Míriam Santini de Abreu
Nos dias em que fiquei em Caxias do Sul, no final do ano, uma das minhas tarefas - sempre adiada - foi organizar umas oito caixas de objetos que tenho guardados há 20, 30 anos e que me recuso a jogar fora. Ficam lá, na prateleira de madeira ao lado do roupeiro. Meus diários, antigas cartas, um daqueles artefatos em que uma foto é embutida dentro de uma espécie de cone e lá no fundo se vê a imagem se houver luz. O meu é de 1971. Eu tinha menos de um ano e estou sobre um cavalinho de brinquedo, na praça central da cidade, ao lado do pai e da mãe.
Nas caixas também estão pequenas toalhas com minhas inúteis tentativas de bordado, medalhas da época em que eu participava de rústicas, uma Suzie cigana, um cervo de vidro sem meia pata, conchas, cartas... Eu coloco uma ou outra coisinha na reciclagem, e declaro a todos que o serviço foi feito, que ficou apenas o que efetivamente não pode ser descartado.
Há dezenas de bilhetes que não consigo jogar fora, trocados com colegas durante as aulas no colégio Santo Antônio. Chamávamos isso de "bilhetar". Às vezes eram folhas, restos de páginas, e até cadernos inteiros. Bilhetávamos o tempo todo. Como amo ler aqueles recados, os pequenos segredos, as ligeiras confissões que hoje ganham um novo sentido...
Encontrei também uma agenda onde, em 1991, o jornalista Ricardo Kotscho deu-me um autógrafo: "Para a Míriam, que nunca perca a esperança". No verso, um poema que amo muito, de Sara Teasdale, poetisa dos EUA que infelizmente parece nunca ter sido traduzida no Brasil. Devo ter encontrado este em alguma das velhas Seleções. Tínhamos dúzias, algumas dos anos 40. O poema diz assim:
Sobre as Dunas
Se houver qualquer vida quando a morte passar,
Estas praias fulvas saberão muito sobre mim;
Eu voltarei, tão constante e mutável
Como o mar imutável e multicor.
Se a vida foi curta, se me tornou desdenhosa,
Perdoa-me; eu me aprumarei como uma chama.
Na grande calma da morte, e se você quiser
Fique no alto das dunas voltado
para o mar e grite o meu nome.
Sara Teasdale em Flame and Shadow
Fico a pensar se desdenhar pode ser uma forma torta, retorcida, de amar. Às vezes se desdenha algo que insuportavelmente a gente ama. E então ficarão somente as dunas para dar testemunho disso, mas quem teria ímpeto para ir até lá e gritar? Este é parte de um poema maior. Quisera eu conhecê-lo todo.
O que sei é que, ao final do serviço, o pai pergunta:
- Arrumou tudo, filha?
- Sim, pai. Ficou apenas o essencial...
Nos dias em que fiquei em Caxias do Sul, no final do ano, uma das minhas tarefas - sempre adiada - foi organizar umas oito caixas de objetos que tenho guardados há 20, 30 anos e que me recuso a jogar fora. Ficam lá, na prateleira de madeira ao lado do roupeiro. Meus diários, antigas cartas, um daqueles artefatos em que uma foto é embutida dentro de uma espécie de cone e lá no fundo se vê a imagem se houver luz. O meu é de 1971. Eu tinha menos de um ano e estou sobre um cavalinho de brinquedo, na praça central da cidade, ao lado do pai e da mãe.
Nas caixas também estão pequenas toalhas com minhas inúteis tentativas de bordado, medalhas da época em que eu participava de rústicas, uma Suzie cigana, um cervo de vidro sem meia pata, conchas, cartas... Eu coloco uma ou outra coisinha na reciclagem, e declaro a todos que o serviço foi feito, que ficou apenas o que efetivamente não pode ser descartado.
Há dezenas de bilhetes que não consigo jogar fora, trocados com colegas durante as aulas no colégio Santo Antônio. Chamávamos isso de "bilhetar". Às vezes eram folhas, restos de páginas, e até cadernos inteiros. Bilhetávamos o tempo todo. Como amo ler aqueles recados, os pequenos segredos, as ligeiras confissões que hoje ganham um novo sentido...
Encontrei também uma agenda onde, em 1991, o jornalista Ricardo Kotscho deu-me um autógrafo: "Para a Míriam, que nunca perca a esperança". No verso, um poema que amo muito, de Sara Teasdale, poetisa dos EUA que infelizmente parece nunca ter sido traduzida no Brasil. Devo ter encontrado este em alguma das velhas Seleções. Tínhamos dúzias, algumas dos anos 40. O poema diz assim:
Sobre as Dunas
Se houver qualquer vida quando a morte passar,
Estas praias fulvas saberão muito sobre mim;
Eu voltarei, tão constante e mutável
Como o mar imutável e multicor.
Se a vida foi curta, se me tornou desdenhosa,
Perdoa-me; eu me aprumarei como uma chama.
Na grande calma da morte, e se você quiser
Fique no alto das dunas voltado
para o mar e grite o meu nome.
Sara Teasdale em Flame and Shadow
Fico a pensar se desdenhar pode ser uma forma torta, retorcida, de amar. Às vezes se desdenha algo que insuportavelmente a gente ama. E então ficarão somente as dunas para dar testemunho disso, mas quem teria ímpeto para ir até lá e gritar? Este é parte de um poema maior. Quisera eu conhecê-lo todo.
O que sei é que, ao final do serviço, o pai pergunta:
- Arrumou tudo, filha?
- Sim, pai. Ficou apenas o essencial...
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