quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Sobre o Dia do Saci ou Os Vigilantes da Utilidade



Míriam Santini de Abreu

Aconteceu ano passado, quando mais uma vez celebrávamos o Dia do Saci e Seus Amigos na Esquina Democrática, em Florianópolis. Aproxima-se do grupo uma mulher cega de braço dado com o companheiro. Ela pergunta:

- Mas por que eles gritam?
- Estão fazendo uma festa. Tem um saci aqui! – responde o rapaz.
- Um saci? Me leva lá!

E então ela se aproxima de mim, que seguro o nosso sacizão, e começar a deslizar as mãos pelo boneco.
- Sim, sim, não tem uma perna, é mesmo o Saci!

Fico de uma ternura infinita pelo mundo toda vez que lembro daquela cena. Porque sem ver ela tocou e deu testemunho: Era Um Saci!

Esse será o 14º ano de nossa festa, organizada pela revista Pobres & Nojentas, que tem contado com a parceria de sindicatos como o Sintufsc, o Sindprevs-SC, o Sintrajusc e o Sinergia. Nelas, recolhemos centenas de assinaturas para oficializar em Florianópolis o 31 de outubro como Dia do Saci e Seus Amigos. Para nós, a data  simboliza a defesa e valorização da cultura popular nacional, porque no dia 31, já há alguns anos, as crianças celebram o Halloween, festa bonita, mas que só tem concretude cultural nos Estados Unidos.

A data já é oficial em outras cidades do Brasil, como São Luiz do Paraitinga (SP), São Paulo (SP), Vitória (ES), São José do Rio Preto (SP), Uberaba (MG), Fortaleza (CE), Guaratinguetá (SP), Embu das Artes (SP), Poços de Caldas (MG) e Independência (CE). O estado de São Paulo também já instituiu o dia. Finalmente, em dezembro de 2015, a data foi oficializada em Florianópolis, depois de aprovada pela Câmara de Vereadores.

Em uma capital que pouco valoriza as bruxas que de fato a simbolizam, as de Franklin Cascaes, ninguém esperava que a prefeitura estimulasse essa reflexão nas escolas. Mas sabemos que sempre há um professor, uma professora, que contará aquela história, do menino que nasceu índio, moleque das matas, guardião da floresta, interrompido em seu voejar travesso pela chegada dos brancos, que dizimaram as populações que aqui viviam. E quando milhares de negros, caçados na África e trazidos à força como escravos, chegaram no já colonizado Brasil, houve uma redescoberta. 

Da memória dos índios, os negros escravos recuperaram o moleque libertário, conhecedor dos caminhos, brincalhão e irreverente. Aquele mito originário era como um sopro de alegria na vida sofrida de quem se arrastava com o peso das correntes da escravidão. Então, o moleque índio ficou preto, perdeu uma perna e ganhou um barrete vermelho, símbolo máximo da liberdade. Ele era tudo o que o escravo queria ser: livre! Desde então, essa figura adorável faz parte do imaginário das gentes nascidas no Brasil. O Saci-Pererê é a própria rebeldia, a alegria, a liberdade. Essa era e é a essência que celebramos, e que a prefeitura acolheu via Câmara.

Pois agora um certo vereador Bruno Souza, do PSB, protocolou na Câmara um certo “Código de Revogação de Leis”. Quer acabar com várias. E, para ele, talvez a do Saci seja a primeira em “inutilidade”. Sim, agora, nesta legislatura, temos um vereador que se auto-atribuiu o papel de Vigilante da Utilidade. Ele se define como um liberal e parte da “renovação” da Câmara.

Eu tenho para mim que é dessa geração de renovados que não compreendeu nada. E quando falo dos que compreendem, lembro sempre da cena final do filme “Zorba, o Grego”, baseado no livro de Nikos Kazantzákis. Nos minutos finais do filme, o grego e o escritor, sob a vista de todos os moradores da vila, vêem seu projeto de engenharia - planejado ao longo de meses - ir ao chão.

“Você já viu um acidente mais magnífico do que aquele?” – pergunta Zorba, às gargalhadas.

“Não restou nada!”, responde o escritor.

E saem os dois a dançar na praia, cena de um prazer arrebatador. O Prazer da Inutilidade.

Vivemos o tempo dos Vigilantes da Utilidade. Não aprenderam a loucura. E estão por aí afora entre os que vigiam a arte, o corpo alheio, o desejo sexual, as festas, o uso do espaço público.

Lembro de um comentário quando se deu a oficialização do dia do Saci. Algo como: “Quanta bobagem... é preciso um dia pra se comemorar o que não existe de fato”. Sim. De fato há 2016 anos celebramos uma vida que foi concebida pelo Espírito Santo!

Quanto a nós, os sacizeiros e sacizeiras, sim, sim! Vamos comemorar o que não existe de fato. Porque existe. E vai existir, pelas mãos dos que são loucos para acreditar que este mau tempo passará. E vigiamos também, atentos à sua chegada. Como a mulher que, mesmo sem ver, testemunhou: - É um Saci!

Abaixo, três vídeos de três diferentes edições do Dia do Saci e Seus Amigos em Florianópolis


E a cena de Zorba, o Grego:

https://www.youtube.com/watch?v=5IbhgocxCVk



O SACI É O MITO DO ENCANTO!

Foi por causa do documentário abaixo que, em janeiro de 2009, estive em São Luiz do Paraitinga (SP). Ele foi exibido no Sintufsc quando, em 2004, começamos a organizar o Dia do Saci e Seus Amigos. O vídeo foi trazido pelo pessoal da Sosaci, que nasceu em São Luiz do Paraitinga. E eu não sosseguei até ir para lá. Dias lindos demais...
Vale ver o vídeo do início ao fim. Coisa de uma beleza, de uma vertigem, puro encanto!