segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sobre jornalismo, literatura e a metáfora do poço



Míriam Santini de Abreu

Ando a me meter na vereda literária. Não com crônicas, que gosto de fazer, mas desta vez com uma novela que prometi a um amigo que é editor de um jornal semanal.

Antes de iniciar a empreitada, pesquisei sobre o assunto. Romance, novela, conto, crônica, todos têm elementos que os diferenciam.

A crônica tem como base a vida real, que o olhar do cronista captura, e o cronista pode ou não ser jornalista. Há muito tempo os jornais acolheram a crônica. Mas novela é ficção, ritmo rápido, ação o tempo todo, personagens que entram e saem, que ora são protagonistas, ora figuras secundárias. Há espaço para o mistério, o grotesco, o patético, e sempre deve ficar no ar, a cada episódio, um fio de mistério para atrair o leitor ao capítulo seguinte.

Mas a minha novela não estará na tv, e sim em um jornal semanal, que circula em uma cidade específica. Cada capítulo deve ser curto, em torno de 4 mil caracteres. Escrevê-la tem sido um desafio e uma revelação.

Há muitos bons livros sobre as diferenças e aproximações entre jornalismo e literatura. Mas o que tem ficado claro para mim, nisso tudo, se mostra por uma metáfora que vou usar: a metáfora do poço.

Os jornalistas sabem que escrever uma reportagem extensa é sangrar. Isso porque textos deste tipo envolvem pesquisa, domínio de recursos literários, capacidade de observação, intuição e muitas entrevistas. E depois isso tudo, alinhavado e costurado, vira o texto da reportagem.

Eu chego à conclusão de que a parte em que a gente mais sangra é na hora de entrevistar e de escrever, e isso por causa do poço. Mas depende do tipo de reportagem. Reportagens de denúncias, por exemplo, que envolvem mais pesquisa e entrevistas nas quais se quer aprofundar o caso – e não a vida do entrevistado - , são diferentes daquelas que envolvem a busca de um ser, do que um certo fato significou na vida dele, de uma comunidade.

Vejo dentro de cada ser um poço. Eu conheço – um pouco - o meu: a profundidade, a espessura do limo, o cheiro e o gosto da água. Conheço pedras onde posso me apoiar quando desejo sair do contato com a água, e sei de seu silêncio e de seus animais, que ali também habitam.

O grande problema é que, mesmo os outros sendo como eu – humanos – eu nada sei do poço deles. Não posso garantir que o poço do outro tenha a característica do meu. Cada poço é único. E, em uma entrevista, o que a gente faz é isso, sondar o poço. Mesmo em uma pequena notícia, posso ver o poço de longe e já dizer alguma coisa. Em um texto maior, sento na beira do poço do outro, olho lá embaixo, toco as paredes. Em casos extremos, entro com ele no poço que a ele pertence, mas posso sair quando quiser – se for belo ou assustador - ficando ele com as estranhezas de suas águas e eu com as minhas. Entrar no poço do outro é o auge da reportagem em profundidade, mas essa os jornais, hoje em dia, pouco fazem.

Mas, depois, o que sangra ainda mais é escrever, porque aí o jornalista terá que interpretar o que viu, sentiu, tocou. Terá que descrever o poço do outro, o sentir-se ali. E muitos nada sabem do seu próprio. Como interpretar o do outro, a dor, o prazer que ali habitam? Este é o poder e o pavor quando se usa a linguagem. Cito uma frase de Antonio Olinto:

“Parece instável o mundo das palavras. O homem que nele vive sente faltar-lhe, a cada passo, o solo, como se os sons estivessem sempre em fuga, tentando afastar-se do pensamento. O jornal malbarata palavras com espantosa prodigalidade. Joga-as ao vento, ao uso de todos os leitores, transforma-as em ruídos e sinais às vezes sem significação. O jornalista tem, em seu poder, essa grandeza e essa miséria. E a afirmação desse contraste não é a permanência de uma atitude romântica em relação à linguagem. É a caracterização de um dilema, de um sentimento de luta”.

Sim, essa grandeza e essa miséria é que assaltam o jornalista que precisa falar do poço do outro.

Escrever essa pequena novela me fez pensar sobre o motivo pelo qual tenho essa relação com poços e cisternas. Acabei por lembrar de um episódio da infância. Perto da casa de minha avó Antônia havia ainda muito mato naquela época, e ela alertava, sobre um determinado lugar que oferecia perigos reais:

- Nunca entrem ali, pois há um poço bem oculto que quase não tem fundo.

Eu devia ter uns oito anos, e uma vez percorrei metade do caminho proibido, até ficar apavorada demais e voltar.

E agora compreendo também porque amo tanto a história bíblica de José, que foi jogado ao poço por seus irmãos, ou das sete mulheres da terra da Madiã que tiravam água do poço para dar de beber ao rebanho do pai. E porque fiquei umas duas semanas sem dormir direito depois de ver aquele filme horrível, “O Chamado”.

Agora, percebo que escrever ficção tem esta vantagem: pode-se entrar no nosso poço e também inventar o poço de todos os outros, formas, espessuras, odores. Sou onisciente. Os poços são todos meus, e deles faço o que quero, e falo deles o que desejar e inventar. Podem ser abundantes e com água limpa, limosos, secos... Isso é absolutamente libertador. Mas não me iludo. Deve haver um preço. Ainda não sei qual...

sábado, 29 de janeiro de 2011

Um Homem, Uma Mulher



Míriam Santini de Abreu


No sábado li pela terceira vez a entrevista que a jornalista italiana Oriana Fallaci concedeu à revista Playboy. Há anos eu procurava essa revista, e em 2009 consegui encontrar um exemplar no site Estante Virtual. A edição é de novembro de 1981, publicada, portanto, quando eu estava com 11 anos. Quem a entrevistou foi Robert Scheer, redator do Los Angeles Times. São 18 páginas de fascínio.

Eu a conheci no início da faculdade de Jornalismo na Unisinos, quando passava tardes na Hemeroteca, onde havia descoberto a revista Realidade. Era principalmente à procura de Oriana que eu me estendia sobre as mesas, deslizando os dedos sobre os velhos exemplares da revista. Depois comecei a procurar seus livros. Na época não havia a “Estante Virtual”, e andei meses atrás de um em especial, “Um Homem”. Nada. Encontrei-o sem querer numa banca na Feira do Livro em Porto Alegre, em uma caixa de “sebos”. Puro Serendipity. Neste livro, Oriana fala do homem que amou, Alekos Panagulis, ativista que lutou contra a ditadura dos coronéis na Grécia nos anos 60. O livro agora pode ser encontrado na internet, virou best-seller, e há muitas resenhas sobre ele.

Mas, como mais uma vez li a entrevista, agora também fui ao You Tube vasculhar para ver fotos ou vídeos que mostrassem Alekos E isso porque me lembro de um detalhe mencionado no livro. Como Alekos foi barbaramente torturado na prisão, Oriana dizia que ele era feio, mas as orelhas, ah, as orelhas eram as mais lindas que ela já tinha visto. Ela, como sempre, foi cruel. Alekos nada tinha de feio. E mesmo que fosse, imagino a magnífica capacidade que tinha de ser e de se saber homem, porque definitivamente não era qualquer um que agradaria àquela mulher. A resposta está na entrevista.

De fato, o que me surpreendeu nas três leituras que fiz foi o que cada uma trouxe à tona. Na primeira, me irritei, porque Scheer e Oriana pareciam apenas querer mostrar o quanto eram bons, e eu fiquei com a sensação de pouco acrescentar ao que já sabia dela. Na segunda, Scheer é que me irritou, por tentar mostrar que podia ser melhor do que ela, colocá-la contra a parede, no limite, como ela fazia com seus entrevistados. Na terceira, surpresa total. Foi a única vez em que extraí, da entrevista, o que desejava ver: a mulher por trás do mito. Fico a pensar no que aconteceu para que tal coisa se desse.

Oriana Fallaci nasceu em 29 de junho de 1929 e morreu em 15 de setembro de 2006, com 77 anos. Li dois outros livros seus, Carta a um menino que não nasceu, no qual ela relata a experiência de aborto de seu bebê, e Inshalá. Mas, para jornalistas, são fantásticos os livros Os Antipáticos e Entrevistas com a História. Em ambos, ela entrevista os nomes mais significativos do século 20 na arte, na política, na religião. São aulas inigualáveis. Se Panagulis era Um Homem, Oriana era Uma Mulher. E bela.

Veja vídeos em:

Oriana Fallaci, intervista con la storia

http://www.youtube.com/watch?v=OSOqTFcsmmw&feature=related

Oriana Fallaci intervista Ayatollah Khomeini

http://www.youtube.com/watch?v=dtzBme_x_wo&feature=related

Alekos Panagulis. "Sono io, sono me!"

http://www.youtube.com/watch?v=hsoi9itleRM&feature=related

Luz del Fuego


Míriam Santini de Abreu


Quando eu era adolescente, às vezes me arrumava para sair com as amigas e perguntava ao meu pai:

- Estou bonita?

E ele:

- Minha filha, tão bonita quanto Luz del Fuego.

Segundo ele, era uma dançarina famosa quando ele era jovem.

Pois na Playboy de Fallaci não é que está na capa a, como diz a revista, “gloriosa nudez de Lucélia Santos” no filme em que ela interpreta Luz del Fuego!?

Quando comprei a revista, não recordei do comentário do pai, que veio à tona somente agora, quando mais uma vez reli a entrevista, e assim fui pesquisar sobre Luz del Fuego. Que mulher maravilhosa! Décadas à frente de seu tempo, obviamente, como todas as mulheres à frente de seu tempo, foi incompreendida, rotulada e, com o fim da juventude, explorada e assassinada. Os amigos a alertavam sobre os perigos que corria, e ela respondia: “Eu sou uma Luz que não se apaga”.

E não se apagou. Que lindo! Essa eu fico devendo ao pai!

E é preciso dizer também que Lucélia, nua antes da invenção do Photoshop, está linda no ensaio fotográfico, envolta em cobras (Luz fazia espetáculos com duas jibóias), os seios pequenos e delineados pelas costelas, o púbis, um V perfeito de fartos pêlos negros. E há uma foto dela, dupla, com o ator que, no filme, interpreta um de seus últimos amores. Ela, deitada sobre uma esteira de palha, e ele com o peito sobre o ventre dela, a boca próxima ao seio. Mas linda é a expressão do rosto de Lucélia, sorrindo, como quem sente cócegas, os cabelos soltos, espalhados, um flagrante autêntico, parece. Imagem bela, bela como foi Luz del Fuego.

Veja Luz del Fuego em:

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A vida em La Boca

Por Elaine Tavares - jornalista

Manhã de janeiro em Buenos Aires. Hora de visitar “La Boca”, conhecido bairro do sul da capital, famoso pelo seu time de futebol, o Boca Junior, por suas ruelas coloridas e o tango, triste e sensual, tocado e dançado na rua. Mas, ao chegar ao pequeno e espartano terminal de ônibus o que chama a atenção é um modesto complexo de prédios que abriga a escola, um museu e um teatro. Apesar do vibrante murmúrio que vem do “caminito” a placa que indica o museu de Belas Artes é mais forte e lá vou eu descobrir o mistério das cores e da comunidade.

O minúsculo saguão de entrada do museu está cheio de crianças que protagonizam uma deliciosa algaravia. Dezenas delas, acompanhadas de seus “maestros” – num projeto da escola que busca levar cultura aos alunos em tempos de férias - se preparam para viajar no mundo da pintura de um dos mais importantes filhos de La Boca: o pintor Benito Quinquela. Ali, naquele museu, doado por ele à comunidade (assim como a escola e o museu), estão expostas algumas das suas mais famosas obras, além de outras de conhecidos artistas nacionais. Mas, as crianças estão atraídas mesmo é pela figura de Benito, a quem a comunidade reverencia com amor extremo. É nas salas onde estão os seus móveis pessoais e objetos de pintura que a gurizada se demora, sonhando talvez em seguir os passos do filho ilustre daquele lugar.

Benito Quinquela é um dos grandes da arte argentina. E cresceu bem ali, na boca do rio da Prata, espaço do porto e da vida atribulada dos homens do mar. Sua pintura conta desta realidade local e se mostra com toda a força operária daqueles que cotidianamente viviam as agruras do trabalho marítimo. Seu tema sempre foi o trabalho, o bairro e a gente. Por toda a vida ele imortalizou La Boca, o seu ninho, seu lugar de arribação, mesmo depois de ter experimentado a glória nos salões de Paris e Nova Iorque. Era para a boca do rio que sempre voltava, carregado de cores e memórias únicas. “Dizem que os barcos que eu pinto existem em todos os lugares do mundo – é um erro – quando eles chegam à Boca, eles se transformam...”

A história do pintor é revestida de poesia. Chegou ao porto num 20 de março do ano de 1890. Fora abandonado num orfanato local e nunca soube quem era sua mãe. Ali viveu, junto às irmãs de caridade, por seis anos. Contam que nunca foi um garoto triste, pelo contrário, era alegre e prestativo. Quando estava para completar sete anos foi adotado por uma família simples, moradora do bairro. O pai, Manuel, era um italiano forte, trabalhador do porto e a mãe, Justina, era mulher de sangue indígena, oriunda de Gualeguaychu. Donos de uma carvoaria, os dois procuravam uma criança que lhes enchesse a vida de alegria e ajudasse no trabalho.

E assim o pequeno Benito iniciou sua vida pelas ruelas do bairro portuário. Conhecia como ninguém a vida frenética do estaleiro, dos trabalhadores do mar, das mulheres. Seu trabalho era andar de barco em barco, com uma bolsa vazia, enchendo-a de carvão. Manejava a funda com maestria e era conhecido por sua velocidade nas correrias do porto. Magricelo e serelepe era chamado de “mosquito” pelos trabalhadores que o viam passar voando com a bolsa cheia e pesada. Também ainda menino, morando na rua onde se concentravam os sindicalistas e socialistas, começou sua militância política, no início do século XX, sempre ao lado das lutas dos trabalhadores.

Considerando o trabalho que fazia, não foi por acaso que o carvão acabou sendo seu primeiro “pincel”. Entre uma correria e outra ele descansava desenhando as cenas que via no porto em pedaços de papelão e quando já contava com 14 anos iniciou um curso de pintura numa escolinha do bairro que oferecia este tipo de curso aos filhos dos trabalhadores. Desde aí, as cores começaram a se sobrepor ao carvão e o pintor nunca mais parou de crescer. Marcou-lhe a vida um texto de Rodin que leu enquanto estudava arte, o qual dizia: “pinta a tua aldeia e pintarás o mundo”. E assim foi. Com 20 anos apresentou sua primeira exposição e anos mais tarde ajudou a organizar o Salão dos Recusados, espaço de mostra daqueles artistas que não encontravam espaço nas “panelinhas” da arte nacional. Desde aí, a pintura do garotinho do porto de La Boca percorreria o mundo. Dez anos depois, tendo já visitado e exposto em vários países Quinquela voltou para La Boca, onde comprou uma casa para os pais e ali seguiu vivendo, prometendo-lhes que agora eles estariam a seu cargo.

La Boca havia acolhido Benito quando ele ali chegara, abandonado. Por isso, o pintor fez questão de retribuir todo o amor que a comunidade lhe deu. Tão logo ganhou dinheiro com a sua pintura preocupou-se em dar ao bairro espaços onde as crianças pudessem crescer na cultura e na beleza. Foi assim que ele comprou os prédios onde hoje estão a escola, o teatro e agora, o museu. Dali nunca saiu, a não ser para sua exposições e compromissos internacionais. La Boca era o seu lar.

Débora Seitter, cuidadora do museu, conta que foi Benito quem começou essa mania por cores na região de La Boca. “Quando ele trabalhava na carvoaria, ele levava carvão de graça para os navios e pedia em troca latas de tinta coloridas, as quais entregava aos vizinhos para que pintassem as casas, que eram simples e humildes”. Hoje, o “caminito”, principal rua do bairro é, ela mesma, um museu a céu aberto, com as casas repletas das cores vibrantes que também enchem as telas de Benito.

Uma obra de força

Por sobre a gritaria da criançada que visita o museu se impõe o som poderoso do piano. Diante de uma das telas mais belas do pintor – Crepúsculo - uma mulher faz ecoar uma música que é ao mesmo tempo terna e dura. Impossível não se deixar ficar ali, tomada pela emoção. É algo assim como a representação musical daqueles quadros que parecem adquirir vida na parede. As telas imensas reproduzem a vertiginosa existência do bairro portuário e popular. Há barcos onde crescem flores, onde trabalham homens, há barcos que dormem, barcos quebrados, há homens construindo barcos, há barcos sendo descarregados, há poderosos temporais, há homens trabalhando na fundição do aço, barcos incendiados, crepúsculos com barcos ao fundo. Tudo é imenso na obra, a cor, a intensidade, o tema. O traço de Quinquela indica toda a violência exigida para a construção dos barcos e ao mesmo tempo expressa a humanização da máquina e das grandes forças que a produzem. É arrebatador!

O museu tem três andares de obras de arte. Num deles está também coleção de máscaras de proa de barcos, recolhidas por Benito ao longo da vida. Estas ponteiras eram representações de deuses ou mitos, metade homens, metade bicho, figuras de mulheres ou mesmo santos que eram usadas pelos barqueiros para proteção. Estas máscaras eram as que davam identidade às naves e muitas podiam ser identificadas ao longe só pelas ponteiras. Amealhá-las foi a maneira que Benito encontrou para sentir de forma concreta a presença daquele mundo que ele amava e que imortalizou na tela. Nos pátios do terceiro andar estão as esculturas, de vários artistas locais. E, de um mirante, bem em cima do prédio, se pode vislumbrar toda a “Boca”, e seu farfalhar de vida. Faltam os barcos e o porto, mas o colorido das casas e das gentes cimenta o louco desejo de beleza que aquele “mosquito”, gurizinho serepele, vislumbrou para o seu lugar. Hoje, nas vielas do bairro, o som do tango, do chamamé, as imagens do Che, do Maradona, da Evita e o deslumbrante mundo de cores, imortalizam a “República da Boca”, que, conforme dizia Benito, era um lugar de fronteiras pouco claras, com geografia móvel e repleta de abençoados lunáticos.

Elétrico como nos tempos de menino, ele nunca parou de inventar coisas e uma das mais belas que criou, além da sua obra, foi a conhecida “Ordem do Tornillo”, espaço de reunião dos artistas, intelectuais e loucos de toda ordem que tivessem por princípio o uso desenfreado da imaginação e da rebeldia e aos quais devia, por obrigação, faltar moderação. A estes “loucos”, ele entregava um parafuso, o que lhes faltava, para garantir que sempre lhes faltasse e eles não se tornassem gente acomodada ou sem imaginação. “A todo homem que sonha, lhe falta um parafuso. Este que lhes dou não vos tornará moderados ou cordiais. Pelo contrário, vos preservará contra a perda desta loucura luminosa, da qual se sentem orgulhosos”.

Hoje, Benito reina sobre La Boca, com sua estátua altaneira bem na entrada de onde um dia foi o porto que tanto amou. E as gentes de todo mundo se sentam nas mesas coloridas, tomando um bom vinho e ouvindo o tango. Das casinhas espiam os locais que sabem que muito daquilo tem a ver com o pintor, criado na beira daquele rio. Tudo ali é prodigioso, como a obra de Benito.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Campeche se mobiliza contra mega-exploração

Ato de protesto contra os mega-projetos e mega-show acontece neste sábado, dia29, 10h, na Pequeno Príncipe, esquina com a rua da Capela.

O Campeche, até os anos 70 do século XX foi um pacato reduto de famílias descendentes de açorianos, dadas à pesca, à agricultura de subsistência e à criação de gado. Nos anos 20, por ser rota de passagem da iniciante aviação transcontinental, entrou para a história como lugar de pouso dos aviões que seguiam para a Argentina, tendo sido criado ali um campo de aviação. Dentro de um destes aviões vinha, amiúde, o conhecido Saint-Exupéry, autor do imortal livro “O Pequeno Príncipe”. Por conta deste visitante ilustre, que acabou criando laços com uma das famílias locais, do patriarca Deca Rafael, o bairro é cheio de alusões à vida e à obra do escritor.

Nos anos 80, com o impulso das migrações de famílias vindas do interior de SC e de outros estados, o bairro cresceu, mas ainda mantendo a vida simples e pacata, com boa parte de suas ruas de areia e praia de beleza exuberante. Sempre foi um contraponto ao norte urbanizado, reduto de turistas. Essa peculiaridade fez florescer no Campeche e arredores um forte movimento comunitário que passou a exigir da municipalidade demandas que dessem conta da manutenção deste estilo de vida na região. Foi ali que teve vez a proposta do primeiro Plano Diretor pensado diretamente pelos moradores, que definia esta região do sul como um espaço de moradia e de vivência comunitária, sem o exagero dos espigões, dos grandes empreendimentos turísticos, da exploração imobiliária e da destruição da natureza.

Essa movimentação garantiu que a comunidade crescesse de forma mais lenta, vigiada de perto pelas gentes e pelos movimentos populares, alertas às tentativas de destruição. Mas, agora, na primeira década do século XXI, novas ondas de migrações, acompanhadas das ações de empreiteiros, começaram a mudar a paisagem e a vida do lugar. Empreendimentos de grande porte pipocam por todo lugar. Manipulando as leis ou mudando-as para seu benefício, nas famosas alterações de zoneamento patrocinadas por vereadores mal-havidos, são construídos grandes prédios que impactam de forma brutal a vida do bairro, desde a caótica mobilidade urbana até a falta de água. Estas questões já apareceram no novo processo de discussão do Plano Diretor vivido pela cidade há quatro anos e que acabou, abruptamente, virando em nada, com a prefeitura preterindo a proposta popular por outra formulada por um instituto privado.

Em 2010, a mídia florianopolitana, também ao sabor de gordos patrocínios, criou a fantasia de um recanto de paraíso, o chamado “riozinho”, que é um espaço na praia do Campeche onde deságua um pequeno rio local. Ali virou o ponto da temporada, com a presença de artistas globais e outros “ilustres” endinheirados. Este ano, o empreendimento que se criou ao lado do rio Rafael alugou parte das dunas – que tem sob seu poder - para a poderosa Skol, que anuncia shows de grande porte para o local. Com isso, a comunidade, retomando a luta travada desde os anos 80, tem denunciado as irregularidades e procura conscientizar os moradores para que mantenham a vigilância sobre a forma de vida que desde tempos muito remotos se decidiu empreender naquele lugar.


Desde o ano passado a comunidade observa um crescimento exacerbado que deverá provocar grandes impactos e, por conta disso, decidiu empreender novas mobilizações em defesa do seu modo de vida. Na última quarta-feira, representantes do movimento popular, que é bastante forte no Campeche, se reuniram e listaram os seguintes problemas a serem enfrentados:

1 - O processo do Plano Diretor participativo iniciado pelo prefeito Dário Berger colocou a comunidade, durante quatro anos, a pensar e organizar a vida local. Encerrado autoritariamente, abriu espaço para que os grandes empreendimentos começassem a conseguir licenças para construções de grande porte colocando em risco a sustentabilidade da região que tem um ecossistema frágil de dunas e restinga, não oferece saneamento básico, tem pouca reserva de água e sofrível mobilidade urbana, com ônibus em intervalos muito longos, além de poucas linhas em circulação. Também no que diz respeito aos caminhos que levam ao centro da cidade, a situação é muito ruim uma vez que há apenas uma saída, ocasionando infindáveis engarrafamentos.

2 – Um exemplo desta ocupação irracional é o projeto Essence, da empresa RODOBENS, que se anuncia na cidade como um lugar de sonhos. O condomínio está sendo erguido praticamente em cima das dunas. São 14 prédios de quatro pavimentos cada um, com garagem subterrânea e ático, o que configura, na verdade, seis andares. No total são 500 novos apartamentos que devem adensar a região com mais mil pessoas. A garagem do prédio, feita no subsolo, é uma armadilha perpétua, uma vez que a área onde está construída é inundável e certamente sofrerá com as chuvas torrenciais que costumam cair no verão.

3 - Dezenas de outros mega projetos estão aparecendo a cada dia, causando sérios transtornos. Um deles, próximo à praia, está há meses sugando o lençol freático, jogando água pura na rua, para conseguir secar o terreno que foi cavado para a construção de garagens subterrâneas. Nada disso parece constituir ilegalidade, mas a comunidade já não suporta mais ver o desperdício de água pura, elemento que é tão importante para a vida.

4 – A Casan iniciou no ano passado um projeto de construção da rede de esgoto, mas desde então a comunidade tem se manifestado contrária a proposta de uma rede que desemboque numa única estação de tratamento que some todo o esgoto da ilha para ser jogado, via emissário submarino, no mar do Campeche. Várias manifestações já foram realizadas e o plano diretor construído pela comunidade definiu por pequenas estações de tratamento em que parcelas da comunidade assumam a responsabilidade pelo seu esgoto, sem que seja necessário jogá-lo no mar. Essa tecnologia existe, é acessível e nada impede a municipalidade de usá-la. Mas, a prefeitura, assim como a Casan não são sensíveis aos desejos da população e seguem com seu projeto original. Esse ideia, ultrapassada e poluidora trará também graves impactos ambientais á comunidade.

5 – Não bastasse ficar surda à comunidade a Casan tem sistematicamente desrespeitado a lei ambiental construindo rede coletora sobre as dunas, onde se aglomeram algumas casas de gente rica, construídas de forma ilegal. Os canos estão desembocando na praia, também em flagrante ilegalidade.

6 – Ao mesmo tempo em que a Casan premia os endinheirados invasores das dunas, a Justiça utiliza de sua conhecida predileção pelos ricos e coloca abaixo um espaço comunitário que existia na praia desde a década de 80, reconhecido como espaço cultural e patrimônio do Campeche. O histórico Bar do Chico foi derrubado, às seis horas da manhã de um dia chuvoso, sem que a comunidade tivesse tempo para se organizar, uma vez que todas as outras tentativas haviam sido barradas pelo povo. Poucos meses depois, o empreendimento Essence, que se localiza no rumo do bar construiu um deck de madeira, ocupando o espaço do antigo bar, para seus “privilegiados” moradores. Por ação popular o deck foi derrubado, mas pode voltar.

7 – Também o direito de ir e vir e de ocupar a praia pública está cada dia mais limitado aos locais. É o caso da faixa de praia que tem início na Comunidade das Areias até o Bar Tropical, no Morro das Pedras. Em função de alterações de zoneamentos, feitas há décadas no Governo do Bulcão Vianna, os Condomínios que foram construídos ao longo de quase 2 kms de praia não respeitam a lei, a qual determina que a cada 200 metros deve haver saída para a praia. Assim, espaços públicos ganham caráter de propriedade privada, impedindo o acesso aos moradores. A rua Manoel Pedro Vieira está totalmente tomada por Condomínios, incluindo-se aí a mansão de praia do tenista Guga Kurten e o Hotel Morro das Pedras, erguidos sobre as dunas, assim como os condomínios. Isso afronta o direito de ir e vir, mas nada é feito contra esses que praticam apartheid social. A rua citada, onde está a casa do tenista, hoje conta com apenas duas saídas para a praia.


8 – As mudanças climáticas e a ação desordenada do homem, que levaram à destruição da praia da Armação, também no sul da ilha, se faz presente também no Campeche. Com as construções de luxo sobre as dunas, a paisagem muda e transforma o ritmo da natureza. Nos últimos anos, as ressacas no Campeche têm sido vorazes e várias casas, construídas irregularmente sobre as dunas, são atingidas. Alguns destes proprietários realizaram obras de enrrocamento (colocação de pedras ou cimento) na praia, visivelmente ilegais. Algumas delas, barradas posteriormente, oferecem sérios riscos aos banhistas, com pontas de ferro assomando pela areia e outras escondidas sob o mar. E para completar este cenário de completo desrespeito pela vegetação nativa, os invasores de dunas estão cobrindo-as com lonas de plástico. Estas atitudes isoladas e egoístas têm causado mudanças, inclusive com a diminuição da faixa de areia.


9 – O desrespeito ao terreno natural e aos olhos de água que abundam no Campeche leva a grandes tragédias como o alagamento sistemático de áreas com a conseqüente destruição de casas e bens. As soluções, em vez de melhorar, são cada vez mais atrapalhadas, como por exemplo a idéia de tubular o Rio Rafael, com a proposta de construir um prédio sobre ele, o que poderá ocasionar ainda mais alagamentos na região, com a água não tendo para onde escoar.

10 – Para fechar com “chave de ouro” o processo de destruição sistemática do modo de vida do Campeche, agora, com o conluio de empresários da área, sem ligação emocional ou cultural com o bairro, está sendo organizado um mega-show na praia, onde desemboca o rio Rafael, patrocinado pela Skol. Estes eventos, além de serem portas de entrada para o tráfico de drogas pesadas, mexem de forma visceral com a estrutura do bairro. O Campeche, da forma como está organizado hoje, com ruas estreitas e apenas uma avenida, não comporta um fluxo excessivo de carros. Tampouco tem condições de acomodar um estacionamento para todos os visitantes que virão para o show, além de não apresentar estrutura sanitária. Como a comunidade é tradicionalmente residencial, estes mega-eventos tendem a perturbar todo o modus vivendi do povo da região.


Por conta de todos estes pontos elencados aqui, a comunidade decidiu iniciar um processo de luta pela manutenção da qualidade de vida no bairro, fortalecendo os seguintes pontos:


1 – Exigir fiscalização rigorosa para todos estes empreendimentos que estão em andamento.
2 – Realização de estudo do impacto que esse adensamento populacional pode causar para o sistema de água, esgoto e transporte.

3 – Exigir imediata aplicação da Lei Municipal buscando a abertura de acesso à Praia do Morro das Pedras em toda a Rua Manoel Pedro Vieira.

4 – Moratória imediata para a construção de novos empreendimentos até que seja definido o Plano Diretor.

5 - Suspensão do mega-show promovido pela Skol por completa incapacidade estrutural do bairro em atender a uma demanda gigante de pessoas.

Visando esclarecer a comunidade e garantir mais apoio para estas lutas, acontece neste sábado, dia 29 de janeiro, às 10h, uma manifestação e panfletagem no cruzamento entre a Pequeno Príncipe e a rua da Capela. Todos os lutadores sociais da cidade estão convidados a para participar. A luta contra os mega-investimentos não é só do Campeche. Todo sul da ilha está ameaçado. A cidade como um todo está ameaçada. “Já basta de destruição”.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

A pedagogia do grande irmão platinado

Por Elaine Tavares - jornalista

Outro dia li um artigo de alguém criticando o que chamava de pseudo-esquerda que fica falando mal do BBB, mas que também dá sua espiadinha. E também li outras coisas de pessoas falando sobre o quanto há de baixaria no “show de realidade” da Globo. Fiquei por aí a matutar. E fui observar um pouco deste zoológico humano que a platinada oferece na suas noites. Agora é importante salientar que a gente nem precisa assistir para saber tudo o que se passa. É só estar vivo para saber. As notícias estão no jornal, no ônibus, no elevador, em todos os lugares. Então esse papo de que quem critica é hipócrita porque também vê não tem qualquer sentido. As coisas da indústria cultural nos são impostas de forma quase que totalitária. É praticamente impossível fugir destes saberes. Mesmo no terminal, esperando o ônibus, lá está o anúncio luminoso onde buscamos o horário do busão, dando as “notícias” dos broders. É invasivo e feroz.

Mas enfim, sou um bicho televisivo, e gosto de ficar feito uma couve em frente ao aparelho de TV analisando o que é que anda engravidando as gentes deste grande país que se alfabetiza por esta janelinha. Lá fiquei acompanhando alguns episódios do triste programa. Deveras, me causa espécie. Mas não falo pelo quê de promíscuo ou imoral possa ter o “show”, já que coisas do tipo que se vêem ali também são possíveis de ver na novela, nos filmes, etc... O que me apavora é capacidade de ser tão perverso e desestruturador de consciências. Está bem, as pessoas estão ali porque querem, elas mandam vídeos, se oferecem, morrem até para estar naquela casa, em busca do que pensar ser seu lugar ao sol. Mas, ainda assim, é perverso demais o que os “inventores” fazem com aquelas tristes criaturas.

Sempre pensei que a coisa nunca poderia ficar pior. Mas fica. Cada ano a violência fica maior. E o que me espanta é que não há gente a gritar contra isso. Agora inventaram a figura de um sabotador. Pois já não bastava colocar a possibilidade concreta de alguém (o espectador) eliminar outro (o broder “????”), o que, obviamente inaugura uma possibilidade por demais perversa de se apertar um botão e destruir o sonho de alguém, com requintes de crueldade. Uma coisa de uma maldade abissal. Então, o tal do sabotador é uma pessoa, do grupo, que precisa sabotar os seus companheiros para poder se safar. Inaugura-se assim mais uma instância da estúpida violência, a qual é parte intrínseca do “show”. Vi a cara do rapazinho. Estava em completo desespero. Precisava sabotar seus amigos. E o fez. Em nome do milhão.

Depois, um outro, ao atender ao telefone que sempre ordena uma sequência de maldades, obrigou-se a mandar sua colega para uma solitária, coisa que, nas cadeias, é motivo de grandes lutas dos grupos de direitos humanos. O garoto disse o nome da sentenciada, e seu rosto se cobriu de desespero. No dia em que ela saiu do castigo, enquanto os demais a abraçavam, ele se deixava cair, escorregando pela parede, chorando. Sabia, é claro, que aquela ação o colocava na mira da outra e na condição de um desgraçado que entrega seus colegas.

E assim vai o “grande irmão” propondo maldades e violências aos pobres sujeitos que ali entram em busca de um espaço na grande vitrine da vida. Confesso que a mim pouco se me dá se são homossexuais, trans, bi, héteros tarados, loucas, putas ou santas. Cada uma daquelas criaturas que ali estão quebrando todas as regras da ética do bem viver são pobres seres humanos, perdidos num mundo que exige da juventude bunda, músculo, peito e cabeça vazia. Não são eles os “imorais”. São vítimas. Querem mais do que as migalhas do banquete. Querem pegar com as unhas a promessa que o sistema capitalista traz na sua pedagogia da sedução: “‘qualquer um pode neste mundo livre”.

Tampouco me surpreende que um jornalista como Pedro Bial, dono de um texto refinado, esteja cumprindo o triste papel de fomentar a perda de todo o sentido ético que um ser humano pode ter. Ele, também buscando vencer nesse mundo que o capitalismo aponta como o melhor possível, fez a sua escolha. Optou por ser um sacerdote destes tempos vis. Um sacerdote muito bem pago.

O que me entristece é saber que essa pedagogia capitalista seguirá se fazendo todos os dias nas casas das gentes, que muitas vezes assistem ao programa porque simplesmente não têm outra opção. O melhor sinal é o da platinada. Pega em qualquer lugar deste grande país. Há os que vêem e nem gostam, mas ocorre que estas “lições” em que se eliminam pessoas, em que se traem os amigos, em que vale tudo, passam meio que por osmose. É a lavagem cerebral. É a violência extrema sendo praticada entre risos e apupos de “meus heróis”. Tudo pela “plata”.

Enquanto isso, como bem já levantaram alguns blogueiros, a Globo, junto com as companhias telefônicas, lucra rios de dinheiro com as ligações que as pessoas fazem para eliminar os “irmãos”. É galera, brother quer dizer irmão em inglês. E olha só o que se faz com um irmão? Essa é a “ética”. Os empresários globais lambem seus bigodes.

Então, fazer a crítica a esse perverso programa não é coisa de pseudo-esquerda. Deve ser obrigação de qualquer um que pensa o país. A questão do “grande irmão” não é moral. É ética. Trata-se da consolidação, via repetição, de uma pedagogia, típica do capitalismo, que pretender cristalizar como verdade que para que um seja feliz, outro tenha que ser “eliminado”. O show da Globo é uma violência explícita, cruel, nefanda, sinistra e miserável. É coisa ruim, malcheirosa. Penso que há outras formas de a gente se divertir, sem que para isso alguém tenha de se ferrar! Até mesmo os mais importantes cientistas mundiais já alardearam a verdade inconteste: vence quem coopera. Onde as pessoas, juntas, buscam o bem viver, ele vem...

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Mil dias na praça – ex-combatentes das Malvinas exigem direitos e reconhecimento

Elaine Tavares

Luis Gianinni tinha pouco mais de 18 anos quando, servindo ao exército em 1982, foi chamado a defender sua pátria numa guerra praticamente suicida: a guerra das Malvinas. “Nós éramos jovens recrutas, não tínhamos conhecimento de tudo o que estava em jogo. Apenas sabíamos que tínhamos de defender a Argentina. E assim foi”. Luiz, junto com mais 400 companheiros é um dos ex- combatentes que estão acampados na Praça de Maio, em frente ao palácio do governo argentino, exigindo direitos e reconhecimento. Luis, assim como os demais colegas em luta não estiveram na ilha, mas foram mobilizados e chegaram a travar combates no continente. Ainda assim, eles foram deixados de fora da lei que estabeleceu direitos para os ex-combatentes, sob a alegação de que os que atuaram no continente não teriam participado da guerra mesma.

Segundo os ex-soldados isso não é verdade. Eles insistem que quando, dias depois de a Argentina ter iniciado a guerra, foi criado, via decreto, o Teatro de Operações do Atlântico Sul (TOAS) este incluía, além das ilhas, as províncias de Chubut e Santa Cruz, na parte continental. Num dos anexos do decreto também está dito que o Comitê Militar poderia estender sua jurisdição a outros espaços marítimos e aéreos que fossem necessários, visando garantir a defesa de todo o litoral do país num eventual ataque dos ingleses ao território argentino, principalmente na região das bases de Rio Gallegos e Comodoro Rivadavia, de onde saiam os bombardeiros da Força Aérea. Assim que esta zona ficou com as tropas em estado de alerta durante todo o conflito.

Foi por conta deste alerta que os soldados que estavam servindo naquela região se envolveram na guerra. Segundo Luis, eles preparavam obras de defesa, cavavam poços, trincheiras, faziam exercícios militares de defesa, faziam patrulhas e mantinham o armamento em dia, esperando o combate. Toda a correspondência era censurada e eles tinham de estar sempre prontos para entrarem em ação. Assim, dizem os ex-soldados que hoje acampam em frente à casa Rosada: “O medo, o frio, a incerteza, a espera do confronto armado e toda a carga psicológica da guerra foi vivida por cada um dos que ali estavam. Mesmo aqueles que ficaram em Puerto Argentino e que nunca dispararam um tiro sequer. A guerra estava viva em nós. Nós a vivemos”.

Mas, a lei número 22.674, que garantiu direitos às pessoas que sofreram danos ou perderam seus empregos por conta de sua participação na guerra acabou envolvendo apenas aos oficiais e aos que estiveram nos combates na ilha ou nas zonas de saída das tropas. Os demais foram deixados de fora, como se não tivessem vivido toda a atmosfera da guerra. “Naqueles dias todos nós, que éramos muito jovens, vivíamos a angústia de a qualquer momento ter de enfrentar uma outra pessoa, armada, matar e morrer. Isso deixa marcas, isso pode destruir a cabeça de muita gente”.

Entre os argumentos que os acampados apresentam para serem incorporados aos benefícios devidos aos ex-combatentes está o teor do artigo 14º da Lei 13.234 que mostra que durante o conflito o país estava dividido em uma ou mais Zonas de Operação, assim como de uma Zona no Interior. Assim que quem estava no continente, em estado de alerta, também estava no teatro de guerra. “O regulamento do exército define como Teatro de Operações o território, tanto próprio como do inimigo, que seja necessário para o desenvolvimento das operações militares em nível estratégico e operacional. Nesse sentido, nós estávamos bem dentro da zona”. Conforme contam até os livros de história da Argentina: “Eram dias febris tanto nas Malvinas como em Comodoro Rivadavia, cidade que ficava na cabeceira do operativo militar. Unidades de transporte da Força Aérea chegavam constantemente às cidades, repletas de batalhões de infantaria. No continente, as autoridades militares ordenavam operações de defesa, diante de um eventual ataque britânico” (História da Guerra das Malvinas, A. Alonso Piñeiro, p.37).

Luis Gianinni lembra também de uma citação da Corte Suprema de Justiça da Argentina que afirma: “por guerreiro deve-se em geral entender-se o pertencente ou relativo à guerra, e, por conseguinte o ofício ou profissão daquela por homens que como oficiais ou soldados contribuem para a formação de um exército sem que importe se participe ou não de ações de guerra”. Ora, se é assim, porque então todos estes ex-combatentes estão excluídos dos benefícios? Dentro da tenda, armada na Praça de Maio, os ex-soldados insistem em dizer que a resposta deve ser buscada no “da costeleta”, como indicam o ex-presidente Menen, de quem se recusam a dizer o nome. “Agora, esperamos que Cristina seja sensível e ajude a influenciar o legislativo, atendendo nossas reivindicações e repare esse erro”.

Para os homens que há mais de mil dias perseveram, acampados na Praça de Maio, na luta pelo reconhecimento do serviço que prestaram durante a guerra que vitimou mais de 600 soldados argentinos, 17 dos quais eram seus companheiros do continente, o mais importante de tudo é que o governo e o povo argentino reconheçam que eles fizeram parte deste triste momento da pátria. “Já são 27 anos de espera, por pelo menos um aceno de consideração. Nós estivemos envolvidos e sofremos a pressão da guerra. É justo que nos reconheçam. Por um decreto, sem que fôssemos consultados, nos mandaram à guerra, e agora nos deixam aqui, abandonados. Isso sem esquecer aqueles que tombaram e deram sua vida pela Argentina”.

A guerra das Malvinas, que durou de 02 de abril a 14 de junho de 1982, foi levada pelo governo militar da Argentina, quando decidiu recuperar a ilha, roubada pela Inglaterra em 1833 durante suas incursões de rapinagem pela América do Sul. A posse daquele território na América Austral tem importância estratégica por conta do tráfego marítimo e a Argentina sempre havia reivindicado a sua retomada. A decisão de ir à guerra em 1982 esteve ancorada no desgaste do governo de ditadura militar, um dos mais violentos da América Latina, que, vivendo uma crise sem precedentes no campo econômico, precisava encontrar uma forma de distrair o povo argentino das agruras causadas pela incompetência governamental. Assim, os militares decidiram declarar a guerra de retomada das Malvinas, visando unir os argentinos sob uma única bandeira de patriotismo.

A ação de o governo militar argentino mostrou-se completamente desastrosa e as forças locais foram imediatamente aplastadas pelo poderio britânico, que chegou a enviar até submarinos nucleares para os mares do sul. Como era de se esperar, as grandes potências, como os Estados Unidos e outros países europeus, declararam apoio à Grã Bretanha e a derrota argentina foi inevitável. Em batalha após batalha, foram caindo os soldados argentinos, dando uma trágica concretude à mortal aventura da ditadura argentina, que acabou se rendendo em 14 de junho. Três dias depois o general Leopoldo Galtieri, então presidente do país, renunciou e, com esse episódio tem início a derrocada da ditadura, pois o povo dramaticamente percebia, mergulhado numa crise econômica, política e moral, que os militares não podiam mais dar respostas à vida nacional. Um ano e meio depois, acontecem as primeiras eleições livres desde 1976, com a eleição de Raul Alfonsin.

Hoje, ouvindo os ex-combatentes das Malvinas, que seguem ignorados pelas autoridades locais, percebe-se que a Argentina ainda tem muito de avançar no que diz respeito a esse episódio dramático que sepultou mais de mil vidas, entre argentinos e ingleses, nas terras geladas do sul. Os jovens que, naqueles dias, enfrentaram um dos países mais poderosos do mundo em nome de uma quimera, merecem respeito. Eles estiveram na luta, enfrentaram os que lhes eram indicados como inimigos e agora precisam que a Argentina os olhe nos olhos e lhes diga, pelo menos: “gracias”. Já não se trata mais de discutir se foi uma guerra estúpida, e foi, mas de recuperar a confiança daqueles que, de peito aberto, se colocaram na linha de frente para defender seu país. Se os demais combatentes tiveram direitos, eles também os merecem.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O Sandro de Lanús

Elaine Tavares

Viver o vertiginoso mundo bonairense de ruas cheias de gente e a opressiva força dos imensos prédios do velho centro leva o visitante a buscar algum respiro na surpreendente vida argentina. Uma boa pedida é pegar algum ônibus e visitar as pequenas cidades que gravitam em torno da capital. Nada mais do que caminhar pelo que eles chamam de “província”. Assim fizemos. Ao final da tarde partimos rumo a Lanús, que fica ao sul da capital Buenos Aires e já está inscrita na história da Argentina por ser a cidade natal do imortal Diego Maradona. Mas, afora isso (o que não é pouco) também é um importante pólo industrial de produtos químicos, armamentos, papel, couro, borracha, fios e frigoríficos.


Na verdade, Lanús não é uma cidade pequena, toda sua extensão abriga mais de 400 mil habitantes, mas, comparada ao fervo capitalino acaba sendo uma ilha de sossego, bem típica do interior argentino. Ruas largas, calçadas amplas, muitas árvores e casas baixas. Um lugar onde, ao final da tarde, as gentes ainda sentam nos alpendres para tomar um bom chimarrão. Foi ali que chegamos com a noite para um agradável jantar na casa de uma amiga.

Entre um mate e outro, com a mesa plena de “fartura”- um costume de acompanhar o chimarrão com uma série de pequenos pãezinhos doces - acabamos encontrando Ana, uma mulher adorável, exemplo único da vida daquele rico país. Professora desde há anos, ele também fora durante grande parte de sua vida a presidente do fã clube de Sandro, um ícone da canção popular argentina, comparado ao nosso Roberto Carlos.

E foi assim que aquela noite singular se fez cheia de memórias do fundador do rock argentino e o precursor deste ritmo em toda a América Latina. Tanto que era conhecido como “Sandro de América”. E, enquanto mastigávamos os doces, saltavam fotos e vídeos do cantor que, no ano de 1960, explodiu em toda a Argentina com a canção “Comendo rosquinhas quentes na Ponte Alsina”. Moreno, bonito, com um charmoso nariz adunco, Sandro iniciou sua carreira imitando Elvis Presley, inclusive com seu famoso remexer de quadris. Mas, com o passar do tempo foi adquirindo seu jeito próprio, latino.

Ana conta que desde os primeiros sucessos de Sandro ela se tomou de amores por ele e como era nativo dali mesmo, de Lanús, não foi difícil se aproximar e iniciar o fã clube. Durante toda a longa carreira do cantor, Ana esteve por perto e lembra com tristeza dos angustiosos dias em que ele lutou pela vida no hospital onde efetuara um complexo transplante de pulmão e coração. “Poucos dias antes ele havia ligado pra mim, dizendo que estava bem. A sua morte foi um choque. Sentimos como se tivesse sido alguém da nossa família”. Ela lembra que Sandro viveu em Lanús durante toda a sua vida e que no dia do seu aniversário, todos os anos, as fãs organizavam caminhadas até lá e ele as recebia com carinho e atenção. “Ele sempre foi muito querido com todas”.

Saímos de Lanús com o DVD do Sandro, um CD e toda aquela sorte de memórias que tornam alguém especial. Mais tarde, ouvindo as canções, notamos que algumas delas foram gravadas em português pelo nosso também “imorrível” Sidney Magal. Sandro foi um sucesso até o fim da vida, embora tenha vivido um certo período de ostracismo quando, nos anos 80, os “intelectuais” rotularam suas música de “brega”. Para a legião de fãs que sempre o acompanhou Sandro nada tinha de brega, ele apenas expressava as dores do amor nas suas canções românticas, que o tornaram ainda mais adorado. Mas, nos anos 90 os jovens do rock argentino promoveram uma recuperação da sua obra, convidando-o para shows conjuntos e reverenciando o cantor como a um mestre, precursor de um tempo muito rico na Argentina. Sandro voltava à vida, ainda que guardando sua habitual humildade. Conhecido como “o cigano”, por sua mirada “tanguera”, profunda e sensual, até os últimos dias de sua vida o cantor argentino recebeu o carinho das fãs que o acompanhavam religiosamente.

Quando encantou, seu corpo foi velado no parlamento nacional e o cortejo foi acompanhado por milhares de pessoas. Ao longo do percurso até o cemitério se postavam aquelas que Sandro chamava de “minhas meninas” com flores e canções. Foi um dia de profunda dor para o povo argentino.

Caminhando pelas ruas de Buenos Aires pode-se perceber que Sandro está mais vivo do que nunca. Qualquer banca de revistas apresenta várias publicações com a foto do “cigano” na capa. Suas músicas tocam no rádio, são conhecidas por todos e fazem parte da história da Argentina.

Assim, naquela noite quente, em Lanús, também nós ficamos mais próximos de um dos mais importantes ícones da música popular latino- americana, filho de uma periferia operária, que nunca cedeu passo à mosca azul da fama. “Ele era um homem simples e por isso será eterno nos nossos corações”, sentenciou Ana, enquanto, absorta, cantarolava sua canções, com os olhos cheios de amor grudados na tela da TV onde Sandro remexia seu corpo sedutor.

Agora, enquanto escrevo estas notas Sandro canta ao meu ouvido uma terna canção de amor... “Penas, y penas, y penas, hay dentro de mi… Y ya no se irán porque a mi lado tú no estás. Te recordaré, como algo que fue, solo un sueño hermoso y nada más”… E eu me sinto tão feliz por tê-lo conhecido, agora transformada em “sua menina” também! Gracias Ana, foi um presente!...


sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Exclusivo: Entrevista com Julian Assenge

Um iniciativa de blogueiros brasileiros, via Carta Capital, vai oferecer entrevista exclusiva com o criador da Wikileaks, Julian Assenge. Este material sairá em breve apenas na rede de blogs. Nós estamos fazendo parte desta rede e também disponibilizaremos a entrevista. Toda a gente pode participar questionando o homem que causou furor com a divulgação de informações "secretas". Quem quiser fazer alguma pergunta ao Julian pode mandá-la via comentário, até o final desta sexta-feira, no blog da Carta Capital: cartacapitalwikileaks.wordpress.com
Fonte: http://eteia.blogspot.com

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A RESPIRAÇÃO DA NINFA NUA


Arlaud, 1920

Fernando Karl

Ninfa nua em flor no fundo do céu
respira se eu sonho com ela.
O céu é um diamante aéreo
e eu espio a ninfa no terraço grego.

Por cima de minha cama,
se eu acordar, ela some.
Por isso me olha compenetrada,
a ninfa nua que vem à tona do rio.

Voa entre árvores altas e barcos.
Voa e sabe, com pavor,
que deve cultivar meu sono.

Nele é que respira a ninfa nua,
ao lado de ventos que, vindos do alto,
suavizam a respiração do meu sonho.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Tocando com Almir Sater



Míriam Santini de Abreu

Amo Almir Sater, por sua música e por ter aqueles olhos raros, mansos e sensuais. Amo "Tocando em Frente", mas que jóia é também esta outra: http://www.youtube.com/watch?v=5LJACMV8fPY

Em Caraá, a nascente límpida de um rio castigado




Míriam Santini de Abreu

Um lugar para ver a noite coalhada de vagalumes, dividir a estrada com carro de boi e banhar-se nas águas limpas da nascente de um rio. Num tempo em que veranistas se estendem aos milhares nas praias do Atlântico catarinense, quem pode e gosta de viajar tem a opção de seguir rumo ao sul e chegar a Caraá, a 90 Km de Porto Alegre. Ali, como canta Ivan Lins, a gente sente que, mesmo vivendo na cidade, tem em si um pouco de “bicho de rio e de mato”.

No pequeno centro do município há um prédio de 1933, da família Fofonka, que é como uma marca do lugar. Nelson Fofonka, de 50 anos, conta que o bisavô veio da Áustria para o Brasil e assim os descendentes foram fincando raízes na nova terra. Os Fofonka tem mercado, venda de produtos agropecuários – que fica no casarão dos anos 30 – e a “Casa Princesa de Nelson Fofonka”, que parece ter nas prateleiras o que se puder imaginar. É como encontrar tudo o que há no Mercado Público de Florianópolis dentro da pequena casa de madeira pintada de azul.

Um dos lugares onde o visitante pode ficar é na Pousada Camélias Brancas, a 16 Km da sede do município. Ali é como uma estalagem onde a gente entra, se apresenta, tira o calçado e se esparrama em um sofá. Parece que está em casa. Os donos, Elizete Cardoso e Arno Boelter, recebem os visitantes com iguarias feitas, em boa parte, por ela própria. Elizete costuma acordar ainda de madrugada para assar vários tipos de pães, quase quentes quando, no café da manhã, neles se espalham geléias de abacaxi, figo, bergamota, uva. Ao lado da pousada corre o Rio dos Sinos, com as margens tomadas por cachos de hortênsias azuis. À noite, tem-se direito ao céu. Graças à escuridão, a Via Láctea, com a familiar Constelação do Órion, é esplêndida.

Da pousada até o início da trilha para a nascente do rio é preciso percorrer mais um trecho de estrada sem asfalto. A caminhada no meio da mata, por cerca de dois Km, leva cerca de uma hora. O ideal é contratar um guia e negociar o preço, porque há vários trechos onde é preciso atravessar o rio e é fácil se perder. No caminho há três quedas d´água. Uma é de cerca de seis metros de altura e outra de 20 metros. Nesta o trilheiro já pode se dar por satisfeito.

Mas dali até a Cascata da Nascente vai mais meia hora de caminhada, e esta exige esforço um pouco maior. Nos trechos muito verticais há cordas nas quais o visitante pode se agarrar para não correr o risco de cair ou ficar pelo caminho. E assim, passo a passo, entre uma e outra escorregadela ou batida em galhos e pedras, a gente começa a ouvir um gorgolejar, um rugido mais intenso, e numa curva aparece o paredão coberto de mata pelo qual despencam, ao longo de 120 metros, as primeiras águas do Rio dos Sinos, que percorrem 190 Km até a foz, no Delta do Jacuí, município de Canoas.

- O que há lá em cima? – pergunto ao guia, Olívio Milhacheti, 50 anos, que já foi até o alto do paredão.

- Ah, ali é tipo um banhado, corre a água, elas se rejuntam e descem na cascata.

Olívio diz que, na nascente de água limpa, há muito lambari e jundiá. Mas conforme o Rio dos Sinos segue seu sinuoso trajeto, aquele feito pelos primeiros colonizadores da região – inclusive luso-açorianos - isso muda. As águas percorrem municípios de vocação industrial, como Novo Hamburgo e São Leopoldo, e recebem resíduos industriais e domésticos. Em 2006 ocorreu um dos maiores desastres ecológicos do Estado, com a morte de cerca de um milhão de peixes. No final do ano passado ocorreram mais dois casos, porém em menor escala. Por isso, conhecer esses lugares e essas histórias deixa no viajante aquela impressão profunda, de ser também “bicho de rio e de mato”. Mas desse rio, desse mato, é que se arranca o conforto da cidade, e ao rio se devolve o quê? Longa vida à nascente de Caraá.


Como chegar:

Via Br-101 até Osório e dali pela Br-290 (Freeway) até Santo Antônio da Patrulha, que fica 10 Km antes de Caraá. Acesse http://www.caraa.rs.gov.br/


Veja o vídeo sobre a visita à Cascata da Nascente em:

http://www.youtube.com/watch?v=LnyxQ9iSvMY

Nascente na gente

Míriam Santini de Abreu

Fico a pensar nesta metáfora da “nascente”, a origem, o lugar de onde brota o caldo original do que depois vai se alimentar de outras águas. E é reconfortante pensar que há na gente, também, uma nascente, à qual podemos chegar depois de atravessar florestas sombrias e rios gelados. Tal qual a lenda da fonte de juventude, nossa nascente também é um poço de água pura, sem medos, com corpo e espírito disponíveis para a vida. E se há, em nós, essa nascente, não haverá também uma nascente coletiva, a nascente coletiva da humanidade? E embebidos nela e dela não poderemos fazer do mundo um lugar diferente?

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Povo Qom luta por terra na Argentina

Elaine Tavares

O Chaco argentino é uma região dura. Ali, nos meses de verão, a sensação térmica pode passar dos 50 graus. Poucos são aqueles que se atrevem a sair de casa no horário que vai das 10 às 16 horas. Tudo parece derreter e a umidade se agarra nos ossos, tornando a atmosfera quase irrespirável. É nessa extensão de terra, fronteira com o Paraguai, que vivem ainda dezenas de etnias originárias, do chamado grupo Tobas (do guarani tová, que significa rosto, cara, frente). Esta expressão, depreciativa, foi dada pelos conquistadores, ainda que buscada da língua local, porque estas etnias tinham por costume raspar a parte dianteira da cabeça. Atualmente, cada uma delas reivindica seu verdadeiro nome, como é o caso dos Qom. Seu território ancestral se esparrama pelo Paraguai e parte da Bolívia. Assim como todos os originários desta imensa Abya Yala estes povos também tiveram de vivenciar a invasão de seus espaços sagrados, a destruição de sua forma de vida e o quase extermínio. Mas, também seguindo o rastro do grande movimento que hoje percorre as veias abertas destas terras do sul do Rio Bravo, estão novamente de pé, reivindicando direitos e fazendo ecoar suas vozes nas selvas de concreto erguidas pelos conquistadores.


Hoje, os Qom, uma das etnias que habitam aquela região, estão fincados no meio do mini-centro de Buenos Aires, na Avenida 9 de julho, com suas bandeiras coloridas, suas canções, sua língua e suas demandas. Eles decidiram montar ali um acampamento para protestar contra os abusos que seguem sendo cometidos pelos governos e pelos empreendimentos privados, que insistem em roubar suas poucas terras e empurrá-los para a morte.


A movimentação começou na região de Formosa, cidade de Clorinda, na comunidade La Primavera, reduto originário dos Qom, quando o governo provincial de Gildo Insfran (acusado de racista pelos movimentos sociais) enviou a polícia para retirar as famílias que lá vivem, sob a alegação de que iria construir ali um Instituto Universitário. As famílias não aceitaram a expulsão e decidiram resistir, trancando a estrada, evitando assim a entrada das máquinas que tinham sido enviadas pela empresa que deverá construir a universidade privada. No conflito morreu Roberto Lopez, de 53 anos, e outro ficou gravemente ferido, morrendo depois no hospital da região. Vinte e nove pessoas acabaram presas, entre elas mulheres com seus bebês.


Segundo Rubén Días, um dos representantes do Qom em Buenos Aires, tão logo se deu o conflito, a comunidade recebeu o apoio de várias etnias amigas e próximas tais como os mapuche, aymaras, quéchuas e collas. “Os nossos companheiros sabem, como nós mesmos, que há uma lei que reconhece aquele território como nosso. Não há como alguma empresa ou o governo agora querer a terra. Ela é nossa”. Hoje, vivem naquela área mais de 800 famílias Qom, perfazendo cinco mil pessoas, embora toda a etnia espalhada por reservas e cidades conte com mais de 60 mil almas. “Nós nunca fomos vistos pelo governo provincial, não temos água, luz, hospital ou caminhos. Mas, agora, o poder quer nosso território. Não vamos permitir que isso aconteça, vamos lutar”.


O acampamento no centro de Buenos Aires visa pressionar o governo federal, e eles estão há meses tentando uma audiência com a presidente Cristina Kirchner, coisa que ainda não aconteceu, mesmo tendo os integrantes realizado uma greve de fome de 30 de dezembro a 12 de janeiro, que foi encerrada depois de uma visita de um representante do governo. Este lhes assegurou que a questão da documentação das terras seria resolvida, mas até agora nada foi feito. Pelo contrário, a ocupação de terras indígenas por empresas privadas sob a ação da polícia segue acontecendo. “Esta semana teve outro desalojo, para você ver, por isso essa luta não é só da comunidade Primavera, é de todos nós, originários”. Días espera que a luta exposta bem no centro da capital possa enternecer o coração da presidente Cristina e que ela exija dos governos provinciais o cumprimento da lei que dá aos originários o direito a desfrutar do seu território. “Nós não queremos essa vida aqui na cidade, queremos viver na nossa terra. Lá, nosso supermercado não exige dinheiro, é a pesca, a caça, coisa que podemos fazer sozinhos, sem precisar pagar a ninguém. Não estamos acostumados a pedir coisas para comer, a gente faz isso em comunidade”.


Rubén Días espera que o governo respeite a luta de toda a sua gente que, desde a conquista, vem lutando para sobreviver com dignidade. “Estamos reclamando apenas o que é nosso. Essa terra é do nosso povo. Só saímos daqui quando o povo Qom entender que já está cumprida a nossa missão, com o devido respeito à lei que nos garante a terra. Aqui ninguém é contra o governo. Só queremos o que é nosso”.


A comunidade denuncia ainda o completo desrespeito à pátria e a sua cultura, na medida em que os policiais que atacaram o povo Qom ainda queimaram as bandeiras da Argentina e a sagrada Wiphala, dos originários. Os povos da região do Chaco são reconhecidamente povos guerreiros e lutaram sem tréguas contra a tentativa de aculturação pelo homem branco, tanto que em 1858 quase invadiram a cidade de Santa Fé, sendo reprimidos violentamente pelo exército argentino. Em 1919 voltaram a se rebelar e mais uma vez foram massacrados, com mais de 200 mortes no chamado “massacre de Napalmí”. Hoje, eles voltam às ruas, armados apenas de sua inquebrantável coragem chaqueana e esperam que não haja mais massacres, mas sim o reconhecimento de sua luta e cultura.


Fotos na página do Iela: http://www.iela.ufsc.br/?page=noticia&id=1632

domingo, 16 de janeiro de 2011

LUGAR DE MULHER É NO SALÃO DE BELEZA???

Li Travassos

Dia destes li um texto de Marcelo Semer, sobre o que se falou na internet na data da posse de Dilma, e especialmente sobre Marcela Temer. A pobre "segunda dama" teria sido acusada de golpista, interesseira e daí para baixo, por ser uma mulher bonita e ter casado com um homem mais velho e poderoso (leia o texto integral em http://blog-sem-juizo.blogspot.com/2011/01/superar-estereotipo-e-primeiro-passo.html). Embora tenha achado o texto de Marcelo ótimo, creio que faltou falar do que a mídia oficial comentou sobre a posse, e também sobre as bobagens postas em destaque agora que temos uma mulher no poder máximo.

Na Globo News, minutos antes da posse, Cristiana Lobo não falava em outra coisa a não ser: "como será o vestido da presidente?" Com a desculpa de querer saber se seria vermelho, em deferência ao PT, ou de outra cor, o comportamento desta mulher jornalista, aparentemente um tanto descolada dos moldezinhos de gênero, lembrava todos os comentários a respeito do vestido de Michelle Obama na posse do marido. No domingo seguinte ao da posse, o Fantástico informava quem vai ser o cabeleireiro de Dilma. Informação fundamental para o futuro do país, não? Também ouvimos comentários sobre as plásticas que Dilma teria feito, as vezes em que trocou o penteado...

E, para mim, este destaque a esposa de Temer (ao menos o que acontece na mídia oficial) não é uma tentativa de reduzi-la a uma boneca interesseira, mas sim, uma tentativa de elogiar-lhe justamente os atributos opostos aos de Dilma. Ela sim, faz o papel que uma mulher deve fazer: fica quietinha do lado do marido, e ainda por cima enfeita a festa, já que nasceu com uma beleza acima da média. Isso não é apenas reduzir a mulher a seus atributos físicos, mas indicar às mulheres de classe média e alta a posição correta de mulher "por trás do grande homem". Mulheres que deveriam gastar seu tempo não no trabalho produtivo, mas no salão de beleza ou "fazendo comprinhas".

Nesta linha, o Fantástico do domingo seguinte ensinava a fazer tranças como a de Marcela, pode??? É quase como se Marcela fosse nossa nova primeira dama. Não é, é a segunda. Mas onde está a primeira, se Dilma não tem sequer um marido para ser primeiro cavalheiro??? Como fica esta nova ordem brasileira onde uma mulher sozinha irá comandar o país, sem sequer um marido que disfarçadamente lhe soprasse ao ouvido o que fazer (como acusavam Cristina Kirchner de agir enquanto seu marido era vivo)?

Dilma, para esta direita retrógrada e desesperada, que não aguenta uma mulher no cargo máximo do país, é a nova primeira dama de Lula. À dona Marisa, a quem a imprensa nunca perdoou a falta de nobreza no sangue e na postura "brasileira" (leia-se pobre) demais, não se deu sequer o direito do adeus que um divórcio ou a morte traria... Assim, uns vão repetir ad nauseam que Dilma só faz o que Lula manda (e portanto ela não passa de uma primeira dama), enquanto outros vão considerar Marcela a primeira dama, e portanto, Temer seria o verdadeiro presidente do Brasil. Dilma só estaria lá por descuido...

De minha parte, gostaria de dizer a Marcela Temer que, independentemente do que eu possa pensar a respeito das posturas políticas de seu marido, entendo perfeitamente porque casou com ele, afinal, o sujeito tem lá o seu charme, não? E que ela não leve a sério demais nem as críticas nem os elogios, pois está apenas sendo usada como bucha de canhão por quem, não tendo mais o que fazer contra a eleição de Dilma, está tentando manipular informações, e vai usar quem for preciso para isso.

Quanto a Dilma, quero dizer a esta mulher corajosa ao extremo que ela é, uma frase de Zeca Baleiro: "Você não precisa de um salão de beleza [...] a sua beleza é bem maior do que qualquer beleza de qualquer salão"... Afinal, você sabe que não está aí neste lugar para "ser bonita", mas para comandar o país. E se respeitar os interesses das mulheres, como vem prometendo fazer, não precisa nem convidar sua filha para lhe acompanhar em qualquer cerimônia, pois você nunca estará sozinha, mas sim com milhares de pessoas que querem ver este governo dar certo.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Recados da natureza

Celso Vicenzi – Jornalista

Impossível não pensar na arrogância humana diante da fragilidade da vida. Nada parece abalar as nossas rotinas até que, tudo aquilo que parecia tão firme, desaparece de repente. Submetido às forças da natureza, o que é sólido se desfaz em instantes. O tempo de vida, uma promessa cada vez mais longa para os humanos, pode esvair-se numa ínfima fração de tempo. Diante de situações que não controlamos, não há muito o que fazer. O planeta, desde que começou a abrigar as primeiras formas de vida, nunca foi lugar seguro para nenhuma espécie – 90% delas já desapareceram, dizem os cientistas. O que leva à conclusão de que o destino de todos os seres vivos é a inevitável extinção e o surgimento de outras espécies. Pelo menos até o desaparecimento do Sol, previsto para daqui a uns 5 bilhões de anos, quando também os planetas em seu entorno serão pulverizados. Mas o ser humano tem acelerado o relógio do tempo, desnecessariamente. Porque elegeu um modelo de sociedade que destrói rapidamente o próprio habitat. Ao interferir de forma tão contundente na natureza, desencadeou reações cada vez mais frequentes e de incontrolável agressividade: enchentes, deslizamentos, secas e incêndios – entre outros fenômenos naturais.



A ação humana tem sido o estopim de muitas tragédias anunciadas: pela ocupação desordenada de encostas e áreas inundáveis; pela falta de distribuição de renda e políticas habitacionais, que empurram os mais pobres para áreas de risco; pela inexistência de projetos adequados para a destinação dos resíduos sólidos; pelo desmatamento; pela desordenada ocupação urbana; pela poluição industrial; pelo incessante apelo à compra de bens materiais que degradam o solo, o ar e a água. Os meios de comunicação culpam os governos pela falta de obras de prevenção, mas nada dizem sobre o estímulo que produzem à sociedade de consumo.



O ser humano criou um estilo de vida que se transforma numa espécie de lento suicídio coletivo. Nos últimos 300 anos, aproximadamente, acionou um motor que pode vir a ser o da própria extinção. Durante milênios, viveu com muito pouco. Há algumas gerações, desde as primeiras máquinas a vapor até a mais informatizada delas, desencadeou um modelo de sociedade baseada na substituição frenética de bens de consumo – para muito além das necessidades básicas –, que provoca danos ambientais em escala sem precedentes.



Os avisos não param de chegar. Estudo recém-publicado pela revista científica Nature diz que o aumento das emissões de dióxido de carbono (CO²) terá impacto sobre as temperaturas da Terra pelos próximos mil anos e elevará em quatro metros o nível das águas do mar. Uma catástrofe com consequências devastadoras e imprevisíveis em sua extensão, pois há de modificar rapidamente todo o ecossistema sobre o qual a vida se sustentou até aqui. O sal dos oceanos irá contaminar boa parte do lençol freático. Haverá drástica redução dos recursos de água potável. A temperatura dos oceanos sofrerá impactos que irão dizimar boa parte da vida marinha. O equilíbrio entre espécies entrará em colapso. Algumas irão proliferar caoticamente, outras desaparecerão. A irregularidade de sol e chuva terá impactos sobre a agricultura, e a fome será o flagelo de milhões. Epidemias e doenças até então desconhecidas irão proliferar numa velocidade maior do que as respostas da ciência. Mortos se empilharão por toda a parte. Alarmismo? Estamos tão anestesiados em nosso mundo virtual e material que desprezamos os avisos da natureza. E de milhares de cientistas, que alertam para consequências devastadoras.



Especialistas dizem que os fenômenos climáticos de grande intensidade serão cada vez mais frequentes e de maior magnitude. Apesar de todas as evidências da mão humana ter aberto essa Caixa de Pandora, poucas pessoas parecem dispostas a questionar a ideologia de consumo que desencadeia muitos desses desastres. Há reações tímidas na construção do chamado “desenvolvimento sustentável”, mas ainda insuficientes para atenuar o desastre ambiental. A tecnologia pode e deve estar a serviço do bem-estar de toda a humanidade, diferente do que ocorre atualmente, voltada para gerar lucros em benefício de poucos.



O modelo de civilização precisa mudar. Não haverá futuro para o ser humano se ele não estiver em equilíbrio com a natureza. Mas a imensa maioria, quando confrontada com essa situação, prefere viver como se nada disso fosse ocorrer – ou que ainda estivesse muito distante. Nada parece perturbar a fé dos que elegeram o mercado como um novo deus e a mídia como o seu profeta. A ideologia do “progresso” continua inabalável, apesar de a miséria e a degradação ambiental espalharem-se pelo planeta. A ciência encontrará uma resposta, confiam os cidadãos abastados, absortos em consumir a última novidade tecnológica, sem nunca perguntar quais os custos ambientais para produzir tanto luxo e tanto lixo.



Tragédias ambientais como as do Rio de Janeiro e outras tantas pelo Brasil e pelo mundo devem servir de alerta, para conscientizar de que algo está muito errado e precisa mudar. E que é preciso cobrar das autoridades e de todos os cidadãos um compromisso responsável para com as atuais e futuras gerações que habitarão o planeta.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Jornalismo em Floripa

Mais uma bem-vinda iniciativa de jornalismo de qualidade em Floripa! Agora na região do distrito de Santo Antônio de Lisboa. O site ainda está operando em caráter experimental, com a coordenação editorial do jornalista Celso Martins. Veja em

http://www.daquiweb.com.br

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Projetos de verão




Míriam Santini de Abreu

Estive hoje em um órgão público para doar livros sobre a área na qual eles atuam. Chego lá e, na portaria, recebo a informação de que a biblioteca foi desativada. Pergunto o motivo e me respondem que tem algo a ver com o fato de o Ministério ao qual o órgão está ligado não ter enviado novas publicações. Na pressa, não busquei mais detalhes, mas de todo o modo deixei os meus livros lá. Biblioteca desativada, ora essa...

Na terça doei outros para um sebo, e ainda tenho mais, parte deles para o Sindicato dos Jornalistas de SC. Tudo porque aconteceu um fato raro. Boa parte dos meus livros estava em uma caixa; outra, empilhada de forma precária, e uma terceira – os que mais uso – sobre uma mesa ao lado da TV. Ainda em outubro comprei uma estante de metal para organizar a bagunça, e desde então tudo estava igual: livros empilhados e estante vazia.

Mas eis que, em função de um mofo repelente na parede ao lado da minha cama, cada vez mais devorador da tinta e do reboco, parede na qual os livros estavam apoiados, constato que a umidade havia começado a devorar também “Colapso”, de Jared Diamond. Quem quase entrou em colapso fui eu.

Pedi ao proprietário que reformasse a parede e, na volta da viagem de dez dias ao RS, encontro o apartamento em obras (os livros estavam protegidos dentro de sacos). O serviço ficou ótimo e, de tão animada, passei o final de semana passado arrumando a estante, separando os livros por assunto, louca para iniciar a escrita dos vários artigos que estão já nascendo em mim.

Serviço concluído, eu não parava de espiar a estante e sorrir. Organizados os livros, agora é hora de organizar as idéias. E ainda tenho a minha cadeira verde de cineasta para me refestelar no verão e fazer as leituras!

Em tempo: desde o ano passado estou para expressar a minha indignação com o fato de terem demolido o Edifício Mussi, aquela joinha azul na Nereu Ramos, construção de 1957. Toda vez que eu passava por lá, pensava:

- Ah, que bom lugar para morar.

Agora está ali um tapume horrível, ocultando as raízes de mais um prédio qualquer onde nem 5% da população da Capital têm como comprar uma moradia.

Leia mais em http://www.defender.org.br/florianopolissc-edificio-mussi-vira-pedra-sobre-pedra/