sábado, 10 de maio de 2014

A memória perdida dos rios desaparecidos

Rio da Bulha engolido sob a boca-de-lobo

Rio do Carreirão no único trecho visível em local público

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Eu tenho 21 graus de miopia e, mesmo com lente de contato - de um tipo que não corrige os outros 3 graus de astigmatismo – enxergo mal. Lembrando do belo dito de Eduardo Galeano, preciso que as pessoas me ajudem a enxergar. É impressionante a quantidade de coisas que passam batido pelo meu registro visual. E neste sábado, 10 de maio, muita gente me ajudou a enxergar coisas que eu nunca tinha visto. Participei da 5◦ Caminhada Jane Jacobs Floripa, unindo-me a umas 30 pessoas que não ficaram com medo da chuva. Jacobs, a jornalista, escritora e ativista política, autora do belo livro “Morte e Vida de Grandes Cidades”, deve ter sorrido.
Começou já na Avenida Hercílio Luz, onde pela primeira vez vi o mural “A Festa”, do artista plástico Rodrigo de Haro, na fachada do Clube 12. Nunca havia enxergado aquela obra! E depois, ao longo da caminhada, foi a vez de enxergar os rios que diferentes administrações enterraram sob lajes porque deles não quiseram cuidar. Fomos descobrir os rios da Bulha e do Carreirão, aquele o primeiro a abastecer a antiga Desterro, e em 1922 canalizado para a abertura da Avenida do Saneamento, hoje a avenida Hercílio Luz. Ah, a memória perdida dos rios... Do Rio da Bulha ouvi o murmúrio, as águas engolidas passando sob uma boca-de-lobo.
Depois me ajudaram a enxergar o Rio do Carreirão, na Presidente Coutinho, no trecho entre a Esteves Júnior e a Gama d’Eça. Passei algumas vezes por aquele local e nunca havia notado o único trecho desse rio ainda visível em local público. Fora esse, o rio só pode ser visto atrás da Casa Rosa, e agora é mais uma vez vítima da gula imobiliária do... Ministério Público de Santa Catarina! Essa história é muito bem contada em artigo do arquiteto Gustavo Pires de Andrade Neto (veja abaixo) e virou alvo de uma CPI na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (http://www.deputadojailson.com.br/noticias/1605/cpi--para-o-bem-do-ministerio-publico).
Em outro trecho, dentro da área do Exército na Bocaiúva, sobrou visível, do antigo traçado, apenas uma antiga ponte metálica. E por fim enxerguei o ponto exato das águas da Baía Norte onde esse rio tão importante para a antiga Desterro encontra o mar, depois de ter o trajeto e as águas violadas pelo descaso.
Bela iniciativa, a Caminhada Jane Jacobs Floripa, para nos ajudar a enxergar a cidade pela qual passamos e da qual às vezes tão pouco percebemos, e as obras, como o enterro dos rios, que ainda vão afetar a vida de todos nós.

VEJA O VÍDEO DA CAMINHADA EM:


O “riacho da Malária”, o Ministério Público e os 123 milhões de reais

Gustavo Pires de Andrade Neto, arquiteto

“Riacho da Malária”, rio do Carreirão, ou canal da Rio Branco, são diferentes nomes de um antigo curso d’água que por décadas passou tranquilo pelo centro de Florianópolis. Sua existência já era reconhecida no Plano da Vila de Desterro de 1777 e o seu percurso ganhou mais precisão na Planta Topográfica de 1876: nascia em algum lugar próximo ao atual Ceisa Center e era o coletor natural das águas que seguem pela Gama d’Eça até a Casa do Barão, onde se desviavam até passar pela Travessa Carreirão e desembocar no mar.

A cidade foi sendo urbanizada e o riacho, canalizado. Os curiosos que queiram conhecer o Rio do Carreirão ainda podem vê-lo passar a céu aberto espremido entre edifícios da rua Presidente Coutinho, entre a rua Esteves Júnior e Avenida Gama d’Eça, ou talvez nos fundos de um imóvel na travessa de mesmo nome, próxima à avenida Beira Mar.

Hoje, este mesmo riacho que cruzava as chácaras da elite local de outrora, está no centro de uma polêmica que relaciona questões ambientais e urbanísticas, a defesa do interesse coletivo e suspeitas de corrupção por parte da Prefeitura de Florianópolis e do Ministério Público de Santa Catarina. Tal riacho cruzava o quintal arborizado da “Casa Rosa”, na Avenida Bocaiúva, onde um edifício comercial, ainda a ser construído, foi comprado pelo MP pelo valor de 123 milhões de reais.

A polêmica se deve basicamente a irregularidades no licenciamento da obra e ao escandaloso valor de compra, envolvendo questões técnicas e políticas: suspeita de superfaturamento; alto custo do imóvel; compra sem licitação; licença de construção expedida no “apagar das luzes” do governo Dário, em desacordo com estudo ambiental da Floram (que nem chegou a ser concluído); corte de dezenas de árvores; desvio de curso d’água; falta de aprovação dos departamentos de patrimônio histórico antes do início das obras; etc.

Uma CPI acaba de ser criada na Assembleia Legislativa e deve investigar a compra do imóvel pelo Ministério Público. A investigação sobre o MP, inédita no Brasil, tenta pôr luz sobre pontos obscuros da negociação: valores de referência do m2 superestimados; potencial construtivo sobredimensionado; dúvidas sobre a data da formalização da compra (oficialmente do final de 2012, mas há indícios de que negociações ocorriam pelo menos desde 2010). Segundo notícia veiculada pelo Jornal Diário Catarinense de 7 de maio, o próprio Conselho Nacional do MP suspendeu o contrato com a construtora e os pagamentos, o que supõe que o processo de compra do imóvel poderá ser revisto. No entanto, a obra não foi paralisada.

Algumas questões urbanístico-ambientais do projeto aprovado, por outro lado, permanecem obscuras e não se extinguirão até que a Prefeitura suspenda (de novo) a licença de construção. Vamos nos concentrar em algumas destas questões e contrastá-las com o projeto aprovado no final de 2012. O resultado é impressionante. O projeto não apenas subverte pareceres ambientais e de proteção ao patrimônio contrários à obra, como transcende as próprias solicitações da construtora manifestadas à Prefeitura, indo além do analisado tecnicamente e do discutido juridicamente. Vejamos alguns casos.

A polêmica “rio x esgoto” – Uma guerra de nomenclaturas esteve presente em todas as fases do licenciamento. Enquanto a Floram adotava o nome “Canal da Rio Branco” nos seus estudos e sempre exigiu o afastamento de no mínimo 15m em cada margem do curso d’água (com apoio do próprio Ministério Público, à época), a construtora em todos os documentos técnicos se referia ao canal como “esgoto” ou fazia alusão à alcunha “Riacho da Malária”. Assumindo que um rio deve ser protegido e ter as suas margens não-edificáveis (o que fatalmente reduziria o potencial construtivo e os lucros esperados com o empreendimento), o primeiro argumento da construtora foi negar o reconhecimento de que aquele fosse um rio. Após o embargo judicial que suspendeu a obra, a defesa da construtora misturaria este argumento com outro, o de que o rio em questão se encontraria antropizado. Tanto se fosse um esgoto ou um rio vítima da urbanização voraz da cidade, a construtora defendia que o canal da Rio Branco não merecia ser protegido.

Da simples cobertura do canal ao desvio do curso d’água – Mesmo aceitando o (ambíguo) argumento da construtora, o seu pedido inicialmente manifestado à Prefeitura não corresponde ao que se vê no projeto aprovado. O solicitado e analisado (objeto tanto de parecer técnico privado quanto do inconcluso estudo da Floram), era a simples “cobertura do canal”, mantendo a sua seção de 2m de largura e também solicitava a dispensa do afastamento de 15m. O projeto, no entanto, vai muito além. O projeto desvia o canal (que continua pelo terreno vizinho, atual quartel do exército, onde se vê nos jardins da frente as lajes de concreto que cobrem o canal, os antigos pontilhões de alvenaria que o cruzavam e até mesmo uma antiga ponte de ferro) e encaminha as suas águas diretamente para a rede de esgotos na avenida Bocaiúva, passando em seção fechada (reduzida a 1,5m), pela lateral do primeiro subsolo, como se pode ver no corte do projeto do edifício. Tal medida deve-se a necessidades do layout do projeto arquitetônico. Para viabilizar a construção de três subsolos de garagem, as águas enclausuradas não poderiam passar perpendiculares ao edifício, mas ao seu lado. Ou seja, não satisfeita com poder desconsiderar afastamentos, a construtora pretende desviar as suas águas e conectá-lo ao esgoto (enquanto a conexão não fica pronta, a obra utiliza uma bomba para retirar água que continua chegando pelo córrego e a armazena em três grandes reservatórios). Juridicamente, a questão fundamental é que os pareceres técnicos usados pela construtora (de 2010 e 2011), se referiam a questões específicas solicitadas previamente (cobertura do rio e dispensa de afastamento) e não ao desvio do riacho e conexão à rede de esgoto, algo novo que surgiu no projeto aprovado e que não foi objeto de análise dos estudos de impacto ambiental.

De curso d’água a esgoto: os riscos – Além da irregularidade jurídica, a licença concedida sem base em estudo técnico apropriado traz riscos ao esgotamento hidro-sanitário da região. O Canal da Rio Branco faz a drenagem de uma área de cerca de 370 mil m2 do centro de Florianópolis, o que supõe um enorme volume de água nos dias de chuva. A conexão de águas pluviais ao esgoto pode provocar um colapso da rede. Se há suporte para tal, deve ser feito um estudo neste sentido que o comprove. Mas, como vimos, este tema não foi previsto pelos estudos feitos em 2010 e 2011. Curiosamente, a solução é inversa à típica ilegalidade cometida em Florianópolis de se conectar esgotos ao coletor de águas pluviais. Neste caso, consentida pelo município, que aprovando o projeto, acabou por decretar a extinção do riacho.

O direito de construir x a função social da propriedade: a questão de fundo – Caso fosse respeitado o afastamento de 15m em cada margem do rio, como determinado na Lei nº 6.766 /79, o potencial construtivo do terreno seria bastante limitado, o que teria como efeito direto a redução dos lucros esperados pela construtora com o negócio, como já foi dito. Cabe lembrar um outro tipo de afastamento que incide e limitaria o projeto: o afastamento de 20m desde a fachada dos fundos da Casa Rosa, um bem tombado. É esse o afastamento mínimo exigido, de acordo com os pareceres dos órgãos de patrimônio histórico consultados. Tal afastamento, não é seguido no Termo de Compromisso assinado entre o município e a construtora. O termo alega questões de volumetria para estabelecer que o novo edifício esteja no mesmo alinhamento dos edifícios da Casa do Barão, o que resultaria em um afastamento de apenas 10m entre os fundos da Casa Rosa e a fachada do novo edifício. É absurdo que o município tenha proposto que um critério menos restritivo tenha se sobreposto ao mais restritivo (de patrimônio histórico). Se fosse respeitado o afastamento de 20m e mantido o gabarito, isso implicaria em uma redução da área de todas as lajes do empreendimento, com grande impacto sobre o valor geral de venda do imóvel. O potencial construtivo do imóvel poderia estar sobredimensionado também de acordo com outros critérios. Cabe lembrar que os estudos de viabilidade realizados em 2005 permitiam um potencial construtivo de 12 mil m2 para o terreno e que o projeto aprovado em 2012 prevê uma área construída de 20 mil m2. O que se vê é que o direito de construir do proprietário prevaleceu em todos os casos, em detrimento do meio ambiente e da proteção ao patrimônio histórico. Não deveria ser assim. A função social da propriedade, regulamentada pelo Estatuto da Cidade, implica ônus ao proprietário, como restrições de exercício do direito de construir. Foi garantida na Constituição justamente para promover o aproveitamento racional e eficiente, com a adequada utilização dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. A função social é inerente ao exercício da propriedade.

Tanta polêmica deveria servir a uma reflexão mais ampla sobre urbanismo e meio ambiente, que não se limite a “permitir” ou “proibir” a construção do edifício, ou à “compra” ou “não compra” pelo MP. É lícito que a construtora recorra ao caráter antropizado do rio como argumento para flexibilizar as restrições ambientais. O papel dos rios urbanos, muitos deles “invisíveis”, debaixo de ruas e edifícios, é uma discussão pendente que, no entanto, deve ser coletiva e liderada pelo poder público, e não manipulada para auferir ganhos imobiliários privados. Sem uma política de macrodrenagem em Florianópolis e um Plano Diretor para os cursos d’água, os critérios para as decisões e os parâmetros para ocupação serão sempre arbitrários, pontuais e sujeitos a variações, de acordo com a persuasão do poder econômico e a complacência do município.


Quem deveria mediar o debate entre a sociedade, o município e a legislação ambiental? Quem defende o interesse coletivo difuso em um caso como este? Como é sabido, o papel cabe em grande parte ao Ministério Público. Advogado e réu, neste caso, colocando-nos diante de uma equação atípica. No entanto, já sabemos que sem atender ao interesse público, o desenvolvimento imobiliário privado segue a sua própria lógica. Busca a todo custo maximizar o potencial construtivo dos seus empreendimentos, ainda que o resultado empobreça as cidades... e transforme os rios em esgotos.