanzamos pelo centro, pagando caro em lugares ruins, sonhando em encontrar algo que fosse, pelo menos, parecido com a padaria Brasília. Um belo dia, já sem opções, arriscamos ir um pouco mais adiante, na rua do terminal velho, um espaço da cidade em que nada mais há, porque com a desativação do terminal de ônibus, aquilo virou um estacionamento. Fica um vazio de gente por ali. Pois eis que era bem naquele lugar que estava a surpresa. Uma padaria, barata e com mesinhas. Virou nosso ponto. As atendentes logo passaram a nos tratar como velhas conhecidas, já sabem nossos gostos, já sentem nossa falta quando demoramos. O rapaz do caixa também virou amigo, parceiro das conversas. Temos de volta um lugar seguro no centro de Floripa.

Fica ali, quase em frente ao velho terminal, chama-se Via Pane. Serve pão quentinho, café delicioso e as garotas que atendem são um amor. As “pobres” tem um novo porto. Já a padaria Brasília, soubemos, fechou suas portas depois de quase meio século. O motivo: não sabemos, mas deve ter se rendido à especulação imobiliária. Sei lá. Agora também não importa. Já temos um novo amor!


Lugar bonito, gostoso e com gente muito legal...

Pobres e Nojentas em Cuba

Miriam à esquerda e Marcela à direita

Já estão a caminho de Cuba as "pobrecitas" Miriam Santini de Abreu e Marcela Cornelli, editora e repórter da Pobres. Na mala levam caneta, muito papel e a máquina fotográfica. Vão trazer da rebelde ilha do Caribe um pouco deste olhar de classe que tão bem caracteriza a mais importante revista independente de Santa Catarina. É só ficar de boa, esperando, que logo, logo começam a saltar os textos desde Cuba.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O jornalismo derrotado

Vale a pena ler o texto de Marcos Rolim em:

http://rolim.com.br/2006/index.php?option=com_content&task=view&id=748&Itemid=3

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Palavra de beleza

ESTA É A CONFIANÇA QUE TEMOS EM DEUS:
SE LHE PEDIMOS ALGUMA COISA
SEGUNDO A SUA VONTADE,
ELE NOS OUVE.
(1 João 5, 14)


Pés de ouro equilibram-se em peixes.
Inciput erat verbum: no princípio era a palavra.
A palavra é clarabóia
sobre o pensamento escuro.

Jesus cita as antigas escrituras
para sugerir que somos deuses.
Na fonte fria lavar cabelos,
lavar cabelos na fonte fria.

Pés de pluma equilibram-se em águas.
Tenho confiança em Deus
e a Ele peço três coisas segundo a Sua vontade:

– a força da criança
– a força da poesia
– a força da música

Fernando Karl

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Os algozes humanitários

Por Elaine Tavares - jornalista

A gente do Haiti é gente de muito valor. Foi o único país, no mundo, em que os escravos fizeram uma revolução contra seus senhores e venceram. Foi em 1791, logo depois da revolução francesa. A ilha caribenha ferveu em desejos de liberdade e o povo armado - mais de 500 mil negros num espaço onde viviam apenas 32 mil brancos - botou os colonizadores franceses para correr. Toussaint de Loverture, Dessalines, Alexandre Pétion. Gigantes da luta de libertação que, com suas idas e vindas, erros e acertos, fizeram do Haiti, com a força das gentes, uma nação livre, digna, soberana. Primeiro país abaixo do Rio Bravo a se fazer independente em 1801. Petión acolheu Bolívar e foi o responsável pela virada na cabeça do libertador. Deu a ele guarida, ajuda e só pediu em troca que ele libertasse os escravos da América do Sul. Bolívar mudou.

Mais tarde, as lutas intestinas revolveram o país e várias lideranças passaram pelo poder, até que no início do século XX o mal fadado vizinho do norte, os Estados Unidos, decidiu intervir no país para cobrar dívidas, uma história muito conhecida pelos países latino-americanos. Desde aí, o povo do Haiti sofreu fortes reveses, culminando com a dinastia Duvalier, sanguinária ditadura de pai e filho, que perdurou de 1957 até 1986. Regime de terror, tortura e perseguições, enfrentado com valentia pela população, que pagou caro por isso. A esperança veio em 1990 quando o povo elegeu Jean Aristide, um padre ligado a teologia de libertação. Mas, de novo, os Estados Unidos meteu o bedelho na vida do país, evitando que por ali tremulasse alguma bandeira vermelha. A eles, no Caribe, já bastava Cuba. Sem grandes riquezas para serem cobiçadas, a gente do Haiti sofreu “preventivamente”. Em 2004, depois de idas e vindas, com o apoio dos EUA, Jean Aristide se elege novamente, mas é deposto em seguida por um golpe, igualmente apoiado pelos EUA, mergulhando novamente o país num caos político.

É quando entram as “forças de paz” da ONU, ocupando o Haiti a pedido dos Estados Unidos. Vários países, tendo Brasil à frente, enviaram suas tropas, alegando que estavam ajudando a manter a ordem, De novo, o povo do Haiti ficava sob a tutela das armas alheias, como se não fosse capaz de definir por si mesmo o seu destino. Desde aí o país está ocupado militarmente, com denúncias diárias de mortes, torturas, estupros, violências de toda ordem. Morte diária, cotidiana, naturalizada. Estas não saem nos jornais. Contra elas não gritam os Casoys, os Bonners e outras bocas alugadas.

Agora, não bastasse toda esta história de dominação, o Haiti sofre uma tragédia natural, uma a mais, nem tão natural, já que é resultado da destruição que vem sendo imposta ao planeta pela ganância dos donos do capital. Milhares de pessoas estão mortas, ceifadas num único dia. Tragédia massiva. Então os jornais se inundam de matérias sobre a ajuda humanitária. Países de todas as cores enviam remédios, alimentos. A Globo e CNN destacam a ajuda estadunidense, “governo tão bom”, o mesmo que deixou a míngua os atingidos do Katrina. As pessoas choram diante da TV, organizam ajuda solidária nos seus bairros, observam aliviadas a humana bondade da França, da Alemanha e até do FMI (pasmem) que decidem doar alguns punhados de dólares. Falam ainda da providencial presença dos “cascos azuis”, soldados da ONU, que estão ajudando no resgate das vítimas, no auxílio aos feridos, etc...

Sim, me compadeço com a tragédia haitiana deste triste 13 de janeiro. Mas, com Venezuela, com Cuba e com outros tantos lutadores sociais tenho feito isso desde que as forças da ONU entraram no país a pedido dos EUA. Contra Lula gritando pela retirada das tropas, e com Fidel e Chávez, entendendo que se alguma ajuda precisava o povo da ilha caribenha era a de médicos, engenheiros, professores, dentistas, enfim, gente que amparasse e fortalecesse as gentes. Não soldados armados para reprimir, matar, mutilar, torturar, estuprar. Doem em mim, sim, as mortes massivas deste dia 13, mas me doem também, com igual força, as mortes cotidianas, recorrentes e naturalizadas no Haiti, no Afeganistão, no Rio de Janeiro, em São Paulo, na periferia de Florianópolis. A ajuda humanitária nestes dias de inferno pós-terremoto não pode ser uma mera musculação de consciência daqueles que doam um quilo de arroz e dormem tranqüilos. Há que se comprometer com a proposta de mudança e libertação. A tragédia haitiana é muito maior do que este terremoto de 13 de janeiro. O terremoto da dependência, da subordinação, da superexploração do trabalho, da ocupação armada é cotidiano, e já dura tempo demais. O país está em escombros e não é de hoje. Ajudar as vítimas da catástrofe do tremor é urgente e necessário, mas não dá para saudar os algozes. Estes que posam de bons moços, enviando alguns dólares, são os responsáveis pelo terremoto cotidiano. Isso não podemos esquecer!

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

P&N n. 20


A P&N número 20 está um pitéu. O que está esperando para fazer assinatura?!

5 edições (bimestral): R$ 25,00 (estão inclusas as despesas com o Correio). Pagamento via depósito em conta. Envie e-mail para eteia@gmx.net para obter os dados de depósito e informar nome e endereço completo.

A revista Pobres & Nojentas, editada pela Companhia dos Loucos e formada por um grupo de jornalistas de Florianópolis [SC], nasceu em maio de 2006 e em dezembro de 2009 chegou à edição 20. O grupo também edita a Pobres & Nojentas Teórica, com artigos sobre comunicação e jornalismo, e os Cadernos Soberania Comunicacional.

Cooperativa da palavra libertária, criadora, caminheira, que pretende - com ironia, mas também com seriedade - se contrapor à superficialidade das publicações que só investem na divulgação de informações sobre a vida dos ricos e famosos. Na Pobres & Nojentas o foco está no povo que trabalha, luta e constrói mundos. A palavra "nojenta", agregada ao nome, tem um significado específico para as editoras e para os que ali dizem a sua palavra: significa "inquebrantável", gente que questiona velhos valores, que cria o novo e persegue vida boa e bonita para todos.


A Companhia dos Loucos também já editou os seguintes livros: “Porque é preciso romper as cercas: do MST ao Jornalismo de Libertação”, da jornalista Elaine Tavares; “Mulheres da Chico”, de Catarina Francisca de Souza, Daniele Braga Silveira, Janete Osvaldina Marques, Lídia Almeida, Maria do Carmo Apolinário e Jussara Fátima dos Santos; “Seres do Bem – retratos de viandantes”, do jornalista Ricardo Casarini Muzy; “Uma Cidade na Memória”, do jornalista James Dadam; “Jornalismo nas Margens – uma reflexão sobre comunicação em comunidades empobrecidas”, da jornalista Elaine Tavares. Endereço eletrônico: revistapobresenojentas@gmail.com


Avalanche nos shoppings

Celso Vicenzi - Jornalista (Florianópolis/SC)


Fico impressionado com o que acontece em dias de chuva. Não me refiro aos deslizamentos de morros e encostas ou às enchentes que têm vitimado muitas famílias por todo o Brasil. Reporto-me à avalanche de turistas e nativos que parecem não ter outra ideia para um dia de chuva do que correr para os shoppings centers. O fenômeno é nacional e particularmente observável em Florianópolis, onde o caos no trânsito, faz-se de imediato.

A muito poucos ocorre, por exemplo, de abrir um livro e no silêncio temperado pelo som da chuva, deliciar-se com boa literatura. Ou quem sabe aproveitar para assistir bons filmes (raros nos shoppings!), escutar boa música, escrever, pintar, conversar... A civilização moderna parece viciada em barulho e agitação. Tem verdadeiro pavor da introspecção e da reflexão. Movimenta-se por automatismo, delicia-se no consumismo (sem perceber que suas vidas são também consumidas em banalidades, superficialidades, egocentrismo).

Em recente entrevista publicada na imprensa, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, traduziu em números essa questão abissal: “Temos uma realidade dantesca na cultura brasileira. A gente não consegue envolver culturalmente 20% da população com única exceção da TV aberta. Só 8% foram a um museu, só 13% vão com alguma regularidade ao cinema, só 17% compram livros, mais de 90% das cidades não têm cinemas. A realidade é muito grosseira e excludente. Ou seja, não dá para garantir desenvolvimento cultural no Brasil nessas condições. E a Lei Rouanet aprofunda, acirra essa desigualdade, essa desconcentração, esses privilégios e essas exclusões, por isso tem que mudar”. Pois é. Não vou nem comentar sobre a qualidade de livros e filmes que essa população, que já é minoria, lê e vê, para não desesperar. A estatística já é suficientemente assustadora.

O que se espera de um país que já está entre as 10 maiores economias do planeta e tem pretensões de chegar em 2020 entre as cinco maiores? Certamente como nação seremos muito parecidos com esses novos ricos (e cá entre nós, entre os mais antigos também há poucas exceções) que, sem um mínimo de educação e cultura, se deleitam com a vulgaridade, posam para a mídia das futilidades e gastam tempo e dinheiro com banalidades.

Sem um povo com acesso à boa educação (não confundir com erudição), com noção da história, da política, da ciência e da cultura, que país será este? Onde queremos chegar? Que legado deixaremos? Como defenderemos a nossa cultura (a nossa genuína forma de nos constituirmos como um povo), se dela não temos a mínima noção, não a valorizamos e nos deliciamos com o lixo cultural de grandes produtores internacionais? Como se isto também não fosse uma questão de segurança nacional... mas não quero ir tão longe. Voltemos ao passado, para tentar entender.

Quinhentos anos depois da chegada dos europeus, repetimos os mesmos vícios, perpetuamos os problemas. Relatos frequentes de viajantes estrangeiros que circularam pelo Brasil, sobretudo no século 19, quando a Corte portuguesa já se instalara no país, chamavam a atenção para “o analfabetismo, a falta de cultura e instrução”, escreve o jornalista Laurentino Gomes, autor do memorável “ 1808” , que traduz muito da alma brasileira e das raízes daquilo em que viemos a nos transformar. “O Brasil não é lugar de literatura”, afirmou James Henderson, que aqui esteve em 1819. “Na verdade, a sua total ausência é marcada pela proibição geral de livros e a falta dos mais elementares meios pelos quais seus habitantes possam tomar conhecimento do mundo e do que se passa nele. Os habitantes estão mergulhados em grande ignorância e sua consequência natural: o orgulho”. Já o botânico inglês William John Burchell, que percorreu o Brasil entre 1825 e 1830, escreveu que “neste país de analfabetismo, não se encontra ninguém que tenha intimidade com a noção de ciência”. E assinalou: “Aqui, a natureza tem feito muita coisa – o homem, nada. Aqui, a natureza oferece inumeráveis temas de estudo e admiração, enquanto os homens continuam a vegetar na escuridão da ignorância e na extrema pobreza, consequência apenas da preguiça”.

Exageros à parte, preguiça de nobres e ricos daquela época, sejamos claros, porque os escravos e os pobres sempre trabalharam muito. Como o fazem até hoje. E sem que participem minimamente da distribuição de toda a riqueza. O Brasil é o oitavo país com a maior desigualdade social, na frente apenas da Guatemala e dos africanos Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia, segundo o coeficiente de Gini, parâmetro internacionalmente usado para medir a concentração de renda. No Brasil 46,9% da renda nacional concentram-se nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto os 10% mais pobres ficam com apenas 0,7% da renda.

Há um provérbio africano que diz: “A pobreza é a escravidão”. Portanto, é perfeitamente constatável que a escravidão não acabou, apenas tornou-se legitimada por uma pseudodemocracia – ou uma democracia meramente eleitoreira. Porque na essência, como bem disse o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, “democracia serve para todos ou não serve para nada”. Boa parte do Parlamento, do Judiciário, do Executivo, do empresariado, de associações e sindicatos e, não vamos esquecer, de todos os cidadãos que tiveram acesso a uma boa educação, juntos poderiam fazer uma grande transformação, mas preferem manter a maioria da população nos limites da sobrevivência. E da ignorância. Ou vocês irão me dizer que essas estatísticas e essa realidade que vivenciamos são obra do acaso?

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Uruguaias







O colega Jackson Abreu esteve, no final de 2009, no Uruguai com a família. Ficou em La Paloma (onde está o farol), La Pedrera e Punta del Diablo, além de ter passado por outras localidades. O crédito das fotos é dele. Em breve um relato da viagem!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Língua de gato

Míriam Santini de Abreu


Os cães e gatos criados na casa da jornalista Elaine Tavares, desta Pobres & Nojentas, gostam de deslizar no colo dela e no dos visitantes. A Elaine adora os bichos, e fala com eles numa estranha linguagem que inventou, que foi batizada de Língua de Gato. Eles entendem, mas a gente fica boiando. É algo assim:

- Turiquituqui, vem aqui, churrisqui, tirar a pulgueta!

Fiz um breve dicionário com o que anotei depois de uma breve conversa entre ela e os bichos:

Chique-chique

Chiriquitingue

Chuqui

Churrisqui

Curicuscusca

Nhuminhumi

Piriguelinha

Piriquiri

Turiquituriqui

Tutuquinho


VEJA OS BICHOS EM:

http://eteia.blogspot.com/2010/01/os-bichos.html


sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Scarlett desalojada




Míriam Santini de Abreu


Como diria minha amiga Raquel, de Joinville, “me caíram os butiás do bolso”. Estive em Caxias do Sul no final de semana passado e, numa caminhada na parte mais alta do Parque Getúlio Vargas, tomei um susto. A adorável florestinha na frente da antiga chácara da família Eberle, na Rua Alfredo Chaves, simplesmente desapareceu. Virou uma horrível barranca nua onde vão construir um prédio.

Nos fundos ficou a mansão rosa erguida em 1961, na entrada da qual há um pórtico de ferro e azulejos pintados a mão. Eu, quando era pequena, passava por lá sempre espiando, tentando ver através das árvores, imaginado ser a atrevida Scarlett O'Hara naquele maravilhoso vestido verde.

Pesquisei, e tudo parece ter sido feito dentro da lei, e por iniciativa dos herdeiros da família. O Ministério Público está investigando. Bueno, vai dar em nada, são os business. Num jornal local, um dos Eberle, dono da área, disse que apenas uma família aproveitava aquela área privilegiada: “A idéia é possibilitar que muitas famílias possam usufruir desse lugar. Não queremos impedir a evolução da cidade”. Ora, usufruir de quê? Do concreto?

Caxias não soube mesmo cuidar de seu patrimônio arquitetônico. Deu fim até mesmo ao Cine Teatro Ópera, uma belezinha que foi misteriosamente incendiada quando se discutia o tombamento do prédio.

Scarlett irá morar num espigão de cortina de vidro. Modernidade...

Verão do Bob

Dilícia!

http://www.youtube.com/watch?v=iMBDYOVYZRQ

Resoluções de ano novo


Míriam Santini de Abreu

Fico com dó dos peixes que morrem na rede, mas como são resultado de pesca artesanal, me conformo. Mas, para mostrar minha contraditória natureza, gosto de ver os peixes no frezzer, dentro de saquinhos plásticos, empilhados, aquela mudez prateada. Então, além de aprender a andar de bicicleta, minha lista de resoluções de ano novo inclui aprender a limpar peixe e fazer caldo. Acho que são resoluções modestas e possíveis.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

São Luiz como era



Casarões históricos e Igreja Matriz sumiram com a água em São Luiz do Paraitinga.

Por amor a São Luiz e às pessoas que lá vivem

Míriam Santini de Abreu

Das viagens que fiz, tenho esse especial amor por aquela que, em fevereiro de 2009, me levou, com o Pepe, a São Luiz do Paraitinga (SP) e a Paraty (RJ). Em janeiro, pouco antes da viagem, uma violenta tromba d`àgua atingira Paraty. E no mesmo mês, em 2010, foi a vez de São Luiz Em meio a tantas cenas de destruição e mortes no noticiário sobre as chuvas no Sul e Sudeste, foi com imensa tristeza que vi o que aconteceu no pequeno município que visitamos.

E imensa porque aquela, em particular, foi uma terra sobre a qual andei, onde moram pessoas que conheci, com uma espessa história sobre a qual li. É a conexão profunda com o conhecido, com o que, no sentimento, se individualiza, se torna único.

Houve um fato em particular naqueles dias em São Luiz, aquela madrugada na qual acordei para flagrar a lua cheia. O tempo estivera chuvoso, mas eu esperava que, por uns minutos, as nuvens pesadas se abrissem para deixar vazar o brilho do luar. O luar do sertão paulista, lugar imaginário pelo qual, desde pequena, cultivo essa estranha confusão de sentidos. Para meu deleite, ela apareceu, pálida e linda, e fiquei eu a balançar o corpo na rede pendurada na varanda da pousada, cercada por araucárias, no ar um cheiro de mato, e no horizonte as luzinhas de São Luiz.

Ah, com que gosto eu caminhei por aquelas ruas, onde o povo se preparava para o Carnaval! Os casarões coloridos, a comida boa do Cantinho dos Amigos, a casa-museu adorável onde morou a família de Oswaldo Cruz, atrás da qual, numa moita de taquaruçus, eu imaginei ver os olhinhos dos sacis. Foi ali que uma estranha ventania sacudiu as árvores da mata atrás da casa, varreu as folhas e fez a atendente do museu fechar todas as janelas.

Agora, vendo as imagens na tevê, me espanto com o fato de que as antigas casas, a igreja no centro da praça, o coreto, boa parte do que eu e Pepe fotografamos, desapareceu sob a lama. Deixou de ser. Deixou de estar. Sim, compreensível como fato, com as explicações meteorológicas, a forma de ocupação do espaço geográfico, os humores do rio. Mas tudo isso, para a alma, é incompreensível. Tal como em Pompéia, uma parte de mim ficou lá, imobilizada, não sob cinzas, mas com a chuva e o barro que levaram casas e histórias para o leito barrento do rio Paraitinga.

Leia abaixo a reportagem que a revista Pobres & Nojentas publicou sobre São Luiz do Paraitinga na edição 17 (março-abril de 2009):

Como encontrar saci no sertão paulista

Por Míriam Santini de Abreu, de São Luiz do Paraitinga (SP)

Cheia de quietude, fui espiar a noite. Os vagalumes eram uma corda de luz dançando no negrume. Atrás de um capão de araucárias, a distante claridade pálida era outra, a da cidade. Então, ouvi um farfalhar vindo duns arbustos. As folhas balançavam de um jeito quase faceiro. Segurei a respiração. Seria um saci?

Era o moleque que eu desejava ver naquele lugar batizado de São Luiz do Paraitinga, região do Alto Paraíba, no topo da Serra do Mar. Ali se está a 170 quilômetros de São Paulo e a 44 de Taubaté, a cidade onde nasceu o escritor Monteiro Lobato, que popularizou o saci com as histórias ambientadas no Sítio do Picapau Amarelo. Foi em São Luiz que, em 2003, um grupo de jornalistas, músicos e artistas fundou a Sociedade dos Observadores de Saci, a Sosaci. E desde então o calendário cultural da cidade tem festa dedicada ao guardião das matas, realizada no final de outubro.

São Luiz é contornada pelo rio Paraitinga, que às vezes se rebela contra as margens e alaga casas e ruas. O município tem 90 edificações do século 19 tombadas pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de São Paulo). A fama do casario histórico - maior núcleo arquitetônico antigo do Estado - se iguala à dos festejos do Carnaval e da Festa do Divino, épocas em que os visitantes se apinham nas ruas do Centro. A cidade de cerca de 11 mil habitantes agora também alimenta o desejo de - como se diz - reflorestar o saci no imaginário brasileiro.

Contam as histórias coletadas pela Sosaci que, na cultura dos povos originários destas terras, o saci era um curumim, encantador de crianças e adultos. Depois se enlaçou com a cultura africana e portuguesa. Tornou-se negro, ganhou um gorro vermelho e um cachimbo na boca.

Geraldinho Santos, taxista cujo ponto é na Praça Oswaldo Cruz, na frente da Igreja Matriz dedicada a São Luís de Tolosa, sorri de leve quando embarco e pergunto se ele já viu saci. Depois, sério, conta histórias de quando era guri e temia as estranhas luzes e barulhos no escuro do sertão. Na frente da Destilaria Mato Dentro, onde desembarco e o relato de Geraldinho tem o ponto final, há um vigilante saci de olhos vermelhos.

Na dissertação de mestrado em História que defendeu na Universidade de São Paulo, o pesquisador João Rafael Cursino dos Santos conta que São Luiz era ponto de passagem de tropeiros e de escoamento de mercadorias rumo ao porto de Ubatuba, no litoral norte paulista. Isso foi nos séculos 17 e 18, período em que a movimentação de tropas deu impulso ao comércio de beira de estrada e ao início de povoamentos e cidades. Quando se completou a ligação de Minas Gerais direto ao Rio de Janeiro para transporte de ouro e diamantes, a pequena localidade no alto da Serra paulista caiu em decadência.

Foi o cultivo de café no Vale do Paraíba, em meados do século 19, que mais uma vez movimentou a vida em São Luiz. São daquele período as construções de prédios públicos e particulares hoje preservadas no Centro Histórico, algumas feitas de taipa-de-pilão, com paredes internas de pau-a-pique. Mais tarde, com a produção de café estagnada, o município retomou a agricultura de subsistência e ficou à parte do crescimento industrial do Vale do Paraíba no século 20.

Parte do antigo casario está na rua Domingues de Castro, onde fica o Cantinho dos Amigos. Foi nesse restaurante que, na busca do saci, encontrei as “Estórias de uma perna só”, literatura de cordel tamanho ¼ de folha de ofício, exposta no Caixa:

- Quem escreve? – perguntei, afoita.

- O Ditão, esse que acabou de sair daqui.

Fui para a rua e fiz parar o primeiro que passava:

- Viu o Ditão?

- Sim, ele foi em direção ao Mercado Municipal.

Corri até o local mencionado, um prédio de 1902, da cor do Mercado Público de Florianópolis. À venda encontrei brincos, broches, todos com a carinha do saci. Pulei de uma banca para a outra:

- Alguém viu o Ditão?

- Sim, na distribuidora ao lado do Correio. É onde o Ditão costuma ficar.

No caminho até lá, cruzando umas três ruas, os meus informantes me perguntavam:

- Encontrou?

***

Os homens conversavam em volta de uma mesa. Eu entrei espevitada. Benedito Virgilio, o Ditão, estava lá, camisa listrada, chapéu gasto encobrindo as ruginhas em volta dos olhos. Meia hora depois, na beira do rio Paraitinga, o autor das “Estórias de uma perna só” relatava o encontro que teve com o saci, também contado no número 1 da série de livrinhos.

Foi num dia em que o pai saiu para cortar lenha e levou o filho. Já estavam na mata quando Ditão, então com uns seis anos, ouviu um barulho vindo dum pé-de-vento. Algo com um chiiiii, folha seca sendo pisada. Era o saci. Esquecido do pai, entrou na floresta. Ao longo do caminho, pulando entre pés de angico, guarantã, cipó-cambira e caraguatá para provar frutos e mel, o saci levou o menino até um muxoco, árvore de raiz profunda que só nasce onde a terra está úmida. E próximo da mina d´água havia uma touça de taquaruçu, o espinhento bambu que é a casa do saci. “Lá no meio da touça eu vi/ Mais de uns trinta sacis/ Pulando de lá pra cá/ Com um pedaço de pau/ Espantava os picapaus/ Que vinham o gomo picar/ Os gomos tinham um furinho/ De onde saíam uns sacizinhos/ Nos seus cachimbos a fumar/ Mal acaba de nascer/ Já sente este prazer/ Do pito não quer largar.”

Ao longo do trajeto, o saci então revelou ao menino como encontrar água e alimento no meio da mata. Já diziam os personagens de Monteiro Lobato: o moleque de uma perna só já nasce sabendo tudo!

Assim como esta, outras histórias de Ditão fazem da natureza o cenário. Uma das mais conhecidas é “O Saci e o Eucalipto”, crítica à monocultura introduzida nos anos 1970 e que faz um cinturão em volta da cidade: Esta planta suga a terra/ As nascentes estão secando/ Nossos rios caudalosos/ Devagar vão se acabando/ As fazendas destruídas/ Pelas máquinas vão tombando/ O caipira sem destino/ Pra cidade está mudando”.

Nascido em São Luiz há mais de cinco décadas, Ditão ficou longe da cidade natal quando, aos 22 anos, foi morar em São José dos Campos para trabalhar na Embraer. Foi e rapidamente voltou. Hoje é apicultor, fabrica queijo e cuida de algumas cabeças de gado e de pés de fruta num sítio onde ainda existe floresta nativa. Mas é na cidade que ele vai “sacizar”, conversar com os amigos e alimentar a imaginação para as “Estórias de uma perna só”. A série, iniciada em 2004, irá emplacar o número 30, e a meta é chegar ao 365, um livrinho para cada dia do ano. Haverá até o do saci e o ano bissexto.

Ditão crê nos seres da terra, das matas. “Eu acho que existem coisas diferentes que as pessoas não conseguem mais ver por causa da luz elétrica à noite, por estarem sempre em seus carros”. A luz elétrica, marco da vida nas cidades, afugenta o saci. Desencanta a natureza do sertão.

***

O Carnaval de Marchinhas hoje é a principal festa de São Luiz, ultrapassando até a Festa do Divino, cuja referência mais antiga é do início do século 19. As festas, o casario histórico e a fama de “último reduto caipira do Estado do São Paulo” levam cada vez mais gente à cidade. O turismo é visto como alternativa de desenvolvimento e renda. Mas, na dissertação de mestrado defendida por João Rafael Cursino dos Santos, fica a pergunta: de que forma o turismo afetará o que é a própria razão da vinda do turista, a cultura popular, mesmo que já tão modificada com o passar do tempo?

A Sosaci nasceu daí, do desejo de valorizar a mitologia brasileira, a cultura popular, para se contrapor à invasão da cultura estrangeira. Agora, passados seis anos de sua criação, também atua em outra vertente, a lúdica. Quer reavivar nas crianças o gosto pelas brincadeiras de amarelinha, cabo-de-guerra, pião. “O nosso objetivo é incluir o estudo da mitologia brasileira na rede pública de ensino”, diz o jornalista Jô Amado, que saiu da cidade grande para morar em São Luiz. Ele é um dos “saciólogos” (estudiosos do saci) que, naquela noite fria de julho de 2003, num boteco da rua Domingues de Castro, fundou a Sociedade.

O primeiro alvo da Sosaci foi o Halloween, o Dia das Bruxas, de tradição celta, comemorado nos Estados Unidos em 31 de outubro. A festa se espalhou Brasil afora e, em escolas públicas e privadas, as crianças são estimuladas a participar da brincadeira. Como nos filmes estadunidenses, arrecadam doces nas casas com o mote “Doçuras ou Travessuras?”. Mas em São Luiz a festa é batizada de Raloim Caipira. O prato de resistência é abóbora com carne seca.

***

Quando São Luiz fica para trás, o ônibus começa a descer os 52 quilômetros Serra do Mar abaixo até Ubatuba, no litoral. Um lugar dos meus mais secretos desejos, aquela mata tão pisada de história. Se o sertão é dentro da gente, como diz o Riobaldo de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, então o meu é aquele onde a escarpa da Serra do Mar ajoelha-se no Planalto Paulista. E o meu saci é o mesmo do Ditão, como ele diz: é mais um sentir do que um ver.

BOX

Para saber mais:

Veja Ditão Virgilio no endereço da P&N no YouTube:

http://br.youtube.com/PobresyNojentas

Leia o poema “O Saci e o Eucalipto” em:

http://www.overmundo.com.br/blogs/cordel-do-saci-e-do-eucalipto

Sobre os significados do sertão: Texto “Região, sertão, nação”, de Janaína Amado, disponível em:

http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/169.pdf

Sobre o modo de vida caipira: Texto “Na travessia da modernidade: imaginação poética e resistência na memória de caipiras em São Luiz do Paraitinga”, de Bruno Simões Gonçalves, disponível em:

http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5439


Vamos pegar o Corredor!

Míriam Santini de Abreu

Duas expressões se incorporaram ao meu vocabulário:

- U-hu, o Amarelinho tá passando!

- Corre, não vamos perder o Corredor!

Explico. Morar no Sul da Ilha implica utilizar dois ônibus de linha, do Campeche ao Terminal Rio Tavares e outro dali ao Centro, geralmente com engarrafamento nos horários de maior movimento. São os mais baratos se o usuário tiver cartão.

Nesta época do ano, há filas em quase todos os horários naquele trecho. Então, se a gente está no Centro da cidade no final da tarde, é fundamental pegar o ônibus de volta entre 18 e 20 horas, quando o Rio Tavares sai do Terminal Central direto ao Terminal Rio Tavares usando a via que margeia a Costeira. Naquele horário, passam apenas ônibus na via, além dos automóveis de quem mora no local. Dá uma boa economia de tempo e de estresse.

E há outra alternativa, serviço VIP, mais caro e com ar-condicionado, que vai direto ao Centro ou vem direto ao Campeche. É o Amarelinho, mas ele passa com pouca freqüência, então dou pulinhos quando ainda tenho créditos para pagar e ele aponta na esquina do Campeche perto de onde moro ou nos horários em que estou no Centro.

No horroroso sistema de transporte coletivo de Florianópolis, qualquer economia de tempo é fundamental.