quarta-feira, 29 de abril de 2009

Verão em flor

Talbot, 1910

Fernando Karl

Uma das loucuras seria você pular, de madrugada, a janela do meu quarto, arranhada pelas roseiras que encontrou no quintal. Dizer, no meu ouvido, que está molhada com a chuva porque pensou em mim e, depois, pedir que eu te seque, não com a toalha, mas com o verão em flor.


Ato em comemoração ao Dia do Trabalhador

Entidades do movimento sindical e popular reunidas na Coordenação dos Movimentos Sociais de Santa Catarina estão divulgando a programação do Dia Internacional do Trabalhador. A data é celebrada em 1° de Maio, mas as atividades serão realizadas no dia 30, quinta-feira, no Largo da Alfândega, em Florianópolis, das 10 às 17 horas. Haverá palestras, exposição de fotografias, vídeos e atendimento à população, a critério de cada Sindicato. Às 17 horas iniciará a grande passeata dos trabalhadores, que irá percorrer as ruas da Capital.

"Maciço" será exibido na Casa da Memória

Nesta quinta-feira (30.04), às 19h00, na Casa da Memória (na frente da Câmara de Vereadores da Capital), será exibido o documentário “Maciço”, de Pedro MC. A sessão integra o circuito de apresentações gratuitas que o diretor está promovendo em diversos espaços da Grande Florianópolis, sempre com a presença de um debatedor – desta vez, o escritor Fábio Brüggemann.
Projeto contemplado no Edital Cinemateca Catarinense da Fundação Catarinense de Cultura (FCC), o filme parte da contraposição da imagem estritamente turística da Ilha de Santa Catarina divulgada pela mídia com a realidade vivida pelos moradores de 17 comunidades que compõem o maciço do Morro da Cruz, na região central da cidade.
Com pesquisa, entrevistas e co-produção de Karen Christine Rechia, doutoranda em história do Brasil na Universidade de Campinas (Unicamp), o projeto começou em 2004. Foram gravadas cerca de 102 horas de imagens para esta produção de 79 minutos, que consumiu um ano de decupagem detalhada e outro de edição. Os próprios moradores se envolveram na execução, fazendo trabalhos de bastidor.
A primeira exibição ocorreu no Cineclube Nossa Senhora do Desterro, no Centro Integrado de Cultura (CIC), no último dia 10.

terça-feira, 28 de abril de 2009

1º de Maio – Dia de valorizar o trabalho da mulher

Li Travassos

A fêmea será responsável pelo início da civilização e da própria raça humana. Por isso, Eva será acusada de levar Adão a comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, o que os levaria a serem expulsos do paraíso (paraíso este relacionado à inocência irracional dos outros animais). Senão, vejamos: quando os proto-hominídeos passam a locomover-se na posição bípede (provavelmente para poderem deslocar-se carregando alimentos, devido às estações secas na África), eles sofrem uma diminuição na pelve, o que, nas fêmeas, significa um encurtamento do orifício genital. A seleção natural levaria as fêmeas a começar a parir filhotes com crânios menores, que exigiriam, contudo, cuidados suplementares por meses ou anos. Com a posição bípede, são obrigadas a segurá-los nos braços ou prendê-los às costas – o que dificulta enormemente a caça de animais para seu sustento e dos filhotes maiores.
Chega, assim, o momento de fazer um acordo com os machos. Acordo este que seria fundamental para a sobrevivência da espécie: as fêmeas passam apenas a colher vegetais, sem ter que afastar-se das crias para procurar a carne, ou seja, caçar – tarefa que passa a ser exclusivamente masculina. Há uma imobilidade crescente da fêmea e dos filhotes, levando ao lar fixo, à criação de famílias nucleares, à fabricação de utensílios. A partir daí, as fêmeas vão libertando-se do cio, pois a mortalidade no parto continua alta, e é preciso que possam ser fecundadas sempre que possível, ou seja: em todos os meses. A união entre macho e fêmea aumenta, permitindo às mães a ocupação com vários filhotes ao mesmo tempo. Anos depois, surgiria o primitivo ser humano (ver mais sobre este assunto em TRAVASSOS, Mulher, História, Psicanálise. Florianópolis, 2003. Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Psicologia, UFSC).
Durante um certo período, esta divisão de tarefas de acordo com o sexo (o conjunto de características, como tarefas, vestimentas, comportamentos, etc., que se espera de cada sexo em uma dada sociedade e/ou época é chamado de "gênero") é considerada ideal, pois cada um contribui com uma parte importante da alimentação e, se o homem arrisca a vida na caça, a mulher o faz no parto, então ambos têm muito valor nas sociedades primitivas, sendo a mulher em alguns períodos retratada como tendo um poder divino em função da maternidade. Contudo, quando o ser humano deixa de ser nômade, as mulheres passam a plantar, e os homens a criar animais, ao invés de caçá-los. Ao observar estes animais, o homem descobre que o macho tem uma grande importância no processo de fecundação e, conseqüentemente, a importância das mulheres é muito diminuída.
Com a fixação na terra, as tribos passam a lutar entre si pela mesma, e os homens têm seu poder aumentado por arriscar sua vida na guerra. Neste período, a terra e as mulheres pertencem à tribo. As tribos vencidas tornam-se escravas das outras, e a mulher escrava é sempre tratada de forma ainda mais abjeta que os homens na mesma condição. Contudo, viver em guerra constante traz grandes desvantagens também, e os homens desejam criar laços de amizade com outras tribos. Assim, passam a "trocar as mulheres" como forma de conquistar a paz. Ou seja: um homem abre mão de uma irmã para conquistar um cunhado, ou de uma filha, para conquistar um genro. Surge a proibição do incesto, e a mulher, agora como objeto, não mais como sujeito, é novamente responsável por um passo sem precedentes na civilização humana.
A propriedade privada, que se seguirá nesta história, trará, por sua vez, a necessidade de castidade para as mulheres solteiras, e de fidelidade para as mulheres casadas, permitindo a transmissão da herança para os descendentes legítimos dos homens. Para que isto seja garantido, as mulheres precisam ficar restritas ao ambiente doméstico. Os homens prosseguem se impondo pela força, pela inteligência desenvolvida no trato social, e alguns, pela esperteza suprema de dizerem-se filhos dos deuses, portanto soberanos divinos. Há uma grande diferença de poder entre os homens, e alguns tornam-se servos dos outros, sendo que o trabalho das mulheres servas é sempre mais humilde que o dos homens.
Com a Revolução Industrial, em 1750, a força de trabalho feminina torna-se necessária nas fábricas e as máquinas tornam desnecessária a força física no trabalho. Mas os homens estão cansados da diferença de poder entre os homens (leia-se seres humanos do sexo masculino). Desejosos de uma igualdade entre os homens, irão, com o início na Revolução Francesa (ainda no século XVIII), iniciar também, sem querer nem perceber, a destruição do patriarcado. Há, então, uma analogia entre Deus, o soberano e o pai. O soberano ou rei é o pai de todos, escolhido por Deus. O pai de família é o soberano em sua casa. Por meio desta analogia, ao matar o rei na Revolução Francesa, o próprio homem acaba com qualquer idéia de superioridade natural (incluindo a do homem sobre a mulher).
Mas, da mesma forma que aqueles que perdem seu poder sobre outros homens sentem-se lesados por isso, o homem comum, o dito "pai de família", irá resistir muito até admitir a necessidade de abrir mão de seus poderes na célula familiar. A luta pela igualdade pára na fronteira entre os sexos. A maioria dos homens busca livrar-se do patriarcado político, mas deseja, a qualquer preço, manter o patriarcado familiar (muito já se criticou a esquerda política por não incluir a igualdade dos sexos entre suas bandeiras).
Assim, na continuidade da história humana, as diferenças físicas entre os homens e as mulheres serão supervalorizadas, visando definir o lugar "natural" de cada um. A mulher, pela sua biologia, deve limitar sua existência à tarefa de ser mãe, e cuidar do lar e dos filhos (e do marido, por conseqüência). As mulheres de famílias de baixa renda precisam continuar contribuindo para o sustento de suas famílias, mas seu trabalho será sempre o menos valorizado.
Assim, as mulheres do século XX terão, no mínimo, que engravidar, carregar a criança por nove meses, parir, amamentar, vestir, limpar e lavar seus filhos, continuando a alimentá-los depois do desmame. A maioria esmagadora deverá ainda, sem ajuda alguma, cuidar da limpeza da casa, das roupas de toda a família, da alimentação do marido, etc. Resumindo, ser dona de casa sem nenhuma ajuda já representa um trabalho hercúleo. Algumas mulheres contam com a ajuda de outras mulheres para estas tarefas. Se não forem mulheres de sua família, serão babás, lavadeiras, cozinheiras, arrumadeiras, faxineiras, enfim, como diaristas ou mensalistas, um batalhão de mulheres que, além de cuidar de suas próprias casas, maridos e filhos, ajudam a cuidar das casas, maridos e filhos de outras mulheres. Muitas vezes tratadas quase como escravas, a maioria destas mulheres que fazem trabalhos domésticos nas casas dos outros não acha nada bom ter que trabalhar fora de casa. Mas o salário do marido não é suficiente para o sustento da família. Justo seria que ele dividisse com ela as tarefas domésticas, não? Mas muito raramente isso irá acontecer.
Na classe média as mulheres estudam, e valorizam o fato de terem uma carreira fora de casa. Conseguem um bom desempenho em todos os campos de saber, e em todos os tipos de manifestações artísticas. Contudo, se todas as tarefas maternas e domésticas permanecem em suas mãos, podem questionar a "diversão" de ter uma vida profissional. Além disso, as mulheres são acusadas por tudo que dá errado dentro de casa, mesmo que trabalhem arduamente e colaborem efetivamente para o sustento da família. Acima de tudo, a mulher é responsabilizada pelos problemas que os filhos apresentam. As mulheres são responsabilizadas de tal maneira pelos filhos que dificilmente conseguem creches e escolas de período integral, tendo que arrumar alguém para cuidar dos filhos caso trabalhem o dia todo, além de ter que lidar com os enormes períodos de férias escolares que não fazem mais o menor sentido...
Sem nunca ter deixado de trabalhar, a mulher sempre encontrou tempo para, paralelamente, ir lutando por seus direitos. Assim, passou a poder votar e ser votada na maioria dos países, a ter sua vida e integridade física minimamente respeitadas, mas, embora a lei determine salários iguais para tarefas iguais em grande parte do mundo, as mulheres ainda ganham menos que os homens em muitos lugares. No Brasil, o Estado de SC é campeão de desigualdade. Vale ressaltar que a mulher só se aposenta do trabalho "fora de casa". As tarefas domésticas costumam permanecer sua responsabilidade até que a morte ou uma doença degenerativa a impeçam de prosseguir. Apenas nas famílias muito, mas muito ricas, as mulheres não precisam se preocupar sequer em comandar a organização doméstica e a alimentação da família. Nestes raros casos, são substituídas por governantas ou mordomos.
As mulheres ajudam a cuidar dos netos e dos sobrinhos. As mulheres cuidam dos filhos doentes, cuidam dos netos doentes, cuidam dos pais e mães doentes e, sobretudo, cuidam dos maridos doentes, mormente até a hora de sua morte. Coisa que dificilmente um marido é capaz de fazer por sua esposa. Neste nosso século XXI, é cada vez mais comum ver homens que moram no imóvel que pertence à mulher, que ganham menos do que a mulher, e mesmo que são totalmente sustentados pela mulher – neste último caso, sem que isto lhes incomode em nada ou lhes incentive a procurar um trabalho, muitíssimo pelo contrário.
Pesquisas já comprovaram que irmãos de sexos diferentes criados exatamente da mesma maneira mostram apenas uma diferença realmente significativa: os homens são fisicamente mais fortes. Contudo, as religiões ainda consideram os homens naturalmente superiores às mulheres. A não ser que as religiões considerem que a força física ainda é muito importante no século XXI fica difícil entender que superioridade é esta. É claro que isto só se explica pelo fato de que a maioria esmagadora dos líderes religiosos são homens. E dificilmente alguém se dispõe a perder um poder uma vez adquirido, mesmo quando não tem mais como justificá-lo.
No mês de maio, além do dia do trabalho, comemora-se o "dia das mães". Um super incentivo ao consumismo, este dia muito frequentemente leva os filhos (e o marido) a presentearem a mãe com algum objeto ou eletrodoméstico que irá facilitar para ela a realização de tarefas que interessam a eles próprios. De batedeiras e liquidificadores a máquinas de lavar roupa, fogões e até mesmo geladeiras, os presentes são para toda a família, hipocritamente disfarçados de amor filial.
Já é hora de dar um basta na desvalorização do trabalho da mulher e, portanto, na desvalorização da própria mulher, pois não se pode considerar libertário aquele que não defende exclusivamente os sistemas ideológicos ou políticos que pressupõem direitos iguais para todas as pessoas, independentemente de sexo, etnia, orientação sexual, etc.
Também no dia do trabalho não custa lembrar que enquanto tiver trabalho escravo e/ou trabalho infantil (na maioria das vezes escravo também) dentro de suas fronteiras, nenhum país pode ser considerado justo, ético ou democrático. A erradicação destas formas de trabalho deveria ser prioridade máxima em todas as escalas de governo.
E tudo isso é tão óbvio, que eu quase não sei como terminar este texto. Então, o farei com o desejo de que este 1º de maio de 2009 seja um "dia do trabalho" realmente revolucionário. Se não no mundo concreto, onde as mudanças demoram para acontecer, ao menos nos "corações e mentes" de cada um e de cada uma de nós, onde toda revolução se inicia...

domingo, 26 de abril de 2009

Eu, O Idiota

Raul Fitipaldi - www.desacato.info

Eu, O Idiota, fui recarregar o cartão magnético do ônibus e me defrontei com uma nova infâmia: se quero comprar R$5,00 em passes não posso. Ou seja, se desejo aproveitar a diferença de R$2,70 para R2,10 para pagar-me um mísero cafezinho, não posso. Sou pobre, a caminho da exclusão pelo transporte privado de passageiros de Florianópolis. Se quero formar parte dos avantajados pelo cartão, tenho que recarregar no mínimo R$ 8,50. Quero ser incluído, nem sempre posso.
Eu, O Idiota, escutei na rádio que o preço do latão em Florianópolis apenas subiu em longo tempo um 9%. E inteirei-me de que a população não cresceu em Florianópolis, e mais, que a qualidade do serviço melhorou. Eu, O Idiota, não entendi.
Idiota, que é isso que eu sou, equivoquei-me em todos estes anos. Pois é, achei que em toda a cidade acontecia o que na minha rua. Minha rua se encheu de novos vizinhos, boa parte deles gaúchos e outros loiros com sotaque do oeste. Eles me contaram que vieram morar aqui porque a agricultura familiar acabou. E eu, Idiota acreditei. Eles estão de visita! Os 200 mil habitantes, que acrescentou Florianópolis, nos últimos quinze anos eram fruto da minha mente alterada. O que não compreendo é por que, se estão de passagem, os continuo vendo ir e vir nos latões que servem no Rio Vermelho. Caracas, temos apenas 200 mil habitantes, mas parece que fossem 450 mil!
Não sei somar nem multiplicar. A professora já dizia que eu era inadaptado e idiota. Por isso meus cálculos são falhos. Pareceu-me que quando no governo da Ângela Amin instalaram o Sistema de Transporte com Reserva de Mercado Incluída (STRMI), eu perdia (e perco) mais uma hora por dia; meia para ir e meia para voltar ao centro – baldeação mediante. Eu multipliquei uma hora por cada dia útil e me deu que perdia 5 horas por semana, logo, 20 horas por mês. Que se trabalhasse aos sábados perderia 24 horas, ou seja, lhe daria de presente ao Sistema de Transporte com Reserva de Mercado Incluída, um dia de vida por mês, 12 dias de vida por ano. Mas, errei, dizem os senhores da Secretaria de Transporte Urbano de Florianópolis, que o serviço melhorou. Certamente me equivoco quando penso que em terreno público se montou um terminal de ônibus, e que as empresas ficaram com ele, e que o que pagam por cada ônibus para utilizá-lo vai pro bolso deles, e quem paga sou eu, O Idiota, que não enxerga uma pinóia.
Não tenho do que me queixar: se tenho R$ 8,50, ou carro para poluir e engarrafar a cidade, ou do contrário, paciência eterna para ver como minha coluna se destrói a cada dia em homenagem ao STRMI dos donos da minha vida, do meu tempo, da nossa cidade, que me explicam com ator global incluído que eu não entendo nada disto, tudo bem! Ainda tenho trabalho, quero mais o que? Se faltar-me serviço não precisarei de ônibus, com a recessão não vou conseguir emprego à minha idade...
Porém, eu sofro de Idiotice Teimosa. Daí que acredito piamente que estão me mentindo. Porque de fato lhes dou de presente 20 horas da minha vida por mês. Porque não posso usar a diferença entre o ladrão R$2,70 e o caríssimo R$2,10, e então pago R$ 5,40 para ir vir; e o salário mínimo brasileiro por hora me paga algo parecido a R$ 3,15. Portanto, quase preciso doar ao patrão, e à empresa de ônibus, duas horas de trabalho por dia para me manter no MERCADO. Dôo-lhes então 10 horas por semana, e ao fim do mês, 40 horas. 440 HORAS DE TRABALHO ANUAL DE GRAÇA (descontei um mês de férias). O SETUF e o STRMI poderiam me mandar uma cartinha de agradecimento por ser um escravo bem comportado, né?
Essa Idiotice que me persegue desde a infância me permite pensar que me estão preparando para um novo aumento do preço do ônibus, como já tinha suposto em algum artigo anterior. A tal estultice que me adorna me convence de que isso é bom para os revendedores de carros, para os postos de gasolina, para os vendedores de acessórios para carros, e lógico, para os que ganham essas maravilhosas concessões, geralmente passada a meia-noite, e só cada dez anos, tem que fazer o cirquinho da licitação pública, e às vezes nem isso. A cidade seguirá se poluindo, o engarrafamento justificará mais elevados de cimento, mais sinaleiras, mais zonas azuis, mais e mais lucro para as simpáticas novas e velhas oligarquias da cidade e seus empregados políticos que ocupam a Câmara de Vereadores e o Paço Municipal.
No entanto, não me leve a sério. É que hoje peguei 8 ônibus, todos a 2,70 porque esqueci o cartão que me inclui na sociedade dos menos pobres dos pobres; como o ônibus quebrou perto da subida do morro de Ingleses (carro novo, desses com três faróis de cada lado na traseira); como chovia pra xuxu; como tenho que sair daqui a 6 horas de novo para voltar a dar de presente uma hora de viagem e duas horas de trabalho; como não enxergo que a cidade está inchada de gente, de carros, de motos, poluindo-se velozmente; como confundo com vizinhos os entes galegos do fim da rua, que na verdade não moram aqui, segundo deixa entrever o anúncio do SETUF; como está tudo legal segundo as empresas de transporte que se autofiscalizam para o bem comum ... Eu Sofro Porque Sou Um Inadaptado aos benefícios que Ângela, Dario e quem vier atrás estão me oferecendo e lhe faço perder tempo lendo estas bobagens. Definitivamente sou O Idiota. E você, é quem?

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O tempo do pó

Míriam Santini de Abreu
Era o tempo da volta ao pó. Uma aridez na terra jamais vista. Lembro-me do caminho deserto sob o qual eu pisava, o medo me envilecia um pouco. O medo do fim. Mas eu subia a montanha porque era preciso procurar a chuva.
A senda era cada vez mais estreita, o nevoeiro espesso tapava o mundo. Um ar quase sólido. E então, num átimo, o cume abriu-se diante de mim. Pisei em falso, segurei-me em nada, uma vertigem assustadora. Estava ali a treva do tempo. A origem da chuva. Na entrada de uma gruta o ser emplumado, do qual vi apenas o dorso negro com duas asas. Tlaloc? Chiqui? Dzahui? Chaac? Eu apenas soube, quando o vi, que o tempo do pó havia passado.

Palavras...

Eu vivia numa noite sem igual.
Então chegaste, meu rosto adorado.
De tal noite fizeste um dia amorável.
Cantaste melodias e, sempre amiga, disseste as
palavras de que eu andava sequioso.
E aquelas palavras, que nunca esqueci,
Estavam impregnadas de um remoto sopro, tão
sagrado,
Que aquela noite funesta dissipou como fumaça.
Firdusi, poeta persa,
939-1020 d.C.

Gim

A noite acaba feito gim. E eu tenho dificuldade de dizer não à noite. O senhor K. não é uma criatura débil como uma haste de verbena; e até afirmou, em determinada ocasião, que o excesso é fundamental; que o excesso leva ao Castelo da Pureza; disse, igualmente, que a vida lhe fugia em cada sopro que vazava dos lábios finos do destino. Tinha um olhar, o senhor K., de ser gerente do The Bay Hotel --- mas ele é o gerente do The Bay Hotel –, apenas esqueceu por um instante. Seus primeiros pensamentos da manhã já se parecem com os seus últimos pensamentos do dia. A cabeça, a do senhor K., mais bruta do que a cabeça do açougueiro Hamm. Apenas o tédio é, nesse meio-dia de verão, mais bruto, e cáustico. Não aspira, o senhor K. não aspira nunca ao céu. Como Orfeu, parece que está sempre recolhendo no vaso da alma, a um só tempo, um sáurio gravemente ferido e uma deusa com tímpanos de chuva. E eu tenho dificuldade de dizer não aos tímpanos da chuva. A noite acaba feito gim. Foi sugerido ao senhor K. que, entre as cinco irmãs — escolhesse uma—, e o senhor K. apontou para Joana, a única a quem a natureza tinha dado todas as rosas do amor. E eu tenho dificuldade de dizer não às rosas do amor. Todas as outras quatro irmãs mais pareciam ter seiva de areal, isto é, eram secas. Eu convido Joana para as fadigas de uma noite de núpcias ou o lúbrico serpentário da língua na nuca. Joana, a boa menina, lânguida após um copo de gim ou mais lânguida se o senhor K. tenta acariciar o musgo molhado entre suas coxas. E eu tenho dificuldade de dizer não às tuas coxas. A noite acaba feito gim. Joana guarda no relicário íntimo a sua fragilidade e a razão de preferir uma Cassiopéia boreal a uma longa temporada no Gehenna fumegante; entre ácaros e lesmas, entre chifres e cascas de cigarra. Um sopro inaudível conta à Joana que ela sabe mais que as plantas e os peixes; que ela sabe mais que os santos. Joana morena, olho verde, cabelo comprido. Por causa dela o galã da noite – o senhor K. – poderia até entoar antífonas religiosas na Ilha da Ilusão ou, após beber litros de gim, cairia de língua nas peles, nos pêlos dessa Joana de circunstância – dessa mulher que enxágua retinas – e se entrega, de quatro, feito uma piscina molhada, ao senhor K.. E eu tenho dificuldade de dizer não a uma piscina molhada. A noite acaba feito gim.

Fernando José Karl

Inteira... para o paraíso

eu te amo porque a vida é breve
depois seremos apenas um pensamento que corre no bosque
com saudade dos domingos
que não passamos à beira-mar
eu não te quero pra mim
eu te quero só pra ti
inteira
para o paraíso
Karl

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Os carros que se danem

Elaine Tavares

Foi preciso muita luta, mas, enfim, os trabalhadores conseguiram que a prefeitura de Florianópolis iniciasse um processo de melhoria no tráfego do transporte coletivo. A criação dos corredores exclusivos de ônibus nos horários de pico é uma ação verdadeiramente necessária e se configura numa melhoria de curto prazo, até que se possa definir, de verdade, um transporte coletivo de qualidade. É pequeno, mas é um avanço.
Antes desta decisão, as pessoas que faziam o trajeto de volta para a casa depois do trabalho precisavam amargar horas nos engarrafamentos, e todos eles provocados pelo excesso de carros. Agora, quem vai de ônibus chega mais rápido e é assim que deve ser. Eu mesmo, que moro no Campeche, sei bem o que era chegar ao lar quase às nove horas da noite, por conta das tranqueiras do trânsito.
Pois não foi sem surpresa que vi apresentador do programa popular César Souza neste dia de feriado vociferar contra as faixas exclusivas. Fiquei passada porque imaginava eu que ele fosse um defensor do povo como diz ser. Mas quê! Estava ele a defender o “inalienável” direito dos que têm carro e querem o maior conforto para transitar na cidade. Ah, sim, senhor apresentador. Apenas os mui dignos representantes de sua classe e os da classe média aburguesada.
Os trabalhadores lutaram anos a fio por essa minúscula melhoria, porque ela tampouco dá conta do transtorno que é tomar um ônibus nesta cidade. Faltam horários, os ônibus são velhos, as esperas intermináveis e longas são as filas. Mas, pelo menos, com a faixa exclusiva se demora menos para chegar a casa. Os que estão no carro, geralmente só com uma pessoa dentro, que passem a usar o transporte público ou então que fiquem nas filas. São eles que atravancam o trânsito e estão muito mais confortáveis que nós, em pé, nas latas velhas.
Portanto, minha gente, fiquemos de olho. A pequena burguesia motorizada já está gritando. Não quer esperar nas filas. Nós precisamos ficar unidos para manter a decisão da prefeitura. Para quem pega ônibus a vida melhorou duzentos por cento e não vamos permitir que isso volte atrás. Vida longa aos corredores.

P&N 17 está no forno!







A edição 17 da Pobres & Nojentas chega na próxima semana, com duas reportagens especiais, uma assinada por Marcela Cornelli e outra por Elaine Tavares. Marcela fala sobre o projeto do governo para construção de moradias. Já Elaine escreve a respeito da proliferação da monocultura de pinus em Santa Catarina. SE VOCÊ NÃO ASSINOU A POBRES, A HORA É AGORA! A edição 18, de maio/junho, irá celebrar a entrada da revista no quarto ano. A equipe da P&N já está cheia de idéias para marcar esse evento. Vamos divulgar em breve!

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Beleza no Museu da Escola Catarinense



A peteca de penas coloridas, o telefone de lata, a madeira viva na forma de brinquedo... Belezas do Museu da Escola Catarinense, onde a infância é uma sarça ardente.

Um pouco sobre tudo e tudo sobre o mesmo

Li Travassos
um café um cigarro um trago tudo isso não é vício
são companheiros da solidão mas isso só foi no início
hoje em dia somos todos escravos e quem é que vai pagar por isso?
Lobão e Bernardo Vilhena
Começa que, semana passada, uma amiga sofreu um aborto espontâneo, coisa que me coloca em depressão automática, e quando vi, no caminho pra casa tinha comprado um cachecol (preto,claro!) e um livro. Absolutamente dispensáveis os dois: estava lendo dois outros livros – um tanto mais indigestos, é verdade – e, em breve, deverei poder fazer uma cortininha de cachecóis pretos, na boa. Mas enfim, ambos de boa qualidade, o livro eu já estou no meio, o cachecol o tempo já está facilitando usar, mas a questão é o quanto estas duas compras, boas, mas totalmente desnecessárias, vieram preencher um espaço interno com o qual não têm nadíssima de nada a ver e, ainda por cima, em tempos de pouco dinheiro. Fiquei pensando nestas substituições neuróticas que a gente faz. E em quanto paga por elas. Afinal, continuo carregando quase todos os quilos que ganhei há uns 6 anos atrás, quando parei de fumar, vício que durou uns 27 anos, durante os quais eu consumi de um a dois pacotes de cigarros por semana (cada pacote, para quem não sabe, tem 200 cigarros)...
E fiquei, também, questionando minha fúria contumaz contra pessoas que compram, compram, compram, incentivando o tal do "capitalismo selvagem", em detrimento da produção daquilo que nos é realmente necessário, e que poderia ser para todos... Eu, que tenho um vestido indiano de 30 anos de idade (verdade que eu fiz, mais jovem, a estupidez de tirar as mangas, sem saber da importância das ditas cujas para uma mulher de meia idade, mas eu dou um bom jeito nisso...). Eu, que mando reformar minhas roupas ad nauseam (náusea esta da costureira, claro). Eu, que mantenho o mesmo celular até ficar impraticável, e assim por diante. E assim mesmo não posso dizer que não seja uma pessoa consumista, mas enfim, fiquei pensando o quanto algumas pessoas com muito dinheiro estão apenas tentando preencher o mesmo vazio que alguém que usa drogas, fuma, bebe, come demais... o que, é claro, eu já sabia, mas acabei "sentindo" melhor com esta situação, e não é que eu deixe de achar estas pessoas horríveis, mas me veio na mente a música de Cazuza: "Vamos pedir piedade, Senhor, piedade, pra esta gente...
"Hoje, a rede Globo nos brindou com duas histórias verídicas: a primeira, sobre a África de hoje, em parte miserável, em parte com desenvolvimento a pleno vapor, enfim, com cada vez mais desigualdade social. A África, agora, está sendo invadida pelos chineses que, segundo a reportagem da Globo, lá estão "montando um império": fábricas, estradas, etc. Além disso, para lá estão mandando pessoas para trabalhar, o que impede a diminuição do desemprego entre os africanos. Melhor que isso: para lá o governo chinês está mandando seus criminosos, que além de cumprirem pena trabalhando, o farão bem longe e ainda mais barato.
A segunda história é que há, no Brasil, lojas de produtos para cachorros promovendo um tipo de festa chamado "pet balada", onde, pela módica quantia de 600 reais (ou seria 666?) você promove uma festa para seu cachorro, regada a comidinhas e bebidinhas (exclusivamente para cachorros), à qual os cachorrinhos de seus amigos irão, todos cobertos de jóias, roupas de grife e perfumes. Troque seu cachorro por um africano pobre...
Para completar, como está virando hábito no Banco como qual trabalho, em vésperas ou pós feriados, hoje deu pau no sistema, e eu tive que pagar algumas contas com um cheque, no caixa, ainda assim tudo muito lento, tudo muito difícil, e eis que o caixa do lado começa a tentar puxar, de brincadeira, uma "Salve Rainha" ("gemendo e chorando neste vale de lágrimas"), oração que eu, com a minha memória de declamadora, sei de cor, então eu a desfio inteira, e completo dizendo: e olha que eu não sou mais católica, hein... ? Ao que a caixa que está me atendendo, surpresa, pergunta: "E dá pra deixar de ser católica?" Dá, sim senhora. Dá pra deixar de ser católica, deixar de ser grávida, deixar de ser fumante, deixar de ser jovem, dá para deixar de ser tudo. Tem gente que deixa (?) até de ser afro-descendente. Tem uns que deixam de ser seres racionais, outros preferem deixar de sentir, daí vamos nos entupindo de muito de tudo, e não vamos percebendo que o buraco é mais lá dentro.
Não faltasse mais nada, neste final de semana descobri, tarde demais (coisa de pobre) que o lá-no-alto-deste-texto-citado Lobão estaria hoje, segunda feira 20 de abril, cantando de graça aqui em Floripa. Por que descobri tarde demais? Porque primeiro foram avisados (e receberam convite) os já freqüentadores do local, que não deve de ser barato, além de não ser nada perto, enfim, ficava mais fácil se fosse a preços populares no Centro da cidade do que assim, mas vip é vip. E eu não queria ir mesmo, que o Lobão está verde e eu nem tinha uma roupa preta nova pra pôr...

Sindicato dos Jornalistas discute atuação do Grupo RBS em Santa Catarina


Na semana em que é celebrado o Dia do Trabalhador, o SJSC realiza a Semana do Trabalhador Jornalista, cujo eixo será a atuação do Grupo RBS no Estado. A primeira atividade será na segunda-feira, dia 27, e a segunda no dia 30 de abril, quinta-feira.
No dia 27, no auditório da FECESC, na Capital, haverá a mesa-redonda Grupo RBS: Domínio Econômico e Discursivo, da qual participam Celso Tres, Procurador da República em Tubarão, e Danilo Carneiro, membro do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ. No dia 30 será feita panfletagem, das 10 às 13 horas, no Largo da Alfândega em Florianópolis, com esclarecimentos sobre a profissão de jornalista e as implicações da atuação do Grupo RBS no Estado, que é alvo de uma Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal em Santa Catarina.
A Ação, de número 2008.72.00.014043-5, busca tutelar o direito de informação e expressão da população catarinense. O principal objetivo é anular a aquisição do jornal A Notícia, agora do Grupo RBS. Além disso, o MPF quer reduzir o número de emissoras de televisão do Grupo ao máximo permitido por lei, que são duas.
Para o MPF, a situação de oligopólio é clara, em que um único grupo econômico possui quase a total hegemonia das comunicações no estado. Por isso, a Ação discute questões como a necessidade de pluralidade dos meios de comunicação social para garantir o direito de informação e expressão; e a manutenção da livre concorrência e da liberdade econômica, ameaçadas por práticas oligopolistas. O Grupo é a maior rede regional de TV do país. São 18 emissoras de TV, 26 emissoras de rádio AM e FM, oito jornais e 4 portais na internet.
Outro problema é bastante conhecido pelos jornalistas. Vários profissionais foram demitidos quando o Grupo comprou o jornal joinvilense, e em 2009 ocorreu novo “enxugamento” nas redações. Além de questão do desemprego de profissionais com experiência, outro fato preocupante é que a RBS consolida uma posição discursiva privilegiada: dona de emissoras de rádio, de tevê e de jornais, ela é a grande fonte de interpretação da realidade social, espacial, política, econômica, do Estado. Santa Catarina se vê pelos “olhos” da RBS, que consolida a memória das coisas a dizer, filmar e escrever sobre SC.
O Procurador Celso Tres é um dos autores da Ação e irá conversar com os jornalistas sobre a iniciativa do MPF/SC. Já Danilo Carneiro falará sobre as limitações da forma jurídica no que se refere ao acesso da população aos meios de comunicação.
No dia 30 de abril, quinta-feira, das 10h às 13h, no Largo da Alfândega, na Capital, esse debate será levado à população como parte da iniciativa do Sindicato de refletir sobre o fazer dos jornalista no Dia do Trabalhador.

Programação:

SEMANA DO TRABALHADOR JORNALISTA

Segunda, dia 27, às 19 horas, no auditório da FECESC, na Av. Mauro Ramos, 1624, na Capital:

Mesa-redonda - Grupo RBS: Domínio Econômico e Discursivo em SC
* Fundamentos da Ação Civil Pública 2008.72.00.014043-5 – Celso Tres, procurador do Ministério Público Federal em Santa Catarina
*Comunicação, Estado e Capital: as limitações da forma jurídica – Danilo Carneiro, membro do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, inválido pela tortura

Quinta, dia 30, das 10h às 13h, no Largo da Alfândega, na Capital:
Panfletagem com esclarecimentos sobre a profissão de jornalista e as implicações da atuação do Grupo RBS no Estado

Sinergia incentiva leitura


Todas as bibliotecas públicas de Santa Catarina, diversas escolas e universidades do estado e mais de 100 entidades culturais do país estão recebendo - gratuitamente - um exemplar do livro Conto e Poesia, publicado no segundo semestre de 2008. A obra reúne os 45 trabalhos selecionados no 6o Concurso Literário promovido pelo Sindicato dos Eletricitários de Florianópolis - Sinergia. Dado a abrangência e credibilidade do concurso, a obra representa uma significativa mostra da recente produção literária do estado. Com a remessa desses quase 800 exemplares, o sindicato busca facilitar o acesso a essa produção e estimular a leitura de textos de escritores catarinenses. Essa iniciativa faz parte de sua política de ação, uma vez que o Sinergia compreende a cultura como o maior e melhor instrumento de desenvolvimento humano e de uma nação.
Há 18 anos o Sinergia incorporou a ação cultural como parte de sua ação política, na sua relação com a categoria e com a sociedade. Em 2007 o sindicato lançou o livro "Sindicato e Cultura - da prática à teoria: a experiência do Sinergia', que conta a história dos 17 anos da ação cultural. Dentre os projetos culturais de maior destaque estão o "Meia Hora", que leva apresentações culturais para os locais de trabalho, as oficinas, e o concurso estadual Conto e Poesia.

terça-feira, 21 de abril de 2009

Três segundos...


Fernando Karl
Se a cada 3 segundos morre uma criança no mundo, eu acho que já está na hora de acabar com essa frescura de sofrer por qualquer coisa. Tudo é insignificante e nada faz sentido se a cada 3 segundos uma criança morre no mundo. Ou uma criança não é nada? Sorva água da torneira como se fosse a última vez. Veja beleza suprema nisso! Acaricie a fronha do travesseiro e coloque açúcar no café com devoção. Olhe uma folha durante horas. Ouça atentamente as máquinas na lavanderia. Dê o nó no cadarço e lembre-se que você não é melhor que uma criança que morre a cada 3 segundos. Fique longamente no cais deserto. Coloque seu tímpano no tórax para escutar o coração dessa pessoa que está a seu lado. Ela não morre a cada 3 segundos no mundo vasto mundo. Enquanto escrevi essas linhas morreram mais 28 crianças. Onde está a lógica disso tudo? O melhor mesmo é tocar um tango argentino. Êta vida besta, meu Deus!



Imagem: Liv Krecke Kaada

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Palavras não bastam

Elaine Tavares - jornalista

O discurso do presidente Barak Obama na V Cúpula das Américas foi absolutamente claro no que diz respeito à relação que seu governo pretende ter com a América Latina: ou os países da América Latina fazem o que ele manda ou a mão do império se abaterá sobre eles. Os otimistas dirão que isso é uma loucura, que nada disso foi pronunciado e, em parte, estarão certos. A fala, assim, não foi pronunciada. Mas, como dizia Jesus, quem tem ouvidos para ouvir, ouviu.

Barak Obama é um homem cheio de bossa. É bonito, é simpático, carismático. Chegou com sorrisos, apertos de mão, disposto a ouvir inclusive aqueles que eram considerados “terroristas” pelo governo Bush, tal como Chávez e Morales. Falou depois do discursos de outros presidentes e não moveu qualquer músculo quando ouviu as críticas ao governo dos Estados Unidos e seu criminoso bloqueio a Cuba. Mas, quando falou, foi claríssimo. Disse que ele era diferente dos presidentes anteriores e que iria promover mudanças. Pediu que o passado fosse esquecido e que agora os demais presidentes olhassem para frente. Depois, seguiu num simpático discurso de união, respeito e cooperação. Salientou quatro pontos em relação aos quais gostaria de ter a parceria amiga dos países da América Latina: a segurança, a energia, o combate ao narcotráfico e os Direitos Humanos.

Sobre Cuba a fala do “adorável” presidente não foi diferente da de qualquer outro que já passou pelo cargo. Poderia sim rever o bloqueio ou estabelecer novas relações, mas Cuba deverá “ter antes eleições livres e respeitar os direitos humanos”. Ora, qual é a diferença dos Bush pai e filho, de Reagan, de Clinton? O mesmo velho e rançoso papo da liberdade e da democracia que serve de “desculpa” para as centenas de invasões e mortes provocadas pelo país no passado que Obama pede para todos esquecerem.

Obama diz que já estendeu uma mão a Cuba liberando a remessa de dinheiro e as viagens, e que agora Cuba precisa soltar os presos políticos e entrar no rumo da democracia garantindo a liberdade de expressão. Ora, de qual democracia Obama fala? Desta em que os cidadãos só votam uma vez a cada quatro anos e quase nada sabem do que se passa no mundo? Ou a democracia cubana na qual as gentes participam dos processos decisórios desde os comitês de rua? E como falar em “soltar presos políticos” quando tem uma base de Guantánamo repleta de gente que não teve sequer direito a um julgamento, além de sofrer torturas inimagináveis? E a liberdade de expressão, o que isso quer dizer? Liberdade de empresa, como a que existe nos EUA? Se esquecermos o passado podemos até pensar que a fala de Obama pode ter alguma novidade. Mas, é possível esquecer?

As quatro metas

Outros elementos do discurso de Obama devem servir para colocar a América Latina com as barbas de molho, mesmo aqueles que decidirem “esquecer o passado” de invasões, mortes, golpes de estado e intervenções clandestinas via CIA. O presidente dos Estados Unidos quer definir uma política de segurança para o Continente. Vamos então observar as letras pequenas. Quando o império fala em segurança o que está querendo dizer? Que deverá, com certeza, reforçar sua ocupação nos chamados “países falidos”, aqueles que estão em tal estado de caos e de descontrole (muitas vezes provocados pelos EUA) e que já não conseguem governar sem ajuda.

Hoje os Estados Unidos já cercam militarmente todas as riquezas da América Latina. Há uma base militar em Manta no Equador, outras duas na Colômbia, em Três Esquinas e Letícia e uma em Iquitos, no Peru. Estas quatro controlam toda a regiaõ Amazônica. Existem ainda as bases de Rainha Beatrix, em Aruba e a de Hato, em Curaçao. Estas duas estão praticamente na frente da Venezuela e podem ser de grande valia num momento de ocupação da região do petróleo. E, na América Central tem a base de Comalapa, em El Salvador , a de Vieques, em Porto Rico , a de Soto do Cano, em Honduras e a de Guantánamo, em Cuba. Agora , para fechar a completa dominação os Estados Unidos desejam estabelecer uma base na Terra do Fogo, na Argentina, e outra no Brasil. Será que Lula vai permitir? Isso sem falar nas andanças da Quarta Frota pelo litoral da América Latina numa mostra aviltante do seu poderio militar. Quando fala em cooperação na segurança é disso que fala Obama: a segurança do seu país na dominação das riquezas desta que é a maior reserva energética do planeta: a América Latina.

Aí chegamos ao segundo ponto: a energia. Os Estados Unidos são quase completamente dependentes do petróleo. O consumo alucinado do império não sobrevive muito tempo sem o óleo negro do oriente médio e da Venezuela. Daí que encontrar caminhos para uma energia alternativa tem muito mais a ver com a sustentação do país do que com salvar o planeta. E aí, a “cooperação” da América Latina também é muito interessante. Aqui, nas terras que ficam abaixo do rio Bravo estão as maiores riquezas do mundo. Há petróleo em abundância, há florestas, biomassa, biodiversidade, biocombustíveis, gás, minerais, enfim, um inesgotável mundo de opulência que torna este espaço geográfico muito cobiçado. Não é sem razão que o continente está cercado. Porque afinal, se faltar cooperação, sempre há a possibilidade de uma ação armada..

O combate ao narcotráfico é outra desculpa do império para interferir na vida política e econômica dos países da América Latina. Segundo estudiosos da política dos Estados Unidos, tais como John Saxe-Fernández e Marco Gandásegui, a disseminação das drogas pelos países da periferia capitalista nada mais é do que uma bem pensada forma de torná-los ingovernáveis. Com as drogas e todo o esquema de poder paralelo que se estabelece vai se criando o que os fazedores de caos chamam de “estados falidos”. Sem controle sobre o crescente narcotráfico, os países acabam precisando da providencial “ajuda” dos Estados Unidos. Este tipo de coisa é bem comum na história recente como, por exemplo, no Afeganistão, onde a produção de drogas triplicou depois da ocupação dos Estados Unidos. A mesma coisa se verifica na Colômbia, conforme conta o jornalista Hernando Calvo Ospina. Ali, com todo o aparato militar estadunidense a produção de cocaína cresceu vertiginosamente. “Na verdade, os militares estão ali para combater os grupos de libertação e para garantir o controle das riquezas”.

O terceiro ponto do discurso de Barak Obama foi a necessidade dos países da américa baixa respeitarem os direitos humanos. Isso soa muito familiar. Quem não se lembra das falas messiânicas de Bush pouco antes de invadir o Iraque? Para lá mandava seus soldados na tentativa de “salvar” o povo iraquiano que vivia torturado pelo ditador Sadan Hussein. Seguindo a máxima de “esquecer o passado”, em nenhum momento o presidente Bush lembrou aos seus conterrâneos que o “sanguinário ditador” tinha aprendido a ser assim com os militares dos EUA, afinal, durante muito tempo Sadan tinha sido pupilo da CIA. E, assim como ele, o famoso Bin Laden a quem se atribui a destruição das torres que deu origem ao banho de sangue de Bush no Oriente Médio. Podemos ainda lembrar da Escola das Américas que desde 1946 vem ensinando como assassinar, torturar, destruir e desmontar a mente de um prisioneiro. Hoje ela aparece, instalada no Forte Benning, estado da Geórgia, com um nome mais inocente – Instituto do Hemisfério Ocidental para Cooperação em Segurança – mas seus objetivos seguem os mesmos. Esta é a política do presidente Obama para segurança e direitos humanos?

O futuro

A Cúpula das Américas terminou com abraços, sorrisos e destensionamento de relações humanas. Obama falou com Chávez, Chávez deu um livro para Obama. Os chefes de estado se comportam amigavelmente porque assim pede o protocolo. Mas, isso não significa que as relações entre os países sejam exatamente iguais. Tanto que, há poucos dias da cúpula, na Bolívia, as garras da velha águia tentaram o assassinato do presidente Evo Morales usando as figuras de sempre, mercenários a soldo. Nada mudou. Para aqueles que não estão dispostos a esquecer o passado, este tipo de ação, normalmente controlada pela CIA, já foi responsável pela deposição de presidentes, golpes de estado etc... Tudo como manda o manual de desestabilização dos países que caminham numa outra direção que não a que ordena o império.

A alienada cobertura da mídia brasileira aos fatos que envolvem o novo presidente dos Estados Unidos também não é novidadeira. Desde sempre a elite do Brasil olhou com bons olhos a “paternal” ajuda do país do norte na política e na economia. Para essa gente, acostumada a drenar o sangue da maioria da população, não há problema nenhum em ser fiel gerente do império. As migalhas que dele sobram são suficientes para alimentar-lhes a vida boa. Então, não é sem razão que os telejornais e os jornalões saúdem a V Cúpula como um momento de glória para Obama, o simpático.

Já para aqueles que sabem que o passado não pode ser esquecido sob pena de trágica repetição, o encontro não trouxe muitas novidades. Estas só poderão serão percebidas na prática cotidiana. Os dias passarão e o governo dos Estados Unidos, agora sob a batuta de Obama terá de provar, com ações reais e concretas, que mudou. Antes disso, são só palavras e estas, bem o sabemos, o vento leva.

domingo, 19 de abril de 2009

A Serra em mim V– Vento, calor e neve

Míriam Santini de Abreu

Em post anterior falei sobre a toiça de taquaruçu existente atrás do casarão onde morava a família de Oswaldo Cruz, em São Luiz do Paraitinga (SP). Esse bambu é o lar do saci. No dia em que visitei o Casarão, o céu escuro se preparava. Chuva certa. Eu falava com a atendente sobre os móveis e objetos ali guardados quando vi, atrás de um janelão, o bosque cultivado nos fundos do terreno.
- Dá para ir até lá?
Ela concordou. Durante a conversa, uma ventania forte começou a fazer as janelas rangerem. Ajudei a mulher a fechar todas e saí para alcançar os fundos do terreno. Mal conseguia caminhar. As paineiras balançavam enfurecidas. Com custo cheguei ao bosque, mas o portão fora fechado depois do término do expediente dos funcionários. Na volta passei ao lado da toiça de taquaruçu, em volta da qual se formara uma redemoinho. Na foto, os olhinhos dos moleques parecem brilhar na escuridão. Em poucos minutos a ventania esmoreceu. Sim... Era coisa do saci!
Essas surpresas climáticas já me acompanharam em outras circunstâncias. Quando eu, Elaine e Marcela fomos para o Deserto de Atacama, no Chile, passamos por Resistencia, capital da Província do Chaco argentino. Ao desembarcar na Rodoviária, quase corri de volta ao ônibus. Nunca, antes, experimentei tal sensação de calor quanto naquele dia. Eram 11 horas. Fomos ao centro da cidade, comércio fechado, hora da sesta. As três nos arrastávamos de uma rua para outra, um ar tão pesado que eu me sentia narcotizada.
Umas 48 horas depois, já em Susques, no alto dos Andes, dormíamos em uma pousada quando acordei com o rosto e o cabelo úmidos. Uma goteira exatamente sobre a cabeceira da minha cama! De manhã descobrimos que fazia coisa de três anos que não chovia tanto em Susques.
Naquela mesma tarde, quando já atravessámos a fronteira Argentina-Chile, no meio do deserto, começou a nevar! Uma neve fina, um frio de fazer os olhos arderem!
Concluímos que, assim como um episódio de Arquivo X, não me lembro de qual temporada, atraímos estranhos fenômenos atmosféricos...

sábado, 18 de abril de 2009

A Serra em mim IV– Os olhos do saci

Toiça de taquaruçu: a casa do saci

Míriam Santini de Abreu

Nas dezenas de voltas que dei no centro de São Luiz do Paraitinga, região do Alto Paraíba, alto da Serra do Mar, em São Paulo, descobri que ali nasceram Aziz Nacib Ab'Sáber, Elpídio dos Santos e Oswaldo Cruz. Onde há tema relevante na questão ambiental também está Ab'Sáber, reverenciado por suas contribuições nas áreas da ecologia, biologia evolutiva, fitogeografia, geologia, arqueologia e geografia. Ele esteve várias vezes na Universidade Federal de Santa Catarina. É o tipo de pesquisador que não fica entocado dentro da Academia. Em São Luiz, uma placa indica a casa da família.
O cientista, médico e sanitarista Oswaldo Cruz também nasceu em São Luiz, num casarão pintado de branco e azul construído em 1834, em taipa-de-pilão, com paredes internas de pau-a-pique. Hoje a construção abriga um Centro Cultural e Museu, e, para minha surpresa, não cobra entrada, coisa rara. Ao lado há uma paineira linda. De lá, altos da rua, se vê parte do Centro Histórico da cidade. Atrás do casarão também há um bosque onde são produzidas mudas de espécies nativas.
Amei especialmente uma toiça de taquaruçu, que, sabem os que conhecem a estória, é o lar dos sacis. Em uma das fotos, é possível ver os olhinhos dos moleques brilhando na quase escuridão. Há que se registar ainda que em São Luiz nasceu Elpídio dos Santos, responsável pelas trilhas sonoras dos filmes de Mazzaropi.

Casa de Aziz Nacib Ab'Sáber



Casa de Oswaldo Cruz

A Casa e a Paineira
Interior da parede mostra método de construção
Boneco de Oswaldo Cruz
Bosque atrás do Casarão


sexta-feira, 17 de abril de 2009

Porque é preciso romper as cercas: do MST ao Jornalismo de Libertação

Elaine e Gina Couto - Foto: Rosangela Bion de Assis
Crédito desta foto e das fotos abaixo: Ricardo Casarini
Lucídio Ravanello falou sobre a luta e a criminalização do MST
Homenagem à Gina Couto
Homenagem do MST à Elaine

Nildo Ouriques, presidente do IELA, no lançamento do livro

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Elaine Tavares lançou livro sobre o MST

Militantes do movimento sindical e popular estiveram nesta quinta-feira, 16, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para o lançamento do livro “Porque é preciso romper as cercas: do MST ao Jornalismo de Libertação”, da editora de P&N, Elaine Tavares. Veja a cobertura fotográfica completa neste blog no sábado, 18! Até lá, dê uma espiada no endereço de P&N no You Tube, http://www.youtube.com/watch?v=RpfdESr7PjE

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Tanto à terra quanto ao céu

Disseram ao céu que ele poderia ser árvore;
disseram à árvore que ela poderia ser céu...


A matéria tem que dormir

Míriam Santini de Abreu

A Rô, diagramadora da Pobres & Nojentas, sempre recomenda: - Meninas, tem que deixar a matéria dormir.
Ela tem razão. A gente escreve a notícia, a reportagem ou o artigo, vai fazendo trança, dando nós, arrematando pontas, deixando a pele da linguagem mais sedosa. Aí termina, mas texto é que nem massa de pão. Precisa crescer.
Então o melhor é, no dia seguinte, reler tudo e aí sim lançar a filha ao mundo. Repórteres de jornal diário não têm esse privilégio. Eles fazem dois, três, até quatro textos por dia, de tamanhos variáveis. Não é fácil.
Mas a idéia é deixar a matéria dormir. Porque às vezes a matéria sonha, tem pesadelos, e no dia seguinte ela nos conta como, na longa trajetória da madrugada, é possível amanhecer mais disposta, com um verbo mais bem-apanhado, um substantivo um tanto mais denso, uma figura de linguagem ousada.
A gente sangra do mesmo jeito para escrever, a matéria dormindo ou não. Mas quando ela dorme e no dia seguinte revela seus segredos, a gente sangra com mais gosto.

Porque é preciso romper as cercas: do MST ao jornalismo de libertação


Será no dia 16 de abril, no Auditório do Centro Sócio-Econômico da UFSC, às 19h, o lançamento do livro da jornalista Elaine Tavares: “Porque é preciso romper as cercas: do MST ao Jornalismo de Libertação”.
Neste trabalho, Elaine narra uma histórica ocupação do MST, a da Fazenda Anonni, no interior do Rio Grande do Sul, ocorrida em 1985/86. E, nesse contar das lutas das gentes, ela desvela a sua própria trajetória na busca de um jornalismo que se compromete e toma posição, sem perder o foco na realidade objetiva.São os primeiros passos da discussão do que mais tarde Elaine veio a cunhar como Jornalismo Libertador, conceito no qual se ampara o jornalismo que não é servil, nem porta-voz dos poderosos, mas que narra a vida desde o olhar da comunidade das vítimas, como ensina o filósofo da libertação, Enrique Dussel.Hoje, falar deste acampamento que existiu no interior de Sarandi, com mais de seis mil pessoas acampadas, é recuperar o caminho histórico do MST, atualmente acossado por agressões de toda sorte, como a que obriga o fechamento de suas escolas no Rio Grande do Sul. Então, o lançamento do livro acaba sendo também um momento de justo apoio a este movimento que tem sido um sendero de luta e transformação.Assim, o encontro terá poemas, música, a fala do MST, produtos da reforma agrária para serem degustados (vinho, queijo e salame) e o livro da Elaine. Uma noite para homenagear o MST e conhecer suas origens.
Sobre a autora: Elaine Tavares, jornalista e pesquisadora no IELA/UFSC, é gaúcha nascida em Uruguaiana, Rio Grande do Sul. Viveu sua infância em São Borja, na barranca do rio Uruguai e, depois, foi virar mulher às margens do "Velho Chico", em Pirapora, Minas Gerais. Das heranças ribeirinhas que amealhou, estão a paixão pela vida dos que andam nas estradas secundárias e o amor pela narração das histórias. Contar das gentes tem sido sua sina. Vivendo em Florianópolis desde 1987, também aprendeu com o mar que, às vezes, é preciso se jogar barulhento nos penhascos para capturar a beleza de se ser quem se é.

Dia 16. 19h . Auditório do CSE/UFSC

terça-feira, 14 de abril de 2009

Terra sã para os frutos que virão

Míriam Santini de Abreu, dezembro de 2008

Um saco cheio de granizo ocupa parte do freezer na casa de Marlene Cardoso, 46 anos. É a prova da trovoada que arruinou a plantação de fumo de família, uma das 34 que moram no assentamento Santa Cruz dos Pinhais, em Vitor Meireles, no Alto Vale do Itajaí. As pedras escurecidas pela terra seriam mostradas ao técnico da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) para permitir acesso ao seguro que cobriria o prejuízo, em torno de 700 reais.
A perda da safra aconteceu no dia 14 de novembro, uma semana antes de parte do litoral catarinense ser arrasado pelas enchentes. Os elementos do início dessa história – pequenos agricultores, fumo, perda de safra, seguro – sustentam 11 ações civis públicas propostas há um ano pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em Santa Catarina contra empresas fumageiras, o sindicato que as representa e a Afubra.
A iniciativa do MPT toca em um setor bilionário. O faturamento em 2007, segundo a Afubra, foi de R$ 15,288 bilhões somando mercado doméstico e exportações. Metade do valor ficou com o governo sob a forma de tributos. Atualmente o Brasil está na 1ª posição no ranking mundial na exportação do produto.

Sistema integrado
A cadeia produtiva que gera esses números depende de um bem-amarrado processo que, em Santa Catarina, também é usado na produção de suínos e aves: o sistema integrado. Para colocá-lo em prática, as empresas fumageiras exigem que o agricultor assine o contrato de integração, cujas cláusulas são o alvo das ações do MPT.
Entre os 150 itens listados pelos Procuradores exige-se o fim do trabalho degradante, a formalização do registro dos trabalhadores com base na CLT e o não-uso de mão-de-obra infantil. Também é cobrado o atendimento às normas de saúde e segurança no trabalho, principalmente em relação ao uso de agrotóxicos. As multas pleiteadas deverão ser destinadas à substituição da cultura do fumo e auxílio às famílias que trabalham nessa lavoura. Até agora, porém, os processos pouco andaram por causa da divergência com relação ao juízo competente para processar e julgar as ações.

Busca de alternativas
Em meados de dezembro inicia-se, em Santa Cruz do Sul (RS), a negociação do preço do tabaco para a safra 2008/2009. O resultado interessa aos cerca de 54 mil agricultores familiares catarinenses que produzem fumo. A produção total, noticiada pela Afubra, estava estimada em 756 mil toneladas, mas, por causa das fortes chuvas e do granizo, a previsão baixou em 20%. O estado produz cerca de 193,5 mil toneladas.
Em 2008, quando as ações do MPT começaram o galgar o Judiciário, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetaesc) conseguiu algo que não obtinha desde 2003: preço mínimo para o fumo. Agora, a proposta levada às empresas é de reajuste de 27,9% sobre a tabela praticada na safra passada. Isso para quem tiver mercadoria para vender. A Federação calcula que o prejuízo com a perda de fumo, por causa das adversidades climáticas, seja de R$ 89,576 milhões.
Assim como Marlene Cardozo, muitos produtores, apesar do seguro da Afubra para pagamento das dívidas, não serão remunerados pelo esforço de plantar. Mas a agricultora de Vitor Meireles já decidiu: vai buscar outras alternativas para viver da terra no lugar que escolheu para morar.

Sistema integrado joga prejuízos para os agricultores

Os pêssegos apodreciam nas árvores e na terra encharcada. “Olha, o que vamos colher aqui! Nada! Acabou”, lamentava Marlene Cardozo, que também perdeu boa parte do fumo plantado em 2 dos 15 hectares da propriedade em Vitor Meireles. Tudo por causa de uma – como ela diz – “cossa de pedra”. Mas ela tem planos: assim que terminarem de pagar as prestações da estufa onde secam as folhas de tabaco, os Cardozo pretendem largar esse cultivo. Eles querem se dedicar ao turismo rural e diversificar a produção.
O solo onde agora está o fumo fará florescer mais feijão, milho, aipim e batata-doce, que já são cultivados pela família. Pesquisa feita pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetaesc) em julho de 2008 revela que, em média, os agricultores integrados usam 16% da propriedade para plantar fumo. As próprias empresas fumageiras estimulam, nos contratos, o cultivo de outros produtos agrícolas.
Mas a família cansou do fumo. “É muito ruim porque se trabalha mais para a firma do que para a gente... A coluna também já não agüenta. E não queremos que os netos passem o que a gente passa”, diz Marlene. A transição – depois de 23 anos dependendo do dinheiro pago pelas fumageiras - é planejada. A agricultora já fez cursos sobre produção de leite e de frutas. A família tem criação de animais e um açude na propriedade. A horta – no formato de mandala, um sistema que aproveita ao máximo a água da chuva – fornece temperos e chás. E há os pés de figo, laranja e pêssego, que ficarão maduros para as conservas que Marlene sabe preparar. Largar o fumo, porém, não é um passo pequeno.
A dependência que o cigarro provoca no consumidor é a outra face da que a planta do tabaco gera no agricultor. A explicação para isso está no sistema integrado, adotado e aperfeiçoado pelas fumageiras desde 1918. Esse sistema articula empresas agroindustriais e pequenos produtores rurais. Teoricamente, a base de seu funcionamento é a seguinte: os integrados recebem insumos e orientação técnica e produzem a matéria-prima exclusivamente para a empresa, com garantia de compra do produto. Mas na prática não é tão simples assim.
Os agricultores são procurados por representantes das empresas, que fazem a propaganda do “pacote tecnológico”. Ele inclui concessão de crédito para aquisição de equipamentos e insumos, acompanhamento técnico e compra de todo o fumo colhido. Há também oferta de seguro firmado através da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), que igualmente vende os agrotóxicos que serão aplicados nas plantas. O Ministério Público do Trabalho (MPT) apurou que muitos agricultores não ficam com cópias dos contratos assinados e desconhecem as implicações do que as empresas exigem. Mais dia, menos dia, os prejuízos aparecem.
Além disso, os Procuradores também constataram que, nos contratos, as fumageiras jogam para os agricultores, parte mais fraca do sistema integrado, três responsabilidades: não explorar mão-de-obra infantil e evitar degradação ambiental e danos à saúde pública. Lidar com isso representa um peso e tanto. A pesquisa feita pela Fetaesc revelou que uma das principais dificuldades apontadas pelos pequenos produtores - além do preço dos insumos e dos valores pagos pelo fumo - é a contratação de mão-de-obra.

Discurso da moda
A Constituição Federal proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição de aprendizes, a partir de 14 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente também estabelece que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
Contornar essas restrições representou um desafio para as empresas fumageiras. Elas, como é moda nas grandes corporações, começaram a adotar ações de “responsabilidade social empresarial”. Esse processo é analisado na dissertação de mestrado intitulada “Trabalho infanto-juvenil na fumicultura e responsabilidade social empresarial: o discurso da Souza Cruz”, apresentado em 2005, na UFSC, por Ângela Cristina Pincelli. A Souza Cruz investe pesado nessa área, especialmente nas escolas, com programas como o Clube da Árvore e o Hortas Escolares. Na página do Instituto Souza Cruz está a chamada missão institucional: “Contribuir para educar e formar jovens empreendedores no meio rural brasileiro, através de iniciativas que potencializem seu protagonismo nos processos de desenvolvimento sustentável”.
Na pesquisa, a autora revela como as empresas se beneficiam da forma como se estrutura a agricultura familiar, característica de Santa Catarina e baseada nos elementos família, terra e trabalho. Diz ela: “Embora a empresa atribua o trabalho precoce dos filhos dos produtores de fumo tão somente à tradição de suas práticas sociais, esta mão-de-obra é indispensável para a viabilidade do contrato de integração e, por ser necessária, é naturalizada pelas famílias. O trabalho dos filhos dos produtores na fumicultura tem, portanto, o sentido de dar sustentabilidade ao sistema de integração com a agroindústria. Para a empresa, esta modalidade de trabalho fica sob a única responsabilidade dos pais agricultores, e se constitui em mão-de-obra não-computada na fixação do preço do fumo”.
O técnico agrícola Jaciel Folmer confirma que, principalmente na época da colheita, crianças ajudam os pais na plantação de fumo, chegando até a faltar aulas. O problema é que a planta é exigente. Quando as folhas de fumo começam a amarelecer, é hora de arrancá-las do solo. Chova ou faça sol, seja feriado ou dia santo, é preciso trabalhar. “Ou é isso ou o agricultor vê o dinheiro se perdendo”, diz Jaciel, que atua no Alto Vale do Itajaí através da Rede Ecovida. Aí a família toda vai para a lavoura.
A pesquisa da Fetaesc mostrou que 85,2% dos produtores usam mão-de-obra própria; apenas 14,8% conseguem contratar trabalhadores. O fumo, depois de colhido e vendido, não deixa vestígios para aproveitamento pela família, os animais ou a terra. O mesmo se dá com o trabalho das crianças: esforço físico que não aparece nos custos da produção.

Mercado vai do plantio à venda e exibe lucros bilionários

Um sonho movia as cinco famílias naquele ano de 1948: ter um pedaço de chão para plantar. E aquelas terras ricas no Alto Vale do Itajaí eram do governo. Assim se deu a ocupação, baseada no trabalho coletivo. Mas não havia sossego, porque pistoleiros contratados por madeireiros da região insistiam em amedrontar os moradores. A partir de 1980 as famílias, agora 67, resolveram subir a serra, formando a comunidade de Santa Cruz dos Pinhais, hoje um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Contada por Osmarildo Cardozo, 42 anos, a história tem um sabor especial. Seu avó, José Valentim Cardozo, estava entre aqueles pioneiros. As famílias plantavam milho, feijão, aipim, mas a terra oficialmente não lhes pertencia, e faltavam crédito, equipamentos, estruturas para armazenar as safras. Aí chegaram as fumageiras com o “pacote tecnológico”: crédito, insumos, garantia de compra. É inegável, afirma Osmarildo, que a vida deu um salto. As casas ficaram melhores, as estradas ganharam calcário. Plantar fumo foi uma alternativa para os pequenos agricultores que, historicamente, precisam chorar migalhas nos balcões do governo. No país, crédito agrícola fácil é coisa para latifundiário. A pesquisa da Fetaesc também mostrou que, entre os 934 produtores consultados, a maioria - 36,41% - planta fumo porque a venda é garantida.
Mas o fumo tem algemas. A cadeia produtiva pela qual a folha se transforma em cigarro relaciona interesses locais a decisões globais. São máquinas, implementos agrícolas e agrotóxicos; transportadores, postos de distribuição e usinas de processamento; mercado varejista nacional e exportação. Os fumicultores são apenas um dos elos desse mercado gigantesco. Basta dizer que, no final de julho, os cadernos de economia dos jornais noticiaram que a BAT (British American Tobacco), da qual a Souza Cruz é subsidiária, teve lucro líquido de 1,34 bilhão de libras (2,7 bilhões de dólares) no primeiro semestre de 2008, 15% a mais que no ano anterior.
Em agosto os jornais catarinenses também noticiaram um novo movimento nessa roda. Indústrias de beneficiamento de fumo estão saindo do Rio Grande do Sul para se instalar em Santa Catarina. Um dos municípios escolhidos é Araranguá, Sul do estado. O objetivo é gastar menos com impostos. Como essas empresas são exportadoras, vendendo 85% da produção ao mercado externo, não precisariam pagar ICMS. É um benefício da Lei Kandir, que dispõe sobre o imposto nas operações relativas à circulação de mercadorias e prestações de serviços. Mas, ao comprarem as folhas de fumo plantadas pelos produtores catarinenses, as empresas são obrigadas a pagar alíquota de 12% de ICMS ao governo de SC ao cruzar a divisa com as cargas. Solução: mudar-se para cá.

Muita classe, pouco dinheiro
Tanto cifra gorda na contabilidade das empresas não evita que, na hora de vender a safra, os produtores tenham que suar para não perder dinheiro. O problema é a classificação do fumo, outro nó que o Ministério Público do Trabalho quer desatar. A Instrução Normativa Nº 10, de 13 de abril de 2007, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é que define a classificação do tabaco em folha curado. Ele é classificado em grupos, subgrupos, classes, subclasses, tipos e subtipos. Isso varia segundo o preparo, apresentação, arrumação, posição nas plantas, cor das folhas e qualidade. Há 48 classes do fumo Virgínia, 29 do Burley e 18 do Comum. É um mistério essa classificação. “A gente classifica em casa, pode ser sempre fumo bom, mas na hora de vender fica sempre na média... se o cara teima, dizem: - Pega o teu fumo e leva de volta”, conta Osmarildo.
O depoimento do agricultor revela o quão penoso é o cultivo do tabaco (veja na página 6). Na época da colheita, as famílias trabalham das 6 às 22 horas para arrancar as folhas do solo, e das 22 horas às 6 para secar a planta na estufa. O sono é “picado”, porque de hora em hora é preciso verificar a temperatura e não deixar o processo de cura estragar as folhas. Na lavoura os produtores já sabem: os nervos, nessa época, ficam à flor da pele. É um período de apuro, e traz à tona o que pesquisas já demonstraram. Para ter o dinheiro do fumo, o único garantido se der tudo certo na colheita, o agricultor abandona temporariamente as demais lavouras. E nessa hora toda a família trabalha.

Tudo envenenado
Hoje Osmarildo joga outras sementes na terra. Parou de plantar fumo há seis anos. Motivos não faltaram. O assentamento está dentro de uma Unidade de Conservação da natureza, a Área de Relevante Interesse Ecológico Serra da Abelha e Rio da Prata. Os órgãos ambientais não permitem o corte de madeira nativa, e o agricultor não tinha árvores exóticas, como o eucalipto, para cortar e alimentar as estufas. “O cara tinha que trabalhar como se fosse ladrão”, compara. Ele também se incomodava porque, com família pequena, precisava contratar mão-de-obra. E houve um momento em que Osmarildo, pai de três filhos, voltou os olhos para a roça: “Era tudo agrotóxico, tudo envenenado... Pensei: como essas crianças vão viver?”. A decisão foi desmanchar a estufa e aproveitar o material para melhorar a casa.
Ele teve que trabalhar para os vizinhos para sustentar a família, mas depois buscou alternativas. Há três anos assumiu os cuidados com o viveiro de mudas nativas da associação de moradores, que leva o nome de seu avô. As mudas são usadas para recuperar a mata ciliar, que fica às margens dos rios e evita problemas como o assoreamento. Enquanto caminha entre os canteiros, pronunciando o nome de cada planta, Osmarildo ensina o que aprendeu observando a natureza. As espécies amigas estão misturadas porque quanto maior a diversidade delas, melhor o equilíbrio ambiental.

Trabalho não-remunerado

Christianne Belinzoni de Carvalho apresentou dissertação de mestrado na UFSC, em 2006, intitulada “Relação socioeconômica dos fumicultores-fumageiras da Região de Sombrio, SC, e uma proposta de transição agroecológica”. Ela entrevistou 42 fumicultores de Sombrio, no Sul do estado, onde, entre 1994 e 2003, houve acréscimo de 140% na área de fumo plantada.
Foi demonstrado que 79% dos agricultores não mais produziam culturas de subsistência como mandioca, milho e feijão. Os alimentos passaram a ser comprados no mercado com o dinheiro do fumo. Christianne mostra que, entre as razões apontadas pelos produtores para não largar a atividade, está a dependência econômica em relação às fumageiras, por causa do financiamento, a longo prazo, do capital fixo.
A remuneração, porém, não é compatível com o esforço: o custo de produção foi, em média, 47% maior, por quilo de fumo, que o valor pago pela melhor classificação. 41% dos agricultores não conseguiram pagar suas dívidas com a empresa, e 33% pagaram, mas não tiveram lucro. Em certas fases do processo produtivo os agricultores chegaram a trabalhar 16 horas diárias.

Agrotóxicos afetam a saúde dos fumicultores e da terra

Evitar a degradação ambiental e danos à saúde pública são duas obrigações que as empresas fumageiras também colocam nos ombros dos agricultores através dos contratos. O plantio do tabaco exige diferentes tipos de agrotóxicos que afetam a saúde da terra, da água e do corpo dos fumicultores.
Os problemas se acentuam na época da colheita. As folhas liberam um resina, o melaço, que gruda nas mãos e forma uma camada espessa, com cheiro insuportável. “Fica ainda pior sob sol forte e quando chove, porque a nicotina da planta é dissolvida pela umidade”, diz o técnico agrícola Jaciel Folmer, que atua no Alto Vale do Itajaí.
Segundo dados do Ministério da Saúde e do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas da Fundação Oswaldo Cruz, em 2006 foram registrados 1.754 casos de intoxicação humana por agrotóxicos de uso agrícola na região Sul do país. Em agosto, o assunto foi tratado na Assembléia Legislativa, que discutiu o uso de agrotóxicos nos alimentos, o excesso de resíduos e a sua relação com a saúde.
Em contrapartida, em Santa Catarina há um movimento que reúne agricultores familiares, técnicos e consumidores empenhados no trabalho associativo para produção e consumo de produtos ecológicos. Jaciel faz parte de um deles, a Rede Ecovida. Jaciel também integra a equipe que está envolvida no plano de recuperação do assentamento Santa Cruz dos Pinhais, onde a meta é revitalizar as áreas degradadas e preservar a natureza. São caminhos a serem abertos para buscar alternativas ao fumo.
Além da contaminação por agrotóxicos, outro problema é que o cultivo do tabaco exige, além da área plantada, muito consumo de madeira para a secagem nas estufas. A pesquisa da Fetaesc com os agricultores revelou que a lenha é um dos principais custos na produção. 55% precisam comprar madeira, o que indica a não-renovação dessa fonte de energia nas propriedades.
Em maio, a Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) divulgaram a conclusão dos levantamentos do “Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica”. Os estudos feitos a partir de imagens de satélite mostram que essa floresta está reduzida a 7,26% de sua área original. Santa Catarina foi o estado que mais desmatou, com 45,5 mil hectares de Mata Atlântica perdidos entre 2000 e 2005. Um hectare tem 10 mil metros quadrados. É mais um custo ambiental que o preço do cigarro não cobre.

Da muda à secagem, labuta de quase um ano

O cultivo do fumo é penoso. Todo o ciclo produtivo pode chegar a 12 meses:
1 - As mudas são semeadas em bandejas de isopor ou plástico que flutuam na água, sistema batizado de float. Isso dura de 60 a 90 dias, com duas a três podas.
2 – As mudas são plantadas no solo preparado e começam os tratos: adubar, aplicar agrotóxicos, capinar, retirar brotos e flores. As empresas indicam e vendem os agrotóxicos e fertilizantes que devem ser usados tanto no sistema float quanto no trato direto no solo. Há, entre outros, bactericidas, fungicidas, fumigantes, herbicidas, inseticidas e reguladores de crescimento.
3 – O agricultor inicia a colheita quando as folham começam a ficar amarelas, e não pode adiar o trabalho. O risco é a perda da safra. No fumo de estufa a colheita é feita em etapas, das folhas de baixo até as folhas de cima. É a parte do processo que mais exige mão-de-obra. Na colheita aparecem os sintomas do que a Organização Mundial de Saúde chama de “doença do tabaco verde”. A intoxicação pela nicotina provoca sintomas como tonturas, dores de cabeça, enjôos e até desmaios, alucinações e convulsões.
4 – As folhas são penduradas em varas ou grampos e ficam na estufa por cerca de sete dias para completar o processo de secagem. Elas perdem água e mudam de cor, transformações bioquímicas que dão a característica das diferentes marcas de cigarro. A secagem deve obedecer indicações precisas de temperatura para que curar bem as quatro partes da folhas. Disso depende o preço na hora da venda.
5 – Com base na classificação inicial feita pelo produtor, as folhas são agrupadas em maços, também chamados de manocas ou bonecas, e armazenadas em paióis. Os fardos são depois transportados para os depósitos das empresas para nova classificação, desta vez pela própria empresa, e venda.
A Instrução Normativa Nº 10, de 13 de abril de 2007, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é que define a classificação do tabaco em folha curado. Ele é classificado em grupos, subgrupos, classes, subclasses, tipos e subtipos, segundo o preparo, apresentação, arrumação, posição nas plantas, cor das folhas e qualidade. Há 48 classes do fumo Virgínia, 29 do Burley e 18 do Comum.

Quadro montado a partir da pesquisa de Christianne Belinzoni de Carvalho e de informações dadas por agricultores de Vitor Meireles.

Produtores entram na Justiça em Papanduva

A advogada Anilse Slongo Seibel representa 18 pequenos agricultores de Papanduva e 3 de Rio do Campo, no Norte do estado. O motivo das ações declaratórias de rescisão contratual, com indenização por danos morais e materiais, é o mesmo.
Os produtores acumulam prejuízos com o fumo porque a estimativa de safra calculada pelas fumageiras nunca foi atingida. “As empresas chegam dizendo que vai ser o melhor negócio da vida deles, mas depois a produção não dá para pagar as contas”, conta a advogada. Ela observa que são pessoas simples, às quais não são informados os riscos da atividade.
Até agora a vitória na Justiça foi conseguir as cópias dos contratos assinados pelos agricultores. Um deles, que só conseguiu o extrato de sua dívida através de medida judicial, descobriu que devia quase 14 mil reais. A ação desvenda o motivo: “Ano após ano, o autor tentou inexitosamente sanar o seu débito plantando mais e mais fumo, mas, ao contrário do que pretendia, só viu a sua dívida aumentar, diante dos altos preços que pagava pelos insumos e sementes fornecidas pela fumageira ré”.
Como muitos produtores assinaram notas promissórias em branco, o receio é que sejam levadas a protesto ou até execução.

Faltam crédito e seguro para a agricultura familiar

A atuação do MPT, com ações jurídicas de fundamento e base legal, se constituem na defesa da saúde coletiva e do meio ambiente quando intervém no bilionário mercado do fumo, e trazem à tona interesses complexos. Nas defesas que apresentaram nas ações, as empresas enfatizam o papel do setor na geração de empregos e impostos. O sistema integrado, respaldado nos contratos, é visto como modelo exemplar de produção. As fumageiras listam as suas vantagens: planejamento de safra, assistência técnica e financeira, garantia de compra da produção, levantamento de custos, preservação ambiental e responsabilidade social. Numa realidade de forte empobrecimento no campo e de êxodo rural, a renda gerada pelo plantio do fumo é um dos pilares que sustentam a defesa do setor nas ações civis públicas.
Para Altair Lavratti, da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o que fica esquecido nesse debate é o aspecto político: “Quem planta milho, feijão, mandioca, não tem seguro. Se perde a produção, acumula dívidas. O fumo dá essa possibilidade de seguro, mas é uma possibilidade ´fantasma`, porque é preciso comprovar a perda”. Lavratti diz que o governo não protege a pequena agricultura, ao contrário do que faz com os latifundiários, que têm crédito e seguro agrícola e podem prorrogar o pagamento das dívidas. “Os pequenos agricultores correm todos os riscos sem direito de reclamar.”
Com relação ao trabalho infantil, ele faz uma diferença fundamental. Os filhos de agricultores desde pequenos querem ver os animais nascerem, alimentá-los, ordenhar as vacas, cuidar da horta. “Mas colocar a criança e o jovem para trabalhar num produto danoso à saúde e ao meio ambiente, que destrói, tem outro viés, porque também há um vínculo de trabalho que não é pago.” Isso porque, na época da safra, se não pude contratar mão-de-obra, toda a família terá que trabalhar. Lavatti constata que Santa Catarina está cada vez mais voltada para a monocultura, como é o caso das extensas plantações de pinus e eucalipto para a fabricação de celulose. Em lugar disso, o estado deveria valorizar o potencial da agricultura familiar para a produção de alimentos.

Informe
O Setor de Comunicação do SINTRAJUSC, Sindicato para o qual esta reportagem foi feita, ligou para a direção da Afubra em Santa Cruz do Sul (RS) para ouvir a associação sobre as ações do MPT. As perguntas foram enviadas por correio eletrônico, mas a assessoria da entidade comunicou que, em função da agenda lotada por causa da negociação da próxima safra, não foi possível dar as respostas.

“Ser uma herança cultural não legitima o trabalho de menores na lavoura”

A Procuradora do MPT em Santa Catarina Cristiane Kraemer Gehlen Caravieri concedeu entrevista sobre as ações. Confira:

Desde o ajuizamento das 11 ações até agora, quais foram os resultados obtidos com relação aos pedidos do MPT?
Quando do ajuizamento das ações, algumas liminares foram concedidas tanto em Santa Catarina como no Paraná. Atualmente, em decorrência da declaração de incompetência dos Juízes de Santa Catarina para o julgamento das demandas, remetendo parte delas para o Distrito Federal, as liminares foram cassadas e assim o resultado é nenhum.

A divergência se refere ao juízo competente para processar e julgar essas ações civis públicas, por se discutir a ocorrência de danos em abrangência supra-regional. Qual é a decisão mais recente em relação a isso?
Os Juízes do primeiro grau em Santa Catarina entenderam ser o Distrito Federal o Juízo competente; as Turmas do TRT da 12ª Região estão confirmando essas decisões, à exceção de um julgamento que manteve a competência da vara de Florianópolis; já no Paraná, o Juízo se julgou competente para as 6 ações ajuizadas lá e mais as 11 daqui e as que eventualmente pudessem ser ajuizadas no Rio Grande do Sul. A decisão mais recente é a de um Juiz de vara do Distrito Federal suscitando conflito positivo em relação à decisão do Paraná e determinando a remessa de ação que foi ajuizada aqui em Santa Catarina para o TST decidir o conflito.

Que medida a ser tomada pelas empresas é considerada pelo MPT a mais urgente para manter a produção de fumo dentro de tudo o que é pedido pelo MPT nas ações?
Não existe apenas uma medida, porque são vários os fatos e fatores que levam as famílias dos agricultores a viverem em estado de quase escravidão: crianças e adolescentes teriam que ser imediatamente afastados das atividades do campo; as dívidas por financiamentos de insumos, agrotóxicos e sementes teriam que ser canceladas pelas fumageiras, pois os agricultores não conseguem saldá-las. Sabe-se que a situação piorou em decorrência das intensas chuvas, que destruíram várias plantações de fumo no Estado.

Do ponto de vista prático, que diferença há entre o pedido de “nulidade” e de “anulação” dos contratos firmados com os agricultores?

Acaso julgado procedente o pedido de nulidade dos contratos de compra e venda de fumo, deve o Poder Judiciário reconhecer que a natureza da relação jurídica existente entre as fumageiras e os produtores rurais por elas contratados, aí incluídos os seus familiares com idade superior a 18 anos de idade, é empregatícia, e determinar que sejam anotadas suas CTPS, condenando as empresas nos diversos pedidos das ações. Acaso anulados os contratos, deve o Poder Judiciário declarar a inexistência de débitos dos produtores rurais perante as empresas requeridas, bem como que as rés se abstenham de firmar com os produtores rurais do Estado de Santa Catarina contratos de integração com o mesmo conteúdo e teor dos atualmente pactuados, devendo os contratos futuros serem redigidos de forma a refletir direitos que garantem a igualdade das partes pactuantes, excluindo-se todas as cláusulas lesivas mencionadas no texto das ações, bem como condená-las em outros pedidos expostos ao longo das iniciais.

Com relação ao trabalho infantil, há um discurso das empresas de que se trata de “tradição cultural” na fumicultura. Como o MPT avalia esse discurso?
Ser uma herança cultural não legitima o trabalho de menores na lavoura. A proibição é até que os menores completem 18 anos de idade. A legislação em vigor proíbe o trabalho de menores em atividades insalubres e perigosas. Tal legislação decorre de estudos médicos que comprovaram que enquanto em desenvolvimento, o ser humano sofre lesões graves e até irreversíveis se em contato com agentes insalubres (agrotóxicos, no caso das lavouras) ou perigosos. Em muitos aspectos, heranças culturais não passam de mais uma faceta do regime de escravidão a que vem se submetendo o nosso País.