segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sobre jornalismo, literatura e a metáfora do poço



Míriam Santini de Abreu

Ando a me meter na vereda literária. Não com crônicas, que gosto de fazer, mas desta vez com uma novela que prometi a um amigo que é editor de um jornal semanal.

Antes de iniciar a empreitada, pesquisei sobre o assunto. Romance, novela, conto, crônica, todos têm elementos que os diferenciam.

A crônica tem como base a vida real, que o olhar do cronista captura, e o cronista pode ou não ser jornalista. Há muito tempo os jornais acolheram a crônica. Mas novela é ficção, ritmo rápido, ação o tempo todo, personagens que entram e saem, que ora são protagonistas, ora figuras secundárias. Há espaço para o mistério, o grotesco, o patético, e sempre deve ficar no ar, a cada episódio, um fio de mistério para atrair o leitor ao capítulo seguinte.

Mas a minha novela não estará na tv, e sim em um jornal semanal, que circula em uma cidade específica. Cada capítulo deve ser curto, em torno de 4 mil caracteres. Escrevê-la tem sido um desafio e uma revelação.

Há muitos bons livros sobre as diferenças e aproximações entre jornalismo e literatura. Mas o que tem ficado claro para mim, nisso tudo, se mostra por uma metáfora que vou usar: a metáfora do poço.

Os jornalistas sabem que escrever uma reportagem extensa é sangrar. Isso porque textos deste tipo envolvem pesquisa, domínio de recursos literários, capacidade de observação, intuição e muitas entrevistas. E depois isso tudo, alinhavado e costurado, vira o texto da reportagem.

Eu chego à conclusão de que a parte em que a gente mais sangra é na hora de entrevistar e de escrever, e isso por causa do poço. Mas depende do tipo de reportagem. Reportagens de denúncias, por exemplo, que envolvem mais pesquisa e entrevistas nas quais se quer aprofundar o caso – e não a vida do entrevistado - , são diferentes daquelas que envolvem a busca de um ser, do que um certo fato significou na vida dele, de uma comunidade.

Vejo dentro de cada ser um poço. Eu conheço – um pouco - o meu: a profundidade, a espessura do limo, o cheiro e o gosto da água. Conheço pedras onde posso me apoiar quando desejo sair do contato com a água, e sei de seu silêncio e de seus animais, que ali também habitam.

O grande problema é que, mesmo os outros sendo como eu – humanos – eu nada sei do poço deles. Não posso garantir que o poço do outro tenha a característica do meu. Cada poço é único. E, em uma entrevista, o que a gente faz é isso, sondar o poço. Mesmo em uma pequena notícia, posso ver o poço de longe e já dizer alguma coisa. Em um texto maior, sento na beira do poço do outro, olho lá embaixo, toco as paredes. Em casos extremos, entro com ele no poço que a ele pertence, mas posso sair quando quiser – se for belo ou assustador - ficando ele com as estranhezas de suas águas e eu com as minhas. Entrar no poço do outro é o auge da reportagem em profundidade, mas essa os jornais, hoje em dia, pouco fazem.

Mas, depois, o que sangra ainda mais é escrever, porque aí o jornalista terá que interpretar o que viu, sentiu, tocou. Terá que descrever o poço do outro, o sentir-se ali. E muitos nada sabem do seu próprio. Como interpretar o do outro, a dor, o prazer que ali habitam? Este é o poder e o pavor quando se usa a linguagem. Cito uma frase de Antonio Olinto:

“Parece instável o mundo das palavras. O homem que nele vive sente faltar-lhe, a cada passo, o solo, como se os sons estivessem sempre em fuga, tentando afastar-se do pensamento. O jornal malbarata palavras com espantosa prodigalidade. Joga-as ao vento, ao uso de todos os leitores, transforma-as em ruídos e sinais às vezes sem significação. O jornalista tem, em seu poder, essa grandeza e essa miséria. E a afirmação desse contraste não é a permanência de uma atitude romântica em relação à linguagem. É a caracterização de um dilema, de um sentimento de luta”.

Sim, essa grandeza e essa miséria é que assaltam o jornalista que precisa falar do poço do outro.

Escrever essa pequena novela me fez pensar sobre o motivo pelo qual tenho essa relação com poços e cisternas. Acabei por lembrar de um episódio da infância. Perto da casa de minha avó Antônia havia ainda muito mato naquela época, e ela alertava, sobre um determinado lugar que oferecia perigos reais:

- Nunca entrem ali, pois há um poço bem oculto que quase não tem fundo.

Eu devia ter uns oito anos, e uma vez percorrei metade do caminho proibido, até ficar apavorada demais e voltar.

E agora compreendo também porque amo tanto a história bíblica de José, que foi jogado ao poço por seus irmãos, ou das sete mulheres da terra da Madiã que tiravam água do poço para dar de beber ao rebanho do pai. E porque fiquei umas duas semanas sem dormir direito depois de ver aquele filme horrível, “O Chamado”.

Agora, percebo que escrever ficção tem esta vantagem: pode-se entrar no nosso poço e também inventar o poço de todos os outros, formas, espessuras, odores. Sou onisciente. Os poços são todos meus, e deles faço o que quero, e falo deles o que desejar e inventar. Podem ser abundantes e com água limpa, limosos, secos... Isso é absolutamente libertador. Mas não me iludo. Deve haver um preço. Ainda não sei qual...

5 comentários:

elaine tavares disse...

Belíssimo texto minha irmã... Tem um preço sim..vais descobrir... mas sempre vale a pena porque nossa vida é isso.. escrever, entrar em poços e sair deles, inteiras...

Anônimo disse...

Belo e sensível texto, querida Miriam/Cada ser/cada poço/seguimos todos com os nossos poços de alteridade/tudo parte do "grande" poço/tudo dentro/e fora/brevíssima humanidade. Giba Motta

Sílvia Sales disse...

Fan-tás-ti-co!!!
Texto irretocável.
Feito um poço encantado de poesia, ideias e sonhos.
Meus aplausos!

Sílvia Sales disse...

Gostaria de saber se eu posso publicar esse texto na lista nacional do LutaFenaj!

Anônimo disse...

Colega Sílvia, fique à vontade e muito obrigada!

Um abraço, Míriam