Por Elaine Tavares - jornalista
Manhã de janeiro em Buenos Aires. Hora de visitar “La Boca”, conhecido bairro do sul da capital, famoso pelo seu time de futebol, o Boca Junior, por suas ruelas coloridas e o tango, triste e sensual, tocado e dançado na rua. Mas, ao chegar ao pequeno e espartano terminal de ônibus o que chama a atenção é um modesto complexo de prédios que abriga a escola, um museu e um teatro. Apesar do vibrante murmúrio que vem do “caminito” a placa que indica o museu de Belas Artes é mais forte e lá vou eu descobrir o mistério das cores e da comunidade.
O minúsculo saguão de entrada do museu está cheio de crianças que protagonizam uma deliciosa algaravia. Dezenas delas, acompanhadas de seus “maestros” – num projeto da escola que busca levar cultura aos alunos em tempos de férias - se preparam para viajar no mundo da pintura de um dos mais importantes filhos de La Boca: o pintor Benito Quinquela. Ali, naquele museu, doado por ele à comunidade (assim como a escola e o museu), estão expostas algumas das suas mais famosas obras, além de outras de conhecidos artistas nacionais. Mas, as crianças estão atraídas mesmo é pela figura de Benito, a quem a comunidade reverencia com amor extremo. É nas salas onde estão os seus móveis pessoais e objetos de pintura que a gurizada se demora, sonhando talvez em seguir os passos do filho ilustre daquele lugar.
Benito Quinquela é um dos grandes da arte argentina. E cresceu bem ali, na boca do rio da Prata, espaço do porto e da vida atribulada dos homens do mar. Sua pintura conta desta realidade local e se mostra com toda a força operária daqueles que cotidianamente viviam as agruras do trabalho marítimo. Seu tema sempre foi o trabalho, o bairro e a gente. Por toda a vida ele imortalizou La Boca, o seu ninho, seu lugar de arribação, mesmo depois de ter experimentado a glória nos salões de Paris e Nova Iorque. Era para a boca do rio que sempre voltava, carregado de cores e memórias únicas. “Dizem que os barcos que eu pinto existem em todos os lugares do mundo – é um erro – quando eles chegam à Boca, eles se transformam...”
A história do pintor é revestida de poesia. Chegou ao porto num 20 de março do ano de 1890. Fora abandonado num orfanato local e nunca soube quem era sua mãe. Ali viveu, junto às irmãs de caridade, por seis anos. Contam que nunca foi um garoto triste, pelo contrário, era alegre e prestativo. Quando estava para completar sete anos foi adotado por uma família simples, moradora do bairro. O pai, Manuel, era um italiano forte, trabalhador do porto e a mãe, Justina, era mulher de sangue indígena, oriunda de Gualeguaychu. Donos de uma carvoaria, os dois procuravam uma criança que lhes enchesse a vida de alegria e ajudasse no trabalho.
E assim o pequeno Benito iniciou sua vida pelas ruelas do bairro portuário. Conhecia como ninguém a vida frenética do estaleiro, dos trabalhadores do mar, das mulheres. Seu trabalho era andar de barco em barco, com uma bolsa vazia, enchendo-a de carvão. Manejava a funda com maestria e era conhecido por sua velocidade nas correrias do porto. Magricelo e serelepe era chamado de “mosquito” pelos trabalhadores que o viam passar voando com a bolsa cheia e pesada. Também ainda menino, morando na rua onde se concentravam os sindicalistas e socialistas, começou sua militância política, no início do século XX, sempre ao lado das lutas dos trabalhadores.
Considerando o trabalho que fazia, não foi por acaso que o carvão acabou sendo seu primeiro “pincel”. Entre uma correria e outra ele descansava desenhando as cenas que via no porto em pedaços de papelão e quando já contava com 14 anos iniciou um curso de pintura numa escolinha do bairro que oferecia este tipo de curso aos filhos dos trabalhadores. Desde aí, as cores começaram a se sobrepor ao carvão e o pintor nunca mais parou de crescer. Marcou-lhe a vida um texto de Rodin que leu enquanto estudava arte, o qual dizia: “pinta a tua aldeia e pintarás o mundo”. E assim foi. Com 20 anos apresentou sua primeira exposição e anos mais tarde ajudou a organizar o Salão dos Recusados, espaço de mostra daqueles artistas que não encontravam espaço nas “panelinhas” da arte nacional. Desde aí, a pintura do garotinho do porto de La Boca percorreria o mundo. Dez anos depois, tendo já visitado e exposto em vários países Quinquela voltou para La Boca, onde comprou uma casa para os pais e ali seguiu vivendo, prometendo-lhes que agora eles estariam a seu cargo.
La Boca havia acolhido Benito quando ele ali chegara, abandonado. Por isso, o pintor fez questão de retribuir todo o amor que a comunidade lhe deu. Tão logo ganhou dinheiro com a sua pintura preocupou-se em dar ao bairro espaços onde as crianças pudessem crescer na cultura e na beleza. Foi assim que ele comprou os prédios onde hoje estão a escola, o teatro e agora, o museu. Dali nunca saiu, a não ser para sua exposições e compromissos internacionais. La Boca era o seu lar.
Débora Seitter, cuidadora do museu, conta que foi Benito quem começou essa mania por cores na região de La Boca. “Quando ele trabalhava na carvoaria, ele levava carvão de graça para os navios e pedia em troca latas de tinta coloridas, as quais entregava aos vizinhos para que pintassem as casas, que eram simples e humildes”. Hoje, o “caminito”, principal rua do bairro é, ela mesma, um museu a céu aberto, com as casas repletas das cores vibrantes que também enchem as telas de Benito.
Uma obra de força
Por sobre a gritaria da criançada que visita o museu se impõe o som poderoso do piano. Diante de uma das telas mais belas do pintor – Crepúsculo - uma mulher faz ecoar uma música que é ao mesmo tempo terna e dura. Impossível não se deixar ficar ali, tomada pela emoção. É algo assim como a representação musical daqueles quadros que parecem adquirir vida na parede. As telas imensas reproduzem a vertiginosa existência do bairro portuário e popular. Há barcos onde crescem flores, onde trabalham homens, há barcos que dormem, barcos quebrados, há homens construindo barcos, há barcos sendo descarregados, há poderosos temporais, há homens trabalhando na fundição do aço, barcos incendiados, crepúsculos com barcos ao fundo. Tudo é imenso na obra, a cor, a intensidade, o tema. O traço de Quinquela indica toda a violência exigida para a construção dos barcos e ao mesmo tempo expressa a humanização da máquina e das grandes forças que a produzem. É arrebatador!
O museu tem três andares de obras de arte. Num deles está também coleção de máscaras de proa de barcos, recolhidas por Benito ao longo da vida. Estas ponteiras eram representações de deuses ou mitos, metade homens, metade bicho, figuras de mulheres ou mesmo santos que eram usadas pelos barqueiros para proteção. Estas máscaras eram as que davam identidade às naves e muitas podiam ser identificadas ao longe só pelas ponteiras. Amealhá-las foi a maneira que Benito encontrou para sentir de forma concreta a presença daquele mundo que ele amava e que imortalizou na tela. Nos pátios do terceiro andar estão as esculturas, de vários artistas locais. E, de um mirante, bem em cima do prédio, se pode vislumbrar toda a “Boca”, e seu farfalhar de vida. Faltam os barcos e o porto, mas o colorido das casas e das gentes cimenta o louco desejo de beleza que aquele “mosquito”, gurizinho serepele, vislumbrou para o seu lugar. Hoje, nas vielas do bairro, o som do tango, do chamamé, as imagens do Che, do Maradona, da Evita e o deslumbrante mundo de cores, imortalizam a “República da Boca”, que, conforme dizia Benito, era um lugar de fronteiras pouco claras, com geografia móvel e repleta de abençoados lunáticos.
Elétrico como nos tempos de menino, ele nunca parou de inventar coisas e uma das mais belas que criou, além da sua obra, foi a conhecida “Ordem do Tornillo”, espaço de reunião dos artistas, intelectuais e loucos de toda ordem que tivessem por princípio o uso desenfreado da imaginação e da rebeldia e aos quais devia, por obrigação, faltar moderação. A estes “loucos”, ele entregava um parafuso, o que lhes faltava, para garantir que sempre lhes faltasse e eles não se tornassem gente acomodada ou sem imaginação. “A todo homem que sonha, lhe falta um parafuso. Este que lhes dou não vos tornará moderados ou cordiais. Pelo contrário, vos preservará contra a perda desta loucura luminosa, da qual se sentem orgulhosos”.
Hoje, Benito reina sobre La Boca, com sua estátua altaneira bem na entrada de onde um dia foi o porto que tanto amou. E as gentes de todo mundo se sentam nas mesas coloridas, tomando um bom vinho e ouvindo o tango. Das casinhas espiam os locais que sabem que muito daquilo tem a ver com o pintor, criado na beira daquele rio. Tudo ali é prodigioso, como a obra de Benito.
Manhã de janeiro em Buenos Aires. Hora de visitar “La Boca”, conhecido bairro do sul da capital, famoso pelo seu time de futebol, o Boca Junior, por suas ruelas coloridas e o tango, triste e sensual, tocado e dançado na rua. Mas, ao chegar ao pequeno e espartano terminal de ônibus o que chama a atenção é um modesto complexo de prédios que abriga a escola, um museu e um teatro. Apesar do vibrante murmúrio que vem do “caminito” a placa que indica o museu de Belas Artes é mais forte e lá vou eu descobrir o mistério das cores e da comunidade.
O minúsculo saguão de entrada do museu está cheio de crianças que protagonizam uma deliciosa algaravia. Dezenas delas, acompanhadas de seus “maestros” – num projeto da escola que busca levar cultura aos alunos em tempos de férias - se preparam para viajar no mundo da pintura de um dos mais importantes filhos de La Boca: o pintor Benito Quinquela. Ali, naquele museu, doado por ele à comunidade (assim como a escola e o museu), estão expostas algumas das suas mais famosas obras, além de outras de conhecidos artistas nacionais. Mas, as crianças estão atraídas mesmo é pela figura de Benito, a quem a comunidade reverencia com amor extremo. É nas salas onde estão os seus móveis pessoais e objetos de pintura que a gurizada se demora, sonhando talvez em seguir os passos do filho ilustre daquele lugar.
Benito Quinquela é um dos grandes da arte argentina. E cresceu bem ali, na boca do rio da Prata, espaço do porto e da vida atribulada dos homens do mar. Sua pintura conta desta realidade local e se mostra com toda a força operária daqueles que cotidianamente viviam as agruras do trabalho marítimo. Seu tema sempre foi o trabalho, o bairro e a gente. Por toda a vida ele imortalizou La Boca, o seu ninho, seu lugar de arribação, mesmo depois de ter experimentado a glória nos salões de Paris e Nova Iorque. Era para a boca do rio que sempre voltava, carregado de cores e memórias únicas. “Dizem que os barcos que eu pinto existem em todos os lugares do mundo – é um erro – quando eles chegam à Boca, eles se transformam...”
A história do pintor é revestida de poesia. Chegou ao porto num 20 de março do ano de 1890. Fora abandonado num orfanato local e nunca soube quem era sua mãe. Ali viveu, junto às irmãs de caridade, por seis anos. Contam que nunca foi um garoto triste, pelo contrário, era alegre e prestativo. Quando estava para completar sete anos foi adotado por uma família simples, moradora do bairro. O pai, Manuel, era um italiano forte, trabalhador do porto e a mãe, Justina, era mulher de sangue indígena, oriunda de Gualeguaychu. Donos de uma carvoaria, os dois procuravam uma criança que lhes enchesse a vida de alegria e ajudasse no trabalho.
E assim o pequeno Benito iniciou sua vida pelas ruelas do bairro portuário. Conhecia como ninguém a vida frenética do estaleiro, dos trabalhadores do mar, das mulheres. Seu trabalho era andar de barco em barco, com uma bolsa vazia, enchendo-a de carvão. Manejava a funda com maestria e era conhecido por sua velocidade nas correrias do porto. Magricelo e serelepe era chamado de “mosquito” pelos trabalhadores que o viam passar voando com a bolsa cheia e pesada. Também ainda menino, morando na rua onde se concentravam os sindicalistas e socialistas, começou sua militância política, no início do século XX, sempre ao lado das lutas dos trabalhadores.
Considerando o trabalho que fazia, não foi por acaso que o carvão acabou sendo seu primeiro “pincel”. Entre uma correria e outra ele descansava desenhando as cenas que via no porto em pedaços de papelão e quando já contava com 14 anos iniciou um curso de pintura numa escolinha do bairro que oferecia este tipo de curso aos filhos dos trabalhadores. Desde aí, as cores começaram a se sobrepor ao carvão e o pintor nunca mais parou de crescer. Marcou-lhe a vida um texto de Rodin que leu enquanto estudava arte, o qual dizia: “pinta a tua aldeia e pintarás o mundo”. E assim foi. Com 20 anos apresentou sua primeira exposição e anos mais tarde ajudou a organizar o Salão dos Recusados, espaço de mostra daqueles artistas que não encontravam espaço nas “panelinhas” da arte nacional. Desde aí, a pintura do garotinho do porto de La Boca percorreria o mundo. Dez anos depois, tendo já visitado e exposto em vários países Quinquela voltou para La Boca, onde comprou uma casa para os pais e ali seguiu vivendo, prometendo-lhes que agora eles estariam a seu cargo.
La Boca havia acolhido Benito quando ele ali chegara, abandonado. Por isso, o pintor fez questão de retribuir todo o amor que a comunidade lhe deu. Tão logo ganhou dinheiro com a sua pintura preocupou-se em dar ao bairro espaços onde as crianças pudessem crescer na cultura e na beleza. Foi assim que ele comprou os prédios onde hoje estão a escola, o teatro e agora, o museu. Dali nunca saiu, a não ser para sua exposições e compromissos internacionais. La Boca era o seu lar.
Débora Seitter, cuidadora do museu, conta que foi Benito quem começou essa mania por cores na região de La Boca. “Quando ele trabalhava na carvoaria, ele levava carvão de graça para os navios e pedia em troca latas de tinta coloridas, as quais entregava aos vizinhos para que pintassem as casas, que eram simples e humildes”. Hoje, o “caminito”, principal rua do bairro é, ela mesma, um museu a céu aberto, com as casas repletas das cores vibrantes que também enchem as telas de Benito.
Uma obra de força
Por sobre a gritaria da criançada que visita o museu se impõe o som poderoso do piano. Diante de uma das telas mais belas do pintor – Crepúsculo - uma mulher faz ecoar uma música que é ao mesmo tempo terna e dura. Impossível não se deixar ficar ali, tomada pela emoção. É algo assim como a representação musical daqueles quadros que parecem adquirir vida na parede. As telas imensas reproduzem a vertiginosa existência do bairro portuário e popular. Há barcos onde crescem flores, onde trabalham homens, há barcos que dormem, barcos quebrados, há homens construindo barcos, há barcos sendo descarregados, há poderosos temporais, há homens trabalhando na fundição do aço, barcos incendiados, crepúsculos com barcos ao fundo. Tudo é imenso na obra, a cor, a intensidade, o tema. O traço de Quinquela indica toda a violência exigida para a construção dos barcos e ao mesmo tempo expressa a humanização da máquina e das grandes forças que a produzem. É arrebatador!
O museu tem três andares de obras de arte. Num deles está também coleção de máscaras de proa de barcos, recolhidas por Benito ao longo da vida. Estas ponteiras eram representações de deuses ou mitos, metade homens, metade bicho, figuras de mulheres ou mesmo santos que eram usadas pelos barqueiros para proteção. Estas máscaras eram as que davam identidade às naves e muitas podiam ser identificadas ao longe só pelas ponteiras. Amealhá-las foi a maneira que Benito encontrou para sentir de forma concreta a presença daquele mundo que ele amava e que imortalizou na tela. Nos pátios do terceiro andar estão as esculturas, de vários artistas locais. E, de um mirante, bem em cima do prédio, se pode vislumbrar toda a “Boca”, e seu farfalhar de vida. Faltam os barcos e o porto, mas o colorido das casas e das gentes cimenta o louco desejo de beleza que aquele “mosquito”, gurizinho serepele, vislumbrou para o seu lugar. Hoje, nas vielas do bairro, o som do tango, do chamamé, as imagens do Che, do Maradona, da Evita e o deslumbrante mundo de cores, imortalizam a “República da Boca”, que, conforme dizia Benito, era um lugar de fronteiras pouco claras, com geografia móvel e repleta de abençoados lunáticos.
Elétrico como nos tempos de menino, ele nunca parou de inventar coisas e uma das mais belas que criou, além da sua obra, foi a conhecida “Ordem do Tornillo”, espaço de reunião dos artistas, intelectuais e loucos de toda ordem que tivessem por princípio o uso desenfreado da imaginação e da rebeldia e aos quais devia, por obrigação, faltar moderação. A estes “loucos”, ele entregava um parafuso, o que lhes faltava, para garantir que sempre lhes faltasse e eles não se tornassem gente acomodada ou sem imaginação. “A todo homem que sonha, lhe falta um parafuso. Este que lhes dou não vos tornará moderados ou cordiais. Pelo contrário, vos preservará contra a perda desta loucura luminosa, da qual se sentem orgulhosos”.
Hoje, Benito reina sobre La Boca, com sua estátua altaneira bem na entrada de onde um dia foi o porto que tanto amou. E as gentes de todo mundo se sentam nas mesas coloridas, tomando um bom vinho e ouvindo o tango. Das casinhas espiam os locais que sabem que muito daquilo tem a ver com o pintor, criado na beira daquele rio. Tudo ali é prodigioso, como a obra de Benito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário