Rio da Bulha engolido sob a boca-de-lobo |
Rio do Carreirão no único trecho visível em local público |
Míriam Santini de Abreu, jornalista
Eu tenho
21 graus de miopia e, mesmo com lente de contato - de um tipo que não corrige
os outros 3 graus de astigmatismo – enxergo mal. Lembrando do belo dito de
Eduardo Galeano, preciso que as pessoas me ajudem a enxergar. É impressionante
a quantidade de coisas que passam batido pelo meu registro visual. E neste
sábado, 10 de maio, muita gente me ajudou a enxergar coisas que eu nunca tinha
visto. Participei da 5◦ Caminhada Jane Jacobs Floripa, unindo-me a umas 30
pessoas que não ficaram com medo da chuva. Jacobs, a jornalista, escritora e
ativista política, autora do belo livro “Morte e Vida de Grandes
Cidades”, deve ter sorrido.
Começou já na Avenida Hercílio
Luz, onde pela primeira vez vi o mural “A Festa”, do artista plástico Rodrigo
de Haro, na fachada do Clube 12. Nunca havia enxergado aquela obra! E depois,
ao longo da caminhada, foi a vez de enxergar os rios que diferentes administrações
enterraram sob lajes porque deles não quiseram cuidar. Fomos descobrir os rios da Bulha e do Carreirão, aquele o
primeiro a abastecer a antiga Desterro, e em 1922 canalizado para a abertura da Avenida do Saneamento,
hoje a avenida Hercílio Luz. Ah, a memória
perdida dos rios... Do Rio da Bulha ouvi o murmúrio, as águas engolidas
passando sob uma boca-de-lobo.
Depois me
ajudaram a enxergar o Rio do Carreirão, na Presidente Coutinho, no trecho entre
a Esteves Júnior e a Gama d’Eça. Passei algumas vezes por aquele local e nunca havia notado
o único trecho desse rio ainda visível em local público. Fora esse, o rio só
pode ser visto atrás da Casa Rosa, e agora é mais uma vez vítima da gula
imobiliária do... Ministério Público de Santa Catarina! Essa história é muito
bem contada em artigo do arquiteto Gustavo Pires de Andrade Neto (veja abaixo)
e virou alvo de uma CPI na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (http://www.deputadojailson.com.br/noticias/1605/cpi--para-o-bem-do-ministerio-publico).
Em outro
trecho, dentro da área do Exército na Bocaiúva, sobrou visível, do antigo
traçado, apenas uma antiga ponte metálica. E por fim enxerguei o ponto exato
das águas da Baía Norte onde esse rio tão importante para a antiga Desterro encontra
o mar, depois de ter o trajeto e as águas violadas pelo descaso.
Bela
iniciativa, a Caminhada Jane Jacobs Floripa, para nos ajudar a enxergar a
cidade pela qual passamos e da qual às vezes tão pouco percebemos, e as obras,
como o enterro dos rios, que ainda vão afetar a vida de todos nós.
VEJA O VÍDEO DA CAMINHADA EM:
O “riacho da Malária”, o
Ministério Público e os 123 milhões de reais
Gustavo
Pires de Andrade Neto, arquiteto
“Riacho da Malária”, rio do
Carreirão, ou canal da Rio Branco, são diferentes nomes de um antigo curso
d’água que por décadas passou tranquilo pelo centro de Florianópolis. Sua
existência já era reconhecida no Plano da Vila de Desterro de 1777 e o seu
percurso ganhou mais precisão na Planta Topográfica de 1876: nascia em algum lugar próximo ao atual Ceisa Center e era o coletor
natural das águas que seguem pela Gama d’Eça até a Casa do Barão, onde se
desviavam até passar pela Travessa Carreirão e desembocar no mar.
A
cidade foi sendo urbanizada e o riacho, canalizado. Os curiosos que queiram
conhecer o Rio do Carreirão ainda podem vê-lo passar a céu aberto espremido
entre edifícios da rua Presidente Coutinho, entre a rua Esteves Júnior e
Avenida Gama d’Eça, ou talvez nos fundos de um imóvel na travessa de mesmo
nome, próxima à avenida Beira Mar.
Hoje,
este mesmo riacho que cruzava as chácaras da elite local de outrora, está no
centro de uma polêmica que relaciona questões ambientais e urbanísticas, a
defesa do interesse coletivo e suspeitas de corrupção por parte da Prefeitura
de Florianópolis e do Ministério Público de Santa Catarina. Tal riacho cruzava
o quintal arborizado da “Casa Rosa”, na Avenida Bocaiúva, onde um edifício
comercial, ainda a ser construído, foi comprado pelo MP pelo valor de 123
milhões de reais.
A polêmica
se deve basicamente a irregularidades no licenciamento da obra e ao escandaloso
valor de compra, envolvendo questões técnicas e políticas: suspeita de
superfaturamento; alto custo do imóvel; compra sem licitação; licença de
construção expedida no “apagar das luzes” do governo Dário, em desacordo com
estudo ambiental da Floram (que nem chegou a ser concluído); corte de dezenas
de árvores; desvio de curso d’água; falta de aprovação dos departamentos de
patrimônio histórico antes do início das obras; etc.
Uma
CPI acaba de ser criada na Assembleia Legislativa e deve investigar a compra do
imóvel pelo Ministério Público. A investigação sobre o MP, inédita no Brasil,
tenta pôr luz sobre pontos obscuros da negociação: valores de referência do m2
superestimados; potencial construtivo sobredimensionado; dúvidas sobre a data
da formalização da compra (oficialmente do final de 2012, mas há indícios de
que negociações ocorriam pelo menos desde 2010). Segundo notícia veiculada pelo
Jornal Diário Catarinense de 7 de maio, o próprio Conselho Nacional do MP
suspendeu o contrato com a construtora e os pagamentos, o que supõe que o
processo de compra do imóvel poderá ser revisto. No entanto, a obra não foi
paralisada.
Algumas
questões urbanístico-ambientais do projeto aprovado, por outro lado, permanecem
obscuras e não se extinguirão até que a Prefeitura suspenda (de novo) a licença
de construção. Vamos nos concentrar em algumas destas questões e contrastá-las
com o projeto aprovado no final de 2012. O resultado é impressionante. O
projeto não apenas subverte pareceres ambientais e de proteção ao patrimônio
contrários à obra, como transcende as próprias solicitações da construtora
manifestadas à Prefeitura, indo além do analisado tecnicamente e do discutido
juridicamente. Vejamos alguns casos.
A
polêmica “rio x esgoto” – Uma guerra de nomenclaturas esteve presente em todas
as fases do licenciamento. Enquanto a Floram adotava o nome “Canal da Rio
Branco” nos seus estudos e sempre exigiu o afastamento de no mínimo 15m em cada
margem do curso d’água (com apoio do próprio Ministério Público, à época), a
construtora em todos os documentos técnicos se referia ao canal como “esgoto”
ou fazia alusão à alcunha “Riacho da Malária”. Assumindo que um rio deve ser
protegido e ter as suas margens não-edificáveis (o que fatalmente reduziria o
potencial construtivo e os lucros esperados com o empreendimento), o primeiro
argumento da construtora foi negar o reconhecimento de que aquele fosse um rio.
Após o embargo judicial que suspendeu a obra, a defesa da construtora
misturaria este argumento com outro, o de que o rio em questão se encontraria
antropizado. Tanto se fosse um esgoto ou um rio vítima da urbanização voraz da
cidade, a construtora defendia que o canal da Rio Branco não merecia ser
protegido.
Da
simples cobertura do canal ao desvio do curso d’água – Mesmo aceitando o
(ambíguo) argumento da construtora, o seu pedido inicialmente manifestado à
Prefeitura não corresponde ao que se vê no projeto aprovado. O solicitado e
analisado (objeto tanto de parecer técnico privado quanto do inconcluso estudo
da Floram), era a simples “cobertura do canal”, mantendo a sua seção de 2m de
largura e também solicitava a dispensa do afastamento de 15m. O projeto, no
entanto, vai muito além. O projeto desvia o canal (que continua pelo terreno
vizinho, atual quartel do exército, onde se vê nos jardins da frente as lajes
de concreto que cobrem o canal, os antigos pontilhões de alvenaria que o
cruzavam e até mesmo uma antiga ponte de ferro) e encaminha as suas águas
diretamente para a rede de esgotos na avenida Bocaiúva, passando em seção
fechada (reduzida a 1,5m), pela lateral do primeiro subsolo, como se pode ver
no corte do projeto do edifício. Tal medida deve-se a necessidades do layout do
projeto arquitetônico. Para viabilizar a construção de três subsolos de
garagem, as águas enclausuradas não poderiam passar perpendiculares ao
edifício, mas ao seu lado. Ou seja, não satisfeita com poder desconsiderar
afastamentos, a construtora pretende desviar as suas águas e conectá-lo ao
esgoto (enquanto a conexão não fica pronta, a obra utiliza uma bomba para
retirar água que continua chegando pelo córrego e a armazena em três grandes
reservatórios). Juridicamente, a questão fundamental é que os pareceres técnicos
usados pela construtora (de 2010 e 2011), se referiam a questões específicas
solicitadas previamente (cobertura do rio e dispensa de afastamento) e não ao
desvio do riacho e conexão à rede de esgoto, algo novo que surgiu no projeto
aprovado e que não foi objeto de análise dos estudos de impacto ambiental.
De
curso d’água a esgoto: os riscos – Além da irregularidade jurídica, a licença
concedida sem base em estudo técnico apropriado traz riscos ao esgotamento
hidro-sanitário da região. O Canal da Rio Branco faz a drenagem de uma área de
cerca de 370 mil m2 do centro de Florianópolis, o que supõe um enorme volume de
água nos dias de chuva. A conexão de águas pluviais ao esgoto pode provocar um
colapso da rede. Se há suporte para tal, deve ser feito um estudo neste sentido
que o comprove. Mas, como vimos, este tema não foi previsto pelos estudos
feitos em 2010 e 2011. Curiosamente, a solução é inversa à típica ilegalidade
cometida em Florianópolis de se conectar esgotos ao coletor de águas pluviais.
Neste caso, consentida pelo município, que aprovando o projeto, acabou por
decretar a extinção do riacho.
O
direito de construir x a função social da propriedade: a questão de fundo –
Caso fosse respeitado o afastamento de 15m em cada margem do rio, como determinado
na Lei nº 6.766 /79, o potencial construtivo do terreno seria bastante
limitado, o que teria como efeito direto a redução dos lucros esperados pela
construtora com o negócio, como já foi dito. Cabe lembrar um outro tipo de
afastamento que incide e limitaria o projeto: o afastamento de 20m desde a
fachada dos fundos da Casa Rosa, um bem tombado. É esse o afastamento mínimo
exigido, de acordo com os pareceres dos órgãos de patrimônio histórico
consultados. Tal afastamento, não é seguido no Termo de Compromisso assinado
entre o município e a construtora. O termo alega questões de volumetria para
estabelecer que o novo edifício esteja no mesmo alinhamento dos edifícios da
Casa do Barão, o que resultaria em um afastamento de apenas 10m entre os fundos
da Casa Rosa e a fachada do novo edifício. É absurdo que o município tenha
proposto que um critério menos restritivo tenha se sobreposto ao mais
restritivo (de patrimônio histórico). Se fosse respeitado o afastamento de 20m
e mantido o gabarito, isso implicaria em uma redução da área de todas as lajes
do empreendimento, com grande impacto sobre o valor geral de venda do imóvel. O
potencial construtivo do imóvel poderia estar sobredimensionado também de
acordo com outros critérios. Cabe lembrar que os estudos de viabilidade
realizados em 2005 permitiam um potencial construtivo de 12 mil m2 para o
terreno e que o projeto aprovado em 2012 prevê uma área construída de 20 mil
m2. O que se vê é que o direito de construir do proprietário prevaleceu em
todos os casos, em detrimento do meio ambiente e da proteção ao patrimônio
histórico. Não deveria ser assim. A função social da propriedade, regulamentada
pelo Estatuto da Cidade, implica ônus ao proprietário, como restrições de
exercício do direito de construir. Foi garantida na Constituição justamente
para promover o aproveitamento racional e eficiente, com a adequada utilização
dos recursos naturais e a preservação do meio ambiente. A função social é
inerente ao exercício da propriedade.
Tanta
polêmica deveria servir a uma reflexão mais ampla sobre urbanismo e meio
ambiente, que não se limite a “permitir” ou “proibir” a construção do edifício,
ou à “compra” ou “não compra” pelo MP. É lícito que a construtora recorra ao
caráter antropizado do rio como argumento para flexibilizar as restrições
ambientais. O papel dos rios urbanos, muitos deles “invisíveis”, debaixo de
ruas e edifícios, é uma discussão pendente que, no entanto, deve ser coletiva e
liderada pelo poder público, e não manipulada para auferir ganhos imobiliários
privados. Sem uma política de macrodrenagem em Florianópolis e um Plano Diretor
para os cursos d’água, os critérios para as decisões e os parâmetros para
ocupação serão sempre arbitrários, pontuais e sujeitos a variações, de acordo
com a persuasão do poder econômico e a complacência do município.
Quem
deveria mediar o debate entre a sociedade, o município e a legislação
ambiental? Quem defende o interesse coletivo difuso em um caso como este? Como
é sabido, o papel cabe em grande parte ao Ministério Público. Advogado e réu,
neste caso, colocando-nos diante de uma equação atípica. No entanto, já sabemos
que sem atender ao interesse público, o desenvolvimento imobiliário privado
segue a sua própria lógica. Busca a todo custo maximizar o potencial construtivo
dos seus empreendimentos, ainda que o resultado empobreça as cidades... e
transforme os rios em esgotos.
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