quinta-feira, 28 de abril de 2016

Lendo a mídia comercial











O Portal Desacato continua avançando em sua parceria com ABRAÇO-SC. Neste domingo 1º de Maio, 10 h, no Portal Desacato e no sítio da ABRAÇO, em homenagem aos Trabalhadores, estreia o programa de rádio semanal, o primeiro de uma grade que irá se construindo aos poucos: INFORMATIVO PARALELO. Ele vem se somar ao quadro 'Desacato Passa Revista' que desde 2015 se apresenta semanalmente no Jornal dos Trabalhadores.
Apresentado pela jornalista Patrícia Krieger, com a participação de Elaine Tavares, Raul Fitipaldi, as reportagens de Márcio Papa, Cláudia Weinman, Izabel Fávero e José Carlos Ferreira, a locução de Gabrielle Schardosin, a Direção de Thiago Iessim, todos sob a Direção Audiovisual de James Pereira e a Direção Geral de Jornalismo de Tali Feld Gleiser, 'Informativo Paralelo' vai desconstruir as "verdades" da mídia monopólica.
Depois da apresentação no Dia dos Trabalhadores, o programa lançará episódios semanais todas as quartas-feiras, às 10 h da manhã, no Portal Desacato e no sítio da ABRAÇO-SC, a partir do dia 11 de maio.
O programa pode ser ouvido no sítio do Desacato: www.desacato.info

quarta-feira, 20 de abril de 2016

O Brasil pós golpe
















por elaine tavares

O domingo, dia 17, foi trágico e cômico. Trágico porque vimos acontecer, ao vivo, em tempo real, um golpe contra a ainda frágil democracia burguesa brasileira. Um golpe de novo modelo, não mais com canhões e exército na rua, bem ao estilo do que já aconteceu em Honduras  e no Paraguai. Com acusações pueris, sem qualquer comprovação, e sem base legal, os deputados federais, os pouco mais de 500 que conformam a câmara, deram prosseguimento ao processo de impedimento da presidenta Dilma Roussef.

A votação foi risível e expôs o baixo nível daqueles que deveriam ser - em tese - os representantes da população. Muitos dos parlamentares pela primeira vez usavam da tribuna assim, em cadeia nacional, a ponto de os brasileiros descobrirem, abestalhados, por exemplo, que o cantor sertanejo, Sérgio Reis, era um deles. Nunca fora sequer citado nos noticiários da casa. Ainda assim, essas figuras estranhas à maioria da população foram se sucedendo no microfone votando pelo impedimento da presidenta, pelos mais estapafúrdios motivos, menos por algum crime ou ilegalidade que a mandatária tivesse cometido. "Pelo meu filho, pelo meu pai, pela minha que está de aniversário, por deus, para que as crianças de seis anos não mudem de sexo, em honra de um torturador"... Foi um festival de horrores. Uma deputada mineira, aos gritos de sim, sim, oferecia seu voto contra a corrupção ao marido, que, no dia seguinte foi preso pela polícia federal... por corrupção!

O dia seguinte ao 17 foi de perplexidade. Estava consolidado o golpe com mais de 360 deputados votando pelo impedimento, sem que sequer soubessem qual era a acusação à presidenta. Foi uma gigantesca barganha política na qual os corruptos - a começar pelo presidente da Câmara, comprovadamente envolvido em vários escândalos - buscavam tirar do poder aquela que dera  espaço para que os crimes começassem a ser investigados.


O Partido dos Trabalhadores perdia seus aliados e não conseguia barrar o golpe, que tanto atingiu a democracia quanto a figura da presidenta. Muito dessa derrota - há que se considerar - é também responsabilidade dessas alianças feitas no passado para garantir a governabilidade.  Os ratos deixavam o navio sem qualquer prurido e festejavam a queda. O vice-presidente, Michel Temer, assistia a votação em casa e já lançava notas à imprensa sobre o que iria fazer no "seu" governo. Grotesco e desleal, como já se apresentara desde o começo da crise. Sobre ele, que também assinou as famosas "pedaladas fiscais", as quais imputam à presidente como irresponsabilidades, não pesa nada. Aparentemente é o potencial "presidente" caso Dilma seja tirada do cargo. 

Nas redes sociais, no segundo dia pós perplexidade, os brasileiros começaram a criar memes com os absurdos ditos pelos deputados. E tudo virou uma grande piada. Uma maneira de elaborar o que passara. Enquanto isso, a mídia golpista seguia seu trabalho sujo, lançando confetes sobre Michel Temer, como se tudo estivesse já acabado para Dilma. Mas, as coisas não são assim. Agora, o processo está no Senado, a câmara alta, e ali também haverá uma comissão e discussão. Ou seja, ainda vão alguns dias para que os brasileiros saibam se Dilma sai ou fica. A considerar o resultado da votação na Câmara, é bem possível que não haja divergência no Senado e o mesmo resultado se dê. Mas, quem pode ter certeza? A política é movediça e o que é hoje, amanhã pode não ser. A conjuntura muda vertiginosamente.

O Supremo Tribunal Federal que está, inclusive, com o processo contra Cunha, se manteve quieto, deixando o circo pegar fogo. Já a polícia federal iniciou a semana fazendo detenções de políticos envolvidos em casos de corrupção. O que os internautas já estão chamando de "maldição da Dilma". Votou sim, contra a corrupção sendo corrupto? Pois agora a maldição vai te pegar! Há que ver até onde vai isso ou se é só um cardume de peixe pequeno.

Mas a revista semana mais propagandística da direita brasileira foi a que conseguiu levantar a revolta entre a mulherada do país. Saiu com uma matéria especial sobre a esposa de Michel Temer, que é 43 anos mais nova que ele. Num matéria risível mostra como a jovem quase primeira dama é bonita, recatada e "do lar", ressaltando valores que há muito as mulheres já varreram de suas vidas. Um texto machista e grotesco, tentando comparar a jovenzinha com a presidenta Dilma. E num tom bem diferente do discurso misógino dos deputados golpistas que, no plenário, no dia da votação, exibiam o cartaz escrito "tchau, querida", explicitando o quanto lhes dói ser governado por uma mulher. 

Pois o burlesco texto da revista semanal foi o que bastou para que as mulheres invadissem as redes sociais com novos memes, ridicularizando a revista mas escrota do Brasil. É da natureza do povo brasileiro essa mania de fazer piada com tudo, sem deixar de ser crítico. A piada é, na verdade, o jeito de ser crítico. Foi um furor.

Enquanto isso, na vida real, as organizações populares e sociais se articulam e buscam formas para enfrentar a nova fase do golpe, agora no Senado. Criam-se comitês em defesa da democracia, organizam-se passeatas e atos públicos. A vida segue pulsando. Ao mesmo tempo o governo também se articula e joga suas cartas. Ainda há muita coisa para acontecer. É fato que muito das movimentações agora visam defender o governo de Dilma, mas também é fato que povo na rua sempre pode ser surpreendente. Estar organizado, manifestar-se, manter-se caminhando é bem melhor do que a apatia, e daí muita coisa boa pode nascer. Muito mais do que defender Dilma ou a frágil democracia burguesa, as gentes em movimento também podem encontrar novos caminhos. A política pulsa, a vida segue.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Não há novidades para os pobres





Por elaine tavares

A política brasileira deverá definir nesse domingo os destinos da presidência. Num processo de impedimento no qual a ré – no caso, a presidenta Dilma - cometeu crime algum, o “tribunal” armado no Congresso parece não levar em conta a lei. Nenhum argumento legal se sustenta na acusação de responsabilidade que se tenta imputar à Dilma.

O trabalho da comissão que se definiu pela continuidade do processo de impedimento, que chega ao plenário nesse domingo,  foi uma algaravia sem sentido, uma espécie de joguinho de cartazes, no qual o que estava em jogo era a capacidade performática de cada grupo. Tudo muito bem acompanhado pela mídia que deu foco naquilo que era de seu interesse, ou seja, a formação de uma opinião pública favorável ao impedimento, ainda que não haja nada que comprove qualquer irregularidade. Pelo contrário, numa comissão, na qual mais da metade dos deputados está envolvida em corrupção, a figura da presidente Dilma é a única que não aparece em qualquer lista ou  caso de corrupção.

O espetáculo do impedimento tem todas as características de um golpe e é por isso que as forças de esquerda – na sua maioria – assim o denomina. O modelo é o mesmo que já foi usado em Honduras, em 2009, e no Paraguai, em 2012. Levantam-se acusações estapafúrdias, sem base na realidade, e efetua-se o julgamento. Nada mais nada menos do que o mero exercício de retomada do poder. Assim, sem canhões ou tiros, dentro da “casa do povo” os grupos de interesses econômicos – representados por seus lacaios – definem os rumos do país. É o jogo no tapetão, com juiz e bandeirinhas comprados. Tudo está definido.

Até o dia da semana foi escolhido a dedo. Domingo. Seria engraçado se não fosse trágico. Uma casa que funciona até quinta, vai se reunir no sagrado dia do descanso dos trabalhadores para decidir o destino da presidência. Nem Macondo seria capaz de tal criatividade. Mas, a escolha do domingo não foi ao acaso. Ela está colada ao dia que a classe dominante escolheu para realizar suas manobras de rua, devidamente respaldada por seus servos voluntários e ingênuos de plantão.  

As ruas

Ainda assim, o cenário do golpe judiciário/parlamentar é bem mais amplo do que pode oferecer a mídia igualmente golpista. Por todo o país milhares de pessoas se reúnem em passeatas, atos e protestos, manifestando-se contra o impedimento da presidenta. Grandes centros, como o Rio de Janeiro e São Paulo  juntam milhões. Pequenas cidades do interior se levantam e os mais empobrecidos também se apressam em defender os pequenos ganhos que tiveram no governo petista. Migalhas, é certo. Mas, se antes nem isso havia, entendem que não podem dar passo atrás.

Nas redes sociais também segue de vento em popa a luta de classe, finalmente expressa no Brasil “cordial”. Nessa hora de grande transcendência, poucos são os que ficam em cima do muro. É tempo de dizer de que lado se está, é tempo de aparecerem todas as contradições, de saltarem as verdades, as mentiras, os enganos e as escolhas. Vivemos nossa hora noa (a hora da angústia).

É fato que para os trabalhadores essa hora parece nunca acabar. Os empobrecidos, os que vivem de vender sua força de trabalho, desde o início do capitalismo são jogados para cá e para lá, sem que sua opinião ou desejo seja levado em conta. O filósofo alemão Karl Marx, no seu texto sobre acumulação primitiva, no qual explica como se deu a base para o nascimento do capitalismo na Inglaterra, mostra como os camponeses foram arrancados de suas terras para dar lugar às ovelhas que produziriam a lã para a indústria nascente. Mostra também como toda essa gente foi encaminhada às cidades nascentes para servir de braço às indústrias, e como os que não conseguiam “se vender”,  ao virarem mendigos ou vagabundos, eram criminalizados, presos, torturados e transformados em escravos.

Naqueles dias, os governantes e os legisladores inventavam leis contra a “vadiagem” que eles mesmos haviam criado com a expulsão das gentes das glebas. Assim, os recém-nascidos trabalhadores livres já nasciam perdendo duas vezes: a terra e os direitos. Um crime de lesa humanidade que reduziu milhões de seres ao martírio de uma nova servidão, ainda mais cruel.

Desde aí, em todo o mundo, os que dominam seguem fazendo a mesma coisa. Roubam as terras, roubam as possibilidades de sobrevivência e oferecem apenas a servidão. Em raros momentos da história do capitalismo, algumas nações conseguiram apontar para outro caminho, de terras repartidas, de riqueza repartida, de soberania dos trabalhadores.

O Brasil

O governo petista, em ação desde 2003, não investiu na soberania. Seguiu no diapasão do capitalismo dependente, sem avançar em qualquer reforma estrutural. É fato que melhorou a vida de milhões de brasileiros, tanto dos que viviam a fome crônica – que hoje não a vivem mais - ou os que não tinham acesso aos bens de consumo.  Também permitiu o acesso à universidade a outros milhares de jovens que jamais passariam por perto de uma. Mas, isso não foi suficiente para qualquer transformação. Era e é apenas o capitalismo se expressando, fazendo girar a roda do consumo, no modelito “dependência”. Nenhuma guinada para o socialismo ou para um processo efetivo de participação popular na política.

Ainda assim a elite oligárquica não perdoa. Quer os pobres no limite da existência para que possam ser mais bem conduzidos ao matadouro. É por isso que a Globo não mostra os protestos gigantescos, as passeatas ou as manifestações dos trabalhadores e dos empobrecidos. Torná-los visíveis é dar-lhes poder. Por isso os congressistas corruptos que julgam a presidenta não estão preocupados no mais mínimo com as manifestações populares. Enquanto elas não derrubarem a “bastilha” não há qualquer problema. A vida seguirá sendo decidida no tapetão.

Apesar de tudo isso, as gentes seguem sua luta. Seja na consciência ingênua ou na crítica, a maioria sabe bem que o matadouro está bem ali, esperando, em qualquer das situações. Mas, sempre há o imponderável, essa coisa incrível que acontece às vezes, quando as gentes unidas ultrapassam todas as barreiras e criam novas formas de convívio, fugindo da lógica do capital. É possível e virá.

Assim, no domingo, enquanto os deputados – representantes da elite econômica, empresarial e oligárquica, estiverem dando seu veredito num processo sem pé nem cabeça, quando tiverem tangendo o golpe, os trabalhadores estarão em luta, esperando barrar o retrocesso. E no dia seguinte, eles seguirão na rua e em luta, seja qual for o resultado. Se o governo seguir seu caminho, há que combater suas políticas de arrojo e de destruição de direitos, que serão mais duras depois das alianças que se farão. E se o golpe se concretizar certamente haverá muito mais barreira a derrubar.

Esse é o destino dos deserdados da terra, dos que tem apenas os seus corpos nus como seus. Esse é o destino dos trabalhadores até que chegue o dia do grande meio-dia. Há um longo caminho para o fim do capitalismo. Um longo e duro caminho.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Na busca de vida melhor
















Luta e alegria - cotidiano dos haitianos em Santa Catarina

Por Marcela Cornelli

Cada vez mais haitianos vêm ao Brasil. Em Santa Catarina, em julho do ano passado, estima-se que seriam cerca de oito mil haitianos vivendo no Estado. Eles vêm em busca do sonho do emprego e de poder enviar dinheiro aos seus familiares que ficaram distantes. Estudar em uma universidade pública também é um dos anseios dos mais jovens. Observa-se que, geralmente, pelo menos na capital do Estado, Florianópolis, esses imigrantes trabalham em postos de gasolinas, na construção civil, na limpeza de restaurantes, na rede hoteleira, em supermercados e as mulheres como diaristas. Em geral, em serviços prestados por empresas terceirizadas.

Com a recessão no país, desemprego, inflação crescente, somando aos baixos salários, poucos conseguem enviar dinheiro à família que ficou no país de origem.

“Os sonhos dividem-se em ter um emprego e poder estudar” é o que disse à reportagem, Paul André, um dos coordenadores do Movimento de Haitianos em Santa Catarina.

Paul está em Florianópolis há cinco anos e formou-se no curso de Engenharia Civil pela Universidade Federal de Santa Catarina. “Não há diferenciação. Não tenho privilégios por ter estudado. As dificuldades são as mesmas. Mesmo no meio acadêmico há dificuldades como a falta de preparo dos professores para receber os alunos vindos de outros países e o preconceito”, disse ele, quando questiono se tem mais facilidades de adaptação e convivência aqui no Sul do País, do que os que não têm escolaridade. Paul acompanhou desde o início a chegada dos haitianos no Estado, quando ônibus foram enviados pelo governo federal do Acre à Santa Catarina. Os haitianos foram abrigados em um ginásio de esportes, o Capoeirão, na parte continental de Florianópolis. Alguns tinham contatos com parentes e/ou conhecidos que já viviam na cidade. Ali mesmo no abrigo, o Estado, através da Secretaria de Assistência Social, fazia as documentações necessárias e encaminhava-os para vagas de empregos. No entanto, muitos não tinham para onde ir.

Para amenizar a dores de quem está longe do seu país e ajudar até que eles possam conseguir trabalho, Angela Dalri, que coordena o Projeto Pixurum, acolhe os haitianos em uma casa no bairro Carvoeira, em Florianópolis, próximo à Universidade Federal. “Um dos maiores desafios é o idioma”, diz Ângela.

O Projeto Pixurum existe desde fevereiro de 2008 com a finalidade de acolher moradores de rua. “Tentamos resolver questões mais imediatas como alimentar, servimos sopa para os moradores de rua, verificamos cada situação, ligamos para as famílias e ajudamos a encaminhar para tratamentos médicos, quando necessário. No caso dos haitianos a situação é diferente. Eles usam o espaço até conseguirem algum lugar para morar. Os que trabalham pagam um aluguel simbólico para ajudar a manter a casa e a alimentação de quem não trabalha. Ajudamos a confeccionar os currículos e aos poucos eles aprendem o básico do idioma para conseguir emprego. Já recebemos também imigrantes do Timor Leste. O aprendizado é mutuo. Pixurum quer dizer: O bem que fazemos nos faz bem também”.

Ex-dirigente do Sindicato dos Trabalhadores da UFSC e militante de longa data, Ângela conta que alguns haitianos conseguem receber benefícios como bolsa família, cartão de ônibus e atendimento na rede de saúde pública. Porém, a inserção no mercado de trabalho, principalmente pela dificuldade com o idioma, é o mais difícil.

Outro ponto levantado por Ângela na convivência com os haitianos é a falta de opção de lazer e cultura. “São um povo que gosta muito de dançar, de socializar. Mas, acabam ou por medo da falta de segurança e de serem discriminados, ou por não terem condições econômicas, limitando-se a ida ao trabalho e à igreja”.

Segurança e preconceito preocupam

“Desde o ocorrido com a morte do haitiano em Navegantes, no ano passado, os haitianos que moram na casa temem participar das programações culturais na cidade pela falta de segurança”, fala Ângela. Ela diz ainda que a maioria dos haitianos que vive na casa têm entre 18 a 45 anos. “O desejo deles em trazer a família é grande”. Ângela diz que não abandonou as lutas maiores por uma sociedade mais justa e igualitária, mas que agora se dedica a ajudar no que eles precisam de mais imediato. Para isso, está organizando uma campanha de arrecadação de feijão, base da comida dos haitianos, para a casa. Quem quiser, pode ajudar.

Mulher forte, que deixou o país de origem, marido e filhos e veio para o Brasil, Maria* veio para cuidar da enteada e também trabalhar. Ela trabalha como diarista e diz que pretende ter todos os dias da semana ocupados para juntar dinheiro. O sonho é trazer o marido e os demais filhos que ficaram lá. Maria não compreende bem o português. Em poucas palavras e com a ajuda da enteada foi formulando o depoimento dela: “Sinto saudades do Haiti onde eu tinha e cuidava da minha casa. Aqui trabalho para outras famílias. Gosto de Florianópolis, porque é uma cidade grande e bonita. Vim em busca de oportunidades”.  Pediu para não ser identificada na matéria porque não quer que a família no Haiti interprete de maneira errada que ela está vivendo em condições precárias e/ou de dificuldades.

A enteada, Rosa*, que também pediu para não ser identificada, diz ter vindo em busca de um único sonho: “Eu quero fazer medicina”. Ela diz que sente saudades do pai e dos irmãos. “Meu pai fica muito preocupado comigo aqui”. A família tem planos de se reunir em breve no Brasil.

“Não somos vazios”

Choute Vinsky, que participa junto com Paul do Movimento de Haitianos em Santa Catarina, diz ser agradecido às oportunidades que teve desde que chegou, podendo estudar e aprender o português em aulas que cursou na cidade de Blumenau. Diz também estar preocupado com atos de violência contra haitianos no país e defende que a integração cultural pode ser a saída para a quebra de preconceito e o melhor viver. Ele é responsável pelo time de futebol “Haiti Santa Catarina Futebol Clube”. “Um dia queremos poder jogar no campeonato estadual”, confessa, esperançoso, Choute.

“Não chegamos aqui vazios. Não somos um povo vazio. Temos muita cultura para compartilhar”, diz Paul. Ele explica que o movimento vem buscando dialogar com autoridades e governos, municipais e estadual, para garantir acolhimento, vida digna e oportunidades para os haitianos que buscam o Brasil para viver. No dia 24 de maio do ano passado, foi realizada uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Estado para debater a questão dos imigrantes em Santa Catarina. Participaram haitianos e senegaleses que vivem aqui. Para Paul, umas das maiores conquistas da audiência foi o encaminhamento para a criação do Conselho Estadual de Apoio ao Imigrante. Em 6 de maio deste ano, será organizado um Fórum Estadual de haitianos, em Florianópolis. “Queremos ter um cadastro de todos os haitianos no Estado, saber como vivem, se estão recebendo com dignidade pelos trabalhos prestados, ajudá-los na busca de emprego e educação”, diz Paul.

Em dívida com estes irmãos

É preciso lembrar que o Brasil tem uma dívida com este País e com o povo haitiano. Sob o comando da ONU (leia-se Estados Unidos) o Brasil encabeça, através da Minustah, o exército invasor no Haiti. Estudos apontam que além do terremoto que atingiu o país em 2010 e deixou ainda mais precárias as condições de vida da população, a invasão militar da ONU também é fato que contribui para a saída dos haitianos do país e a vinda para o Brasil. No artigo “O Haiti é Aqui: Sub Imperialismo Brasileiro e Imigrantes Haitianos em Santa Catarina”, o pesquisador e doutorando em Demografia da Unicamp, Luís Felipe Aires Magalhães, busca explicar o recente fluxo migratório de haitianos no Estado de Santa Catarina.

Os haitianos têm uma história que nos inspira. Em 1804, se tornou a primeira nação independente da América Latina e do Caribe. Luís Felipe aponta vários aspectos históricos que precisam ser levados em conta neste processo migratório: “Uma das consequências impostas pelo imperialismo à Revolução de Independência Negra no Haiti foi o embargo econômico e o isolamento comercial. Não devemos entender com isto que o Haiti foi excluído do sistema capitalista mundial. Pelo contrário, ele aprofundou sua vinculação a ele, de forma ainda mais subordinada”, explica. E vai além: “o Haiti é historicamente objeto de presença econômica e militar estrangeira (CASTOR, 2008). Esta presença estrangeira já foi de natureza colonial, no século XVIII, e de natureza imperialista, durante o controle político e militar dos Estados Unidos no século XX. Atualmente, neste início de século XXI, com a presença brasileira na coordenação de forças militares de estabilização (Minustah), ela é de natureza subimperialista”. É neste contexto que recebemos no Brasil estes irmãos caribenhos e latino americanos. Nosso respeito e convivência é fundamental para o intercambio destas duas culturas.

 * Os nomes de Maria e Rosa são fictícios, a pedido das entrevistadas.

terça-feira, 5 de abril de 2016

O novo movimento indígena brasileiro


























Por Elaine Tavares

Talvez muita gente ainda não tenha percebido, mas há uma mudança gigantesca no processo de luta dos povos originários do Brasil. A primeira delas é a vertiginosa desvinculação da igreja, que, de certa forma, sempre foi a mais importante presença no processo. Num primeiro momento, como opressora número um,  ajudando os portugueses no massacre aos povos novos. Depois, com a ação dos jesuítas nas famosas missões, houve uma mudança no trato e o objetivo era evangelizar, respeitando alguns aspectos culturais e a vida. Mais tarde, já no século XX, atuando como parceira no trabalho de manutenção da cultura e divulgação das denúncias necessária através do Conselho Indigenista Missionário.

Também houve um momento na história do século XX em que uma série de Organizações Não Governamentais, brasileiras e estrangeiras, se uniram ao trabalho que já vinha sendo feito pelo CIMI e passaram a atuar no processo de organização das comunidades para que a cultura fosse preservada e as terras demarcadas. Coisas boas e coisas ruins assomaram nesse período e foi um lento aprendizado para os povos originários.

Mas, desde há algum tempo houve uma viragem. A caminhada em comunhão com as igrejas e as ONGs proporcionaram muitos saberes sobre como lidar e viver no mundo dos não-índios. E nesse caminhar, os indígenas foram descobrindo que já tinham todas as condições de atuarem por eles mesmos. Não precisavam de mediações. Parceiros na luta sim, mas não mais de mediações. E, assim, do seio dos povos ainda existentes, foi brotando outra vez a velha forma de organização da vida, que estivera sempre na memória. Era o tempo de criarem entidades organizadas e dirigidas por eles mesmos. E assim, nos anos 80 do século XX começou – devagar – essa mudança de rumo. Associações, Coordenações, Confederação. Coisa já conhecida desde antes da chegada de Cabral.

Assim, os povos indígenas passaram a atuar no campo da luta por direitos e território, em instituições constituídas à maneira não-índia, capaz de dialogar e compreender o intrincado mundo dos brancos, com suas leis e o falso estado de direito. Se era necessário o combate no campo da lei, para ele deveriam marchar com armas capazes de serem eficazes também nesse mundo. Hoje, são muitas as associações que organizam as lutas, formação e debates sobre a realidade indígena em todo o país.

Essas entidades organizativas dos povos indígenas caminham em articulação com a organização original, histórica e tradicional dos que ainda vivem nas aldeias. É um bem elaborado bailado de ligações entre o secreto que sobrevive na aldeia, e as batalhas que precisam ser travadas no mundo não-índio. Ou seja, as populações originárias estão avançando no seu processo organizativo de maneira autônoma e soberana, com uma forma de organizar que é bastante singular, única, totalmente articulada entre a tradição, a cosmologia e realidade de viver num mundo dominado pelo não-índio.

Toda essa mudança no modo de ser dos povos indígenas na relação com o Estado aparece em situações bastante específicas e cada vez mais. Uma delas se explicitou bem aqui, na grande Florianópolis, quando a comissão de notáveis brancos da CPI da Funai veio entrevistar as lideranças da Aldeia Itaty, do Morro dos Cavalos. Segundo os deputados que solicitaram a CPI, os indígenas que ali vivem, não estavam naquele lugar em outubro de 1998, logo, não teriam direito de ter aquelas terras demarcadas.

Na audiência, o cacique Guarani respondeu a todas as perguntas na sua língua original. Já basta de desrespeito com as gentes indígenas. Já basta do tempo em que se torturava um homem ou uma mulher originária para falar uma língua que não era conhecida. É tempo de os não-índios que quiserem realmente estabelecer um diálogo com os povos indígenas saberem que eles falam uma língua específica e que ela precisa ser conhecida e respeitada. Essas línguas estão vivas e são o sustentáculo da cultura de cada povo. O pessoal da CPI saiu incomodado, o que mostra que não há mesmo nenhuma boa vontade em ouvir e compreender a realidade indígena. As pessoas já vêm com ideias pré-concebidas. No caso do Morro dos Cavalos, os Guarani estavam ali sim, antes de outubro de 1988. Mas, se não estivessem , isso só teria acontecido por conta da expulsão promovida pela invasão de colonos. Isso é história comprovada. Logo, aquela terra é deles por direito.

Outro caso, bem pior, aconteceu no Mato Grosso do Sul, onde numa também sessão da CPI da Funai  - que é nacional – a liderança Terena, Paulinho Silva, também optou por fazer o depoimento na sua língua original, já que não tinha um bom domínio do português, e isso poderia fazer com que ele não conseguisse expressar o que precisava ser dito. Foi um alvoroço. Os deputados e outros integrantes da mesa se colocaram contrários a esse direito que é assegurado ao indígena.  E tanto que colocaram um vídeo no qual Paulinho fala em português e ainda abriram uma queixa crime contra ele. Ora, ainda que ele saiba falar português, essa não é sua língua mátria, e é nela que ele consegue tornar mais claro o que tem a dizer. Ele tem o direito de falar na sua língua. Mas, não. Agora, há um boletim de ocorrência contra o Terena, ele vai ter de prestar esclarecimentos à Justiça e pode ser condenado por crime. O mundo de ponta cabeça. A vítima passando a criminoso em um toque de mágica. E tudo isso num estado onde sistematicamente os fazendeiros matam índios, estupram mulheres, e usam jagunços para aterrorizar as aldeias, sem que nada lhes aconteça.

Mas, para os povos originários, essa é uma batalha antiga. Muitas fases já passaram, desde a tutela até a autonomia que vão construindo aos trancos e barrancos. Saíram de uma linha de quase extermínio, quando chegaram a pouco menos de 150 mil pessoas, para quase um milhão de almas que hoje se expressam, se organizam e crescem. O movimento indígena não é mais o mesmo. Ele se fortalece e se revigora. Isso não significa que as coisas vão mudar de uma hora para outra. Isso tudo é um processo. Significa que há mudanças substanciais, que há autonomia, que há organização soberana, que há orgulho da língua, que há conhecimento de direitos.

É chegada a hora de as escolas começarem a ensinar também o Guarani, Tupi, Terena, Apinajé, Xokleng, Kaigang e tantas outras línguas que conformam as mais de 300 comunidades indígenas que vivem no Brasil. Porque os povos estão orgulhosamente falando suas línguas e lutando pelo seu território, que, na cosmovisão originária, é o espaço pleno da cultura – não apenas terra, mas universo totalizante do seu modo de ser.

Os indígenas brasileiros estão em plena caminhada de transformação. E, como já anunciaram os parentes de Chiapas, no distante 1994: “Já basta! Nunca mais o mundo sem a gente”. Assim é. A luta pelo território continua e cresce.

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Os desafios da Telesur



Por Elaine Tavares


Quando Hugo Chávez começou a virar a bússola da América Latina para o sul, um dos pontos no qual mais batia era o da comunicação. Como podia o povo de “nuestra América” receber o midiático braço armado do sistema capitalista, a CNN, diuturnamente em suas casas, e não ter um instrumento de comunicação que pudesse dizer a sua voz? Sua pergunta abissal!

E foi a partir daí que Chávez começou a esboçar o sonho de uma rede de televisão que pudesse mostrar a cara da América Latina e ser o espaço privilegiado para a expressão dessas vozes, sempre silenciadas, escondidas ou marginalizadas na mídia comercial. O golpe na Venezuela, em 2001, deixou muito claro o papel manipulador dos meios comerciais e fortaleceu, tanto no governo venezuelano quanto nas gentes, a ideia de que o espaço da comunicação é uma trincheira estratégica de luta.

Assim, em janeiro de 2005, o conselho de ministros da Venezuela aprovou a criação de um canal público de televisão, financiado 70% pelo estado venezuelano e com os restantes 30% sendo divididos entre Argentina, Bolívia, Cuba, Equador e Nicarágua. Era, portanto, um canal com pretensões latino-americanas, que, na ideia de Chávez, seria naturalmente incorporado por todos os demais países que também iniciavam uma virada mais progressista na chamada América baixa.

Desde 2005, então, a Telesur transmite em sinal aberto, via satélite, para toda Venezuela, e também para os países membros ou amigos. O Brasil, desgraçadamente, nunca aceitou fazer parte do projeto, com Lula preferindo criar o canal TV Brasil, sem maiores compromissos com a generosa ideia de integração regional, latino-americana, que Chávez impulsionava. Por isso que, por aqui, para ver a Telesur só através da internet.

Mas, mesmo sem o maior dos parceiros no continente, o projeto televisivo latino-americano seguiu seu curso. Durante toda a batalha entre ALBA e ALCA – projetos de integração bolivariano e estadunidense, respectivamente – esse canal foi importante demais no sentido de fornecer informações que jamais seriam veiculadas pelos canais comprometidos com as classes dominantes locais e internacional.

A proposta da Telesur tem se mantido tal e qual seus primeiros objetivos  - ainda que Chávez esteja morto – ou seja, oferecendo notícias de toda América Latina, do Caribe, e do mundo inteiro, sempre com o recorte da voz do oprimido. Também veicula documentários sobre a história, as lutas e os personagens mais importantes do continente latino-americano, além de fornecer análises sobre a realidade, igualmente diferenciadas, a partir dos “de abajo”.

A virada para a direita que vive a América Latina deu seu primeiro golpe na proposta da Telesur agora, durante o novo governo argentino, liderado pelo milionário Maurício Macri. Um de seus primeiros atos foi retirar a Argentina do grupo de sócios do canal. O que não é nenhuma novidade se prestarmos atenção ao que defende o presidente argentino, e ao tipo de parceiros que o cercam. Seu compromisso, desde o primeiro dia de governo, não é com a soberania da América Latina, muito menos com a integração entre os países-irmãos do continente. Seu parceiro principal é o governos dos Estados Unidos e os sócios são os bancos e as multinacionais. Com essa decisão ele rompe também a própria Lei de Meios do país que garante à população a pluralidade de vozes. Mas, ao que parece, burlar a lei está sendo uma regra nos novos governos de direita.

Nos países onde a Telesur é aberta e pode ser vista por toda a comunidade sem custo algum, a notícia da saída da Argentina repercutiu negativamente, até porque os movimentos sociais argentinos sempre foram muito visibilizados pela emissora, dado o seu perfil mobilizador e guerreiro. Mas, no Brasil, o fato não teve qualquer destaque, a não ser nas mídias  populares. O que não é novidade, visto que a Telesur tem pouca acessibilidade nas terras tupiniquins, inclusive não sendo oferecida nos pacotes das TVs a cabo tradicionais. O que significa que se a gente quiser saber da América Latina, nem pagando consegue.

Na Venezuela a notícia foi recebida com indignação: “Querem que a Telesur desapareça, como eles desapareceram mais de 30 mil pessoas na ditadura militar. Mas, não vão conseguir. A Telesur seguirá sendo espaço da voz dos povos”, afirmou Nicolás Maduro.

É certo que enquanto o governo bolivariano existir essa proposta de unificação e integração das vozes de “nuestra América” seguirá. Mas, o que não pode ser esquecido é que a onda conservadora vem se estendendo pelos países latino-americanos e pode, sim, destruir esse projeto que conta hoje com correspondentes em mais de 40 países. Mais do que nunca, os movimentos sociais, sindicatos  e lutadores de todo o continente precisam compreender a importância estratégica do combate que a Telesur trava, no contraponto sistemático à fábrica de ideologia capitalista que é a CNN e suas sucursais locais, concretizadas pelas grandes redes nacionais comerciais.

A luta de classes se dá também na comunicação. Sem esse entendimento, as vozes das gentes, que na Telesur encontram espaço para se dizer, poderão voltar ao silêncio.