quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Campeche se mobiliza contra mega-exploração

Ato de protesto contra os mega-projetos e mega-show acontece neste sábado, dia29, 10h, na Pequeno Príncipe, esquina com a rua da Capela.

O Campeche, até os anos 70 do século XX foi um pacato reduto de famílias descendentes de açorianos, dadas à pesca, à agricultura de subsistência e à criação de gado. Nos anos 20, por ser rota de passagem da iniciante aviação transcontinental, entrou para a história como lugar de pouso dos aviões que seguiam para a Argentina, tendo sido criado ali um campo de aviação. Dentro de um destes aviões vinha, amiúde, o conhecido Saint-Exupéry, autor do imortal livro “O Pequeno Príncipe”. Por conta deste visitante ilustre, que acabou criando laços com uma das famílias locais, do patriarca Deca Rafael, o bairro é cheio de alusões à vida e à obra do escritor.

Nos anos 80, com o impulso das migrações de famílias vindas do interior de SC e de outros estados, o bairro cresceu, mas ainda mantendo a vida simples e pacata, com boa parte de suas ruas de areia e praia de beleza exuberante. Sempre foi um contraponto ao norte urbanizado, reduto de turistas. Essa peculiaridade fez florescer no Campeche e arredores um forte movimento comunitário que passou a exigir da municipalidade demandas que dessem conta da manutenção deste estilo de vida na região. Foi ali que teve vez a proposta do primeiro Plano Diretor pensado diretamente pelos moradores, que definia esta região do sul como um espaço de moradia e de vivência comunitária, sem o exagero dos espigões, dos grandes empreendimentos turísticos, da exploração imobiliária e da destruição da natureza.

Essa movimentação garantiu que a comunidade crescesse de forma mais lenta, vigiada de perto pelas gentes e pelos movimentos populares, alertas às tentativas de destruição. Mas, agora, na primeira década do século XXI, novas ondas de migrações, acompanhadas das ações de empreiteiros, começaram a mudar a paisagem e a vida do lugar. Empreendimentos de grande porte pipocam por todo lugar. Manipulando as leis ou mudando-as para seu benefício, nas famosas alterações de zoneamento patrocinadas por vereadores mal-havidos, são construídos grandes prédios que impactam de forma brutal a vida do bairro, desde a caótica mobilidade urbana até a falta de água. Estas questões já apareceram no novo processo de discussão do Plano Diretor vivido pela cidade há quatro anos e que acabou, abruptamente, virando em nada, com a prefeitura preterindo a proposta popular por outra formulada por um instituto privado.

Em 2010, a mídia florianopolitana, também ao sabor de gordos patrocínios, criou a fantasia de um recanto de paraíso, o chamado “riozinho”, que é um espaço na praia do Campeche onde deságua um pequeno rio local. Ali virou o ponto da temporada, com a presença de artistas globais e outros “ilustres” endinheirados. Este ano, o empreendimento que se criou ao lado do rio Rafael alugou parte das dunas – que tem sob seu poder - para a poderosa Skol, que anuncia shows de grande porte para o local. Com isso, a comunidade, retomando a luta travada desde os anos 80, tem denunciado as irregularidades e procura conscientizar os moradores para que mantenham a vigilância sobre a forma de vida que desde tempos muito remotos se decidiu empreender naquele lugar.


Desde o ano passado a comunidade observa um crescimento exacerbado que deverá provocar grandes impactos e, por conta disso, decidiu empreender novas mobilizações em defesa do seu modo de vida. Na última quarta-feira, representantes do movimento popular, que é bastante forte no Campeche, se reuniram e listaram os seguintes problemas a serem enfrentados:

1 - O processo do Plano Diretor participativo iniciado pelo prefeito Dário Berger colocou a comunidade, durante quatro anos, a pensar e organizar a vida local. Encerrado autoritariamente, abriu espaço para que os grandes empreendimentos começassem a conseguir licenças para construções de grande porte colocando em risco a sustentabilidade da região que tem um ecossistema frágil de dunas e restinga, não oferece saneamento básico, tem pouca reserva de água e sofrível mobilidade urbana, com ônibus em intervalos muito longos, além de poucas linhas em circulação. Também no que diz respeito aos caminhos que levam ao centro da cidade, a situação é muito ruim uma vez que há apenas uma saída, ocasionando infindáveis engarrafamentos.

2 – Um exemplo desta ocupação irracional é o projeto Essence, da empresa RODOBENS, que se anuncia na cidade como um lugar de sonhos. O condomínio está sendo erguido praticamente em cima das dunas. São 14 prédios de quatro pavimentos cada um, com garagem subterrânea e ático, o que configura, na verdade, seis andares. No total são 500 novos apartamentos que devem adensar a região com mais mil pessoas. A garagem do prédio, feita no subsolo, é uma armadilha perpétua, uma vez que a área onde está construída é inundável e certamente sofrerá com as chuvas torrenciais que costumam cair no verão.

3 - Dezenas de outros mega projetos estão aparecendo a cada dia, causando sérios transtornos. Um deles, próximo à praia, está há meses sugando o lençol freático, jogando água pura na rua, para conseguir secar o terreno que foi cavado para a construção de garagens subterrâneas. Nada disso parece constituir ilegalidade, mas a comunidade já não suporta mais ver o desperdício de água pura, elemento que é tão importante para a vida.

4 – A Casan iniciou no ano passado um projeto de construção da rede de esgoto, mas desde então a comunidade tem se manifestado contrária a proposta de uma rede que desemboque numa única estação de tratamento que some todo o esgoto da ilha para ser jogado, via emissário submarino, no mar do Campeche. Várias manifestações já foram realizadas e o plano diretor construído pela comunidade definiu por pequenas estações de tratamento em que parcelas da comunidade assumam a responsabilidade pelo seu esgoto, sem que seja necessário jogá-lo no mar. Essa tecnologia existe, é acessível e nada impede a municipalidade de usá-la. Mas, a prefeitura, assim como a Casan não são sensíveis aos desejos da população e seguem com seu projeto original. Esse ideia, ultrapassada e poluidora trará também graves impactos ambientais á comunidade.

5 – Não bastasse ficar surda à comunidade a Casan tem sistematicamente desrespeitado a lei ambiental construindo rede coletora sobre as dunas, onde se aglomeram algumas casas de gente rica, construídas de forma ilegal. Os canos estão desembocando na praia, também em flagrante ilegalidade.

6 – Ao mesmo tempo em que a Casan premia os endinheirados invasores das dunas, a Justiça utiliza de sua conhecida predileção pelos ricos e coloca abaixo um espaço comunitário que existia na praia desde a década de 80, reconhecido como espaço cultural e patrimônio do Campeche. O histórico Bar do Chico foi derrubado, às seis horas da manhã de um dia chuvoso, sem que a comunidade tivesse tempo para se organizar, uma vez que todas as outras tentativas haviam sido barradas pelo povo. Poucos meses depois, o empreendimento Essence, que se localiza no rumo do bar construiu um deck de madeira, ocupando o espaço do antigo bar, para seus “privilegiados” moradores. Por ação popular o deck foi derrubado, mas pode voltar.

7 – Também o direito de ir e vir e de ocupar a praia pública está cada dia mais limitado aos locais. É o caso da faixa de praia que tem início na Comunidade das Areias até o Bar Tropical, no Morro das Pedras. Em função de alterações de zoneamentos, feitas há décadas no Governo do Bulcão Vianna, os Condomínios que foram construídos ao longo de quase 2 kms de praia não respeitam a lei, a qual determina que a cada 200 metros deve haver saída para a praia. Assim, espaços públicos ganham caráter de propriedade privada, impedindo o acesso aos moradores. A rua Manoel Pedro Vieira está totalmente tomada por Condomínios, incluindo-se aí a mansão de praia do tenista Guga Kurten e o Hotel Morro das Pedras, erguidos sobre as dunas, assim como os condomínios. Isso afronta o direito de ir e vir, mas nada é feito contra esses que praticam apartheid social. A rua citada, onde está a casa do tenista, hoje conta com apenas duas saídas para a praia.


8 – As mudanças climáticas e a ação desordenada do homem, que levaram à destruição da praia da Armação, também no sul da ilha, se faz presente também no Campeche. Com as construções de luxo sobre as dunas, a paisagem muda e transforma o ritmo da natureza. Nos últimos anos, as ressacas no Campeche têm sido vorazes e várias casas, construídas irregularmente sobre as dunas, são atingidas. Alguns destes proprietários realizaram obras de enrrocamento (colocação de pedras ou cimento) na praia, visivelmente ilegais. Algumas delas, barradas posteriormente, oferecem sérios riscos aos banhistas, com pontas de ferro assomando pela areia e outras escondidas sob o mar. E para completar este cenário de completo desrespeito pela vegetação nativa, os invasores de dunas estão cobrindo-as com lonas de plástico. Estas atitudes isoladas e egoístas têm causado mudanças, inclusive com a diminuição da faixa de areia.


9 – O desrespeito ao terreno natural e aos olhos de água que abundam no Campeche leva a grandes tragédias como o alagamento sistemático de áreas com a conseqüente destruição de casas e bens. As soluções, em vez de melhorar, são cada vez mais atrapalhadas, como por exemplo a idéia de tubular o Rio Rafael, com a proposta de construir um prédio sobre ele, o que poderá ocasionar ainda mais alagamentos na região, com a água não tendo para onde escoar.

10 – Para fechar com “chave de ouro” o processo de destruição sistemática do modo de vida do Campeche, agora, com o conluio de empresários da área, sem ligação emocional ou cultural com o bairro, está sendo organizado um mega-show na praia, onde desemboca o rio Rafael, patrocinado pela Skol. Estes eventos, além de serem portas de entrada para o tráfico de drogas pesadas, mexem de forma visceral com a estrutura do bairro. O Campeche, da forma como está organizado hoje, com ruas estreitas e apenas uma avenida, não comporta um fluxo excessivo de carros. Tampouco tem condições de acomodar um estacionamento para todos os visitantes que virão para o show, além de não apresentar estrutura sanitária. Como a comunidade é tradicionalmente residencial, estes mega-eventos tendem a perturbar todo o modus vivendi do povo da região.


Por conta de todos estes pontos elencados aqui, a comunidade decidiu iniciar um processo de luta pela manutenção da qualidade de vida no bairro, fortalecendo os seguintes pontos:


1 – Exigir fiscalização rigorosa para todos estes empreendimentos que estão em andamento.
2 – Realização de estudo do impacto que esse adensamento populacional pode causar para o sistema de água, esgoto e transporte.

3 – Exigir imediata aplicação da Lei Municipal buscando a abertura de acesso à Praia do Morro das Pedras em toda a Rua Manoel Pedro Vieira.

4 – Moratória imediata para a construção de novos empreendimentos até que seja definido o Plano Diretor.

5 - Suspensão do mega-show promovido pela Skol por completa incapacidade estrutural do bairro em atender a uma demanda gigante de pessoas.

Visando esclarecer a comunidade e garantir mais apoio para estas lutas, acontece neste sábado, dia 29 de janeiro, às 10h, uma manifestação e panfletagem no cruzamento entre a Pequeno Príncipe e a rua da Capela. Todos os lutadores sociais da cidade estão convidados a para participar. A luta contra os mega-investimentos não é só do Campeche. Todo sul da ilha está ameaçado. A cidade como um todo está ameaçada. “Já basta de destruição”.

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