quarta-feira, 29 de abril de 2020

O tráfico, a dor e o Mocotó



Por elaine tavares

O Mocotó é uma das primeiras comunidades de periferia de Florianópolis, ela nasceu quando os negros e pobres foram tirados do centro numa operação de “limpeza” da cidade que começava a crescer. Sem ter como bancar aluguéis ou cumprir a lei sanitária que obrigava a ter banheiro em casa, as famílias buscavam, na ocupação dos morros, o espaço para viver. Lá, já vivam outras famílias, de fugitivos da escravidão ou ex-escravos, que igualmente não encontraram lugar no centro, onde começavam a se erguer os sobrados da gente rica. O pé do morro onde fica o Hospital de Caridade, lá pelo meio do 1800 era chamado de Toca, e ali ia crescendo a comunidade. Com o passar do tempo outros espaços no entorno do Morro da Cruz foram sendo tomados, prioritariamente pelas famílias negras, mas também com brancos pobres. Não é sem razão que a cidade chame os morros de “espaço da criminalidade”, porque, na verdade, esse sempre foi o nome dado a quem não participa do grande banquete das famílias abastadas. Ser pobre parece ser potencialmente bandido. E é por isso que ao longo dos tempos esses lugares onde abundam as moradias precárias, o esgoto a céu aberto, as vielas, os trabalhadores, são também espaço da repressão. Assim, sucessivamente e historicamente, é nessas comunidades onde a polícia vai buscar os bandidos, e onde a lei parece não fazer qualquer sentido. São comuns os relatos de invasões de casa, sequestro de pessoas, assassinatos, agressões, violências. E tudo fica respaldado porque, afinal, "são bandidos". Ontem (28), enquanto noticiava uma manifestação no Morro do Mocotó contra o assassinato de três jovens da comunidade, a jornalista da televisão encerrava a nota dizendo: “a polícia informa que os três mortos são ligados ao tráfico de drogas”. Opa, então tá! Aí sim! São traficantes, então tudo se justifica. Já para as famílias que montaram barricadas na Mauro Ramos para denunciar e expressar sua dor e seu protesto, aqueles jovens tinham nome, sobrenome, história, sonhos. E mesmo que fossem ligados ao tráfico, eram o peixe miúdo, aquele que surge da necessidade ou do ódio. Sim, há bandidos no Mocotó, no Mont Serrat, no Horácio, assim como há bandidos na Beira-Mar, na Bocaiuva, na Trompovski. Mas, nesses lugares chiques a polícia não chega atirando, sequer chega. Nos espaços onde vivem à larga os donos do tráfico há advogados de plantão e malas de dinheiro prontas para agir se necessário for, mas nunca é. Porque os peixes grandes não são tocados. Sempre é mais fácil exterminar a raia miúda, que não tem nada por ela a não ser os seus corpos em rebelião. Eu lembro que há alguns anos pegou fogo no Hospital de Caridade. Era de noite. E mesmo antes da chegada dos bombeiros, os jovens da comunidade do Mocotó já estavam lá tirando pessoas, ajudando a apagar o fogo e ali ficaram pé até que tudo estivesse debelado, realizando um trabalho de gigantes. Naqueles dias a imprensa subiu o morro para contar dos atos heroicos da rapaziada. Provavelmente os mesmos jovens que são mortos pela polícia nas noites de calmaria. E os que foram salvos por aquela gente invisível agradeciam emocionados. Provavelmente os mesmos que hoje fazem muxoxo diante da fala da apresentadora de televisão. O tráfico de drogas não é coisa para ser banalizada. Ele é responsável pela destruição de tantas e tantas vidas. Mas, já vai longe essa política de extermínio dos jovens negros das comunidades de periferia. Se essa fosse a política correta, então já era para ter acabado o tráfico. Mas, por que a polícia mata e tudo segue igual? Essa é uma pergunta de fácil resposta. Porque a fonte do tráfico não está na favela. Ali vicejam os aviões e os gerentes de baixo clero. Mesmo os que têm seus barracos cheios de pequenas riquezas não chegam sequer aos pés dos verdadeiros traficantes. Logo, a abordagem policial parece não ter como foco o fim do tráfico. Na verdade, as ações contra a raia miúda são para fingir que há o enfrentamento do problema. Não há. E nessa guerra de extermínio, também os policias - que são trabalhadores - acabam sendo vítimas. Seja quando tombam nos confrontos, seja quando se transformam em criaturas sem parâmetros éticos. A dor sempre fica para os “de abajo”, ou alguém já viu algum dia um traficante de peso ser assassinado ou mesmo preso? Eu nunca vi.

Ontem, no Mocotó, as famílias se manifestaram tacando fogo na rua. Sabem que não há caminho negociado. Não são ouvidas. A única maneira de serem vistas é na manifestação coletiva, na rua. 

Ontem eles tacaram fogo nos pneus para dizer basta. É a única forma de abrir diálogo. Alguém aí vai dizer: tá com pena? Leva pra casa. É porque a maioria das gentes acredita que a solução dos problemas passa pela ação individual. Não, não adiantaria levar para casa a juventude do Mocotó ou de qualquer outro lugar de periferia do país. Porque o problema não está na pessoa. Está no sistema.  É essa forma de organizar a vida que gera a violência. É da natureza do capitalismo manter  a bota sobre a cabeça dos empobrecidos. É da natureza do capitalismo manter uma periferia no limite da vida, para que as pessoas possam ser melhor exploradas. É da natureza do capitalismo fazer do narcotráfico um dos pilares da indústria da morte – que vende armas, equipamentos de segurança e gente. 

Ontem, as famílias do Mocotó botaram fogo no meio da rua para fazer ouvir seu grito. As mesmas famílias que limpam as casas, lavam a roupa, fazem a comida, atendem no comércio, nas creches, nas escolas e ainda salvam vidas quando confrontadas com a tragédia do outro. Como um dia fizeram, salvando os internados no hospital privado mais famoso da cidade.  As mesmos que são esquecidas no dia seguinte quando todos já estão confortavelmente instalados em suas casas quentinhas. 


“Ai, que romântico, quero ver se um negrinho desses um dia tirar a vida de um familiar teu”, gritam os de sempre. Sim, será trágico, e ainda assim não será culpa dele. Será do sistema que o engendrou. Enquanto isso, alguns “branquinhos” seguirão tirando a vida de muitos da classe média e alta sem que ninguém lhes aponte o dedo. 




quinta-feira, 23 de abril de 2020

O Brasil e a pandemia



O Brasil vive um clima de estupefação, mas ainda assim, com a maioria da população inerte e desnorteada. Com o avanço das infecções por coronavírus os brasileiros assistem o governo federal tomar uma série de medidas anti-vida, sem conseguir esboçar reação. Os casos aumentam e justamente nesse momento de subida das infecções o governo troca a equipe do Ministério da Saúde, que, em vez de apontar caminhos para o enfrentamento da doença, se manifesta sobre como será a economia quando o pico passar. É uma situação aterrorizante.

A crise no Ministério da Saúde surgiu porque o então ministro, médico ortopedista, assumiu o comando da luta contra o coronavírus de maneira bastante ofensiva. Dava entrevista coletiva todos os dias orientando a população, informando e sugerindo que todos atendessem ao chamado de permanecer em casa. Essa posição era totalmente contrária à posição do presidente Jair Bolsonaro, que dizia em alto e bom tom: que morram todos os que tiverem de morrer, porque  não pode parar a economia.

Mas, o ministro decidiu seguir o caminho apontado pelas autoridades médicas e manteve a posição de isolamento social. A coisa foi ficando insustentável e os dois batiam boca através dos repórteres. Acabou que o presidente demitiu o ministro que, afinal, estava aparecendo para a população como um cara verdadeiramente preocupado com a saúde das pessoas. Estava tendo mais popularidade que o presidente. E o presidente não suportou.

A demissão do ministro Mandetta desarticulou todo o trabalho de combate que vinha sendo feito via Ministério da Saúde. O novo ministro escolhido pelo presidente tinha duas missões básicas: não aparecer  mais que o presidente e mandar todo mundo voltar ao trabalho. E assim está sendo feito. Acabaram-se as coletivas diárias e a orientação é de que a vida volte ao normal. Apenas ontem o novo ministro, um médico/economista que nunca na vida atuou no setor público da saúde, apareceu na televisão com sua equipe. Um show de bizarrices. Anunciou o novo secretário do ministério, que tem como virtude apenas ser um militar. Nenhuma experiência em lidar com saúde, muito menos com uma crise dessa envergadura.

A coletiva do novo ministro causou estupor. Nenhuma orientação para a população. Nada. Apenas uma algaravia absurda sobre como deverá ser a economia depois que a pandemia passar. Não dava para saber se quem estava ali era a representação da Saúde ou da Economia. Um terror.

No campo da luta social a vida está estagnada. Com a confusão causada pelas orientações diferenciadas – cada governado define sua estratégia – os trabalhadores parecem resignados. Aqueles que não conseguem ficar em isolamento e seguem trabalhando não encontram caminhos a não ser colocar uma máscara e seguir driblando o vírus até quando der. Mesmo sabendo que isso não é suficiente. Durante mais de 30 dias, tempo que durou a quarentena, uma massa gigantesca de gente seguiu com vida normal, saindo de casa todos os  dias para trabalhar, sem que houvesse qualquer ação por parte de seus sindicatos, salvo raríssimas exceções.

Agora, com o novo ministro completamente submetido aos desejos do presidente de retomar a economia, tampouco se percebe alguma ação por parte das Centrais Sindicais ou dos movimentos sociais. Tudo está paralisado, até porque boa parte das lideranças está em isolamento social. Enquanto isso, os partidários do presidente – incitados por ele  - fazem carreatas, passeatas e atos públicos pedindo a volta do comércio e abertura total de tudo. Não acreditam na pandemia e dizem que é um golpe dos chineses para desestabilizar o presidente do Brasil.

No geral, os governadores que ainda mantinham uma posição de garantir o isolamento social também decidiram se render aos desejos do presidente, sabe-se lá motivados pelo quê. E justamente no momento em que o país começa a mostrar a falência dos sistemas de atendimento, resolvem reabrir o comércio e fazer a vida voltar ao normal.  Uma sandice sem explicação. O resultado é a população toda na rua outra vez, sem os cuidados necessários. O que virá, ninguém sabe, mas pode-se intuir pelo que já aconteceu em outros países.

Não bastasse isso, o novo ministro disse que o país não vai investir em compra de respiradores ou novas UTIs porque depois não haverá o que fazer com isso. Assim, respalda a ideia de Bolsonaro de que os que tiverem de morrer, que morram logo para que a vida siga.

Alguns estados como o Amazonas e São Paulo têm apresentado altos índices de mortes e os caixões começam a aparecer nas telas da TV. Mas, ainda assim, a maioria dos brasileiros parece não acreditar que as coisas possam ficar pior. Uma boa parte acusa os que insistem nos cuidados de “querer que tudo dê errado para prejudicar Bolsonaro”. É uma loucura sem fim. Essas pessoas realmente acreditam que o mundo está girando em torno do presidente do Brasil e que tudo que acontece ou deixa de acontecer tem relação com ele.  Nunca se viu nada igual.

O antagonista natural de Bolsonaro, que deveria ser o PT e seu líder Lula, até agora manteve a posição de não atacar o presidente, sendo que Lula chegou a declarar que não iria chamar o “Fora Bolsonaro” que muitos brasileiros já estão chamando. De novo, deixa uma parcela bem significativa da população sem direção.

Assim, as gentes brasileiras seguem. Alguns devem permanecer em isolamento, mas serão poucos, porque o trabalho vai acabar definindo a volta. A maioria está nas ruas de novo e o ministro da saúde, candidamente, diz que se morrer muita gente, quem sabe o país volta a apostar no isolamento. Mas terá que morrer muita gente. Ou seja. É um governo que espera e aposta na morte. E ainda assim, o presidente segue mantendo um bom índice de aprovação.

Em meio à pandemia Bolsonaro incita seus seguidores a pedir intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. As instituições fazem ouvidos moucos e permitem que a Constituição seja rasgada, ao vivo e a cores. O máximo que fazem é lançar notas de repúdio. Da mesma forma os partidos de esquerda.

A nau Brasil parece seguir desgovernada, mas não, ela segue muito bem governada pelos interesses do capital. Afinal, em meio ao caos, nenhuma palavra dos empresários, dos industriais, da representação da classe dominante. Estão todos calados esperando que seus trabalhadores voltem e sigam girando a roda do dinheiro. Creio que desconhecem que quando Nero tacou fogo em Roma, queimou foi tudo.
 

domingo, 5 de abril de 2020

O outono do vírus não calou o Circo


Divulgação

Míriam Santini de Abreu

As luzes se acenderam sobre o picadeiro às 20h30 de sábado (4). Ao fim da contagem regressiva, entraram os palhaços. Com eles, iniciava-se o primeiro espetáculo virtual do Circo Rakmer em sua primeira visita a São José e Florianópolis (SC). Chegou e não pôde partir. Em 5 de março, a estrutura na frente do shopping Itaguaçu estava pronta para a estreia. Mas, depois de menos de duas semanas de shows e nem 500 pessoas, veio a ordem de quarentena e foi preciso parar. Aí, em meio à angústia sobre o rumo a tomar – e o da estrada era impossível – apareceu a ideia de levar a arte ao público por meio dos caminhos digitais.

Desde 31 de março, o convite aparecia nas redes sociais. O circo precisava de doações para se manter! No sábado, o apresentador Mário Motta, nascido, com o irmão Gilberto – também jornalista –, no Circo dos pais, Motinha e Nhá Fia, divulgou o pedido de doação de R$ 5,00. Ao longo da tarde, em grupos de WhatsApp, amigos convidados para conversas virtuais respondiam: – Só depois das dez da noite, porque às oito e meia vou ao circo! E, como se viu mais tarde pelos comentários nas redes sociais, teve quem fez isso depois de muito tempo ou pela primeira vez.

A live foi transmitida pelas contas do Circo no Facebook e no Instagram.  Pouco antes do início, os palhaços Poteto e Espoleta transmitiram ao vivo o making of da maquiagem. No Instagram, a estreia teve um toque ainda mais divertido. Uma parte da plateia virtual não parava de postar elogios e dar curtidas; outra pedia: – Desativa os comentários!  As palmas, corações e beijinhos, explodindo ao toque no smartphone, subiam tela acima sem parar, frisson virtual a substituir o calor das cadeiras vazias em volta do picadeiro.


Live no Instagram

Foi preciso improvisar, movimentar o celular no meio da live, lidar com o limite de uma hora de transmissão ao vivo do Instagram, driblar as atrações protegidas por direitos autorais, direcionadas às crianças depois da proibição de uso de animais em circos. Mas o gigante King Kong apareceu! No Instagram, a live atraiu cerca de 2.500 pessoas. No Facebook, em torno de 5 mil, e mais 4,9 mil na live de uma influencer. Acudiram pessoas de vários estados do país e até do exterior. “As doações vão ajudar a gente a se manter por um bom tempo”, diz, agradecido, o proprietário e apresentador do circo, Jeferson Rakmer, de 54 anos.

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Jeferson nasceu em Franca, no interior de São Paulo, em família circense, com ela se apresentando no Circo de Moscou. Em 1985, em apuros financeiros, fez contato com o empresário João Batista Sérgio Murad, o Beto Carrero, que viria a inaugurar em 1991 o parque multitemático em Penha, litoral catarinense. Integrado ao Mundo Mágico de Beto Carrero, precursor do parque, Jeferson ali permaneceu por 22 anos. Com o Circo Rakmer, iniciado em 2008, já vão outros 12. Hoje apresentador, Jeferson já foi palhaço, trapezista, adestrador: “Quem nasce em circo aprende de tudo e vai definindo o que quer fazer”.

Nas andanças com o circo, ele já viveu tanta coisa que os amigos dizem: – Fuça, faz um livro! O apelido nasceu de “Jefersonzinho” virado em “Jefucinho” e encurtado pra Fuça, e Fuça pegou. O fato de parte da família hoje morar em Manaus é uma dessas histórias. Era 1976 e o circo da família foi se apresentar naquela capital e cidades próximas. Nessas andanças por estradas marinhas, um dia a balsa entre Manaus e Belém quebrou e os Rakmer ficaram seis dias parados na beira do Rio Amazonas.

Agora, mais uma história vai para o livro. Quando a quarentena contra o coronavírus interrompeu o espetáculo em São José, Jeferson conversou com a família para sugerir o retorno a Manaus, onde moram dois irmãos, mas como pagar a passagem de 2, 3 mil reais? “Resolveram ficar aqui, a casa deles é aqui, no circo, ficaram todos sob as asas da gente, eles não têm mais vínculos com Manaus”, diz ele, que atua no Circo Rakmer com a mulher, cinco filhos, o genro e o neto. No total, são 45 pessoas, entre as quais 10 crianças. Decididos por ficar, foi preciso buscar saídas para contornar o fim dos espetáculos: “Fomos pegos de calças curtas. Atividades como a nossa a gente sabe que não vão liberar tão cedo. Somos os primeiros a parar e os últimos a voltar”.

A preocupação é ainda maior pelo desencontro de informações entre os diferentes níveis de governo, o municipal, o estadual e o federal. Fica difícil saber em quem confiar para tomar uma decisão. O temor piora porque, apesar de o circo ter um patrimônio, como os 12 trailers e ônibus, não há como fazer negócios em meio às restrições impostas para o combate ao vírus. Mas, com o passar dos dias, a ajuda para o sustento começou a chegar. A prefeitura de São José doou cestas básicas. O shopping permitiu que o circo, com capacidade para 900 lugares e cuja área foi alugada por um mês, ficasse armado sem pagar aluguel. “Nos trataram com dignidade”, ressalta Jeferson, ao mencionar que sabe de outros circos Brasil afora impedidos de entrar nas cidades e agora parados em postos de gasolina.

Sem estrutura montada, os artistas não podem ensaiar ou treinar, algo rotineiro para quem precisa se balançar em trapézios, jogar malabares, girar sobre motocicletas no Globo da Morte: “Nossa arte precisa de movimento”. Ele cita como exemplo também a situação do conhecido Cirque du Soleil, que cancelou apresentações e demitiu gente. E, por ora, será difícil encontrar trabalho em outro lugar. Jeferson explica que os artistas trabalham como microempreendedores individuais (MEI) e há constante movimentação de um circo para outro, especialmente entre aqueles que fazem acrobacias no Globo da Morte, atração muito disputada.

Os circos do Brasil, calcula Jeferson, têm uma média de 40 a 50 pessoas cada para divertir o público, mas é uma arte pouco lembrada nos discursos oficiais. O proprietário do Circo Rakmer fica com a voz embargada ao mencionar esse esquecimento: “A gente não é indigente! A gente entende todas as artes e vê que muitos programas de auditório usam o circo, as acrobacias, os malabares, mas é a música, é o teatro, que são considerados arte. Nós nos sentimos banidos, largados. Os circos são largados ao relento”. 

Um exemplo do esquecimento está na ausência de linhas de crédito específicas e na forma como são montadas as políticas públicas na área de cultura. O CNPJ do Circo Rakmer é de São Paulo, mas os espetáculos são itinerantes. Então, fica difícil concorrer tanto nos editais de São Paulo quanto em qualquer outro estado ou município que estimule produções locais: “Os circos são muito espalhados e não temos como acompanhar os projetos de lei. Há muita burocracia, cada cidade pede uma coisa diferente. Pagamos os alvarás, os impostos. Agora estamos caminhando para nos organizar e formar uma associação. É preciso entender que o circo é itinerante, mas também rotineiro”. Em Santa Catarina, por exemplo, o Circo Rakmer já circula há dois anos.

Jeferson lembra que grandes nomes da dramaturgia brasileira, como Lima Duarte e Ary Fontoura, passaram pelo circo. Para ele, o circo deve ser pensado como a mãe das artes e arte circense do Brasil, patrimônio cultural imaterial do país. Esse reconhecimento foi uma das principais reivindicações do 2º Congresso Sul-Americano de Circo, realizado em dezembro passado, em Campinas, São Paulo. Na primeira edição do Congresso, no Chile, o país-sede reconheceu o circo como patrimônio imaterial. Há, nessa arte milenar, com raízes nos artistas saltimbancos da Idade Média, patrimônio material concreto. Os circos sul-americanos empregam cerca de 50 mil pessoas, entre artistas, técnicos e outros colaboradores.

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Nesses tempos urgentes de invenção, o Circo Rakmer avisa ao público que domingo que vem tem mais. Parte dos frequentadores virtuais disse que o horário das 20h30 é tarde para as crianças e assim o próximo será às 19h30. Jeferson afirma que, nas lives de sábado, foi grande a emoção dos artistas com o espetáculo: “As pessoas estão tristes, só veem coisas duras, estão desnorteadas, sem saber o que vai acontecer”. Por isso, foi um desafio fazer em uma hora de live um espetáculo que, presencial, tem 1 hora e 40 minutos. Todos queriam se apresentar!

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Naquela uma hora, rindo à beça, eu compreendi porque, no magnífico filme "O Sétimo Selo", de Ingmar Bergman, só se salva da peste e da morte a família de artistas.