quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A Antropóloga volta ao Cinespaço Beiramar

Elaine Tavares

Que não viu o filme belíssimo do Zeca Pires, A Antropóloga, agora poderá curtir ainda na telona. É que o filme voltou para o cinema no Cinespaço Beiramar, depois de uma temporada de sucesso logo depois do lançamento. Como acontece com a maioria dos filmes nacionais, o projeto do cineasta catarinense entrou em cartaz e ficou pouco tempo, apenas dois meses. Na verdade, por conta do sucesso de público ele até durou bem mais do que a maioria dos filmes brasileiros, mas ainda não foi suficiente para que toda a gente pudesse curtir. A temporada começou nesta sexta-feira, dia 28, sempre às 18h50min, na Sala 5.

Agora, com o retorno à tela grande, mais pessoas poderão vibrar com a beleza da história passada na histórica comunidade da Costa da Lagoa.O enredo envolve um antropóloga portuguesa que se depara com toda a magia da ilha, e que fica dividida entre a ciência e que não se explica pela racionalidade moderna.

O filme nos carrega para toda a atmosfera da vida profunda desta ilha de Florianópolis, com sua cultura centenária, o culto ao mágico, a presença poderosa das mulheres que dominam as plantas e a arte de curar. Especial atenção à atuação do ator local Eduardo Bolina, que faz o pescador. A cena em que ele é levado pela bruxas tende a se tornar uma cena clássica no cinema catarinense. É de uma beleza alucinante. Nada mais justo a um ator que tem batalhado muito para se afirmar na sua própria terra.

Sobre o Zeca Pires não há muito o que dizer. Ele é o nosso cineasta mais querido, sempre batalhando pelo cinema catarinense. Com esse longa ele se afirma na história local, não só como um diretor de qualidade, mas como um homem que, podendo enveredar pelas trilhas do sucesso fácil, prefere contar de seu mundo, às vezes não tão fácil de se entender.

A Antropóloga é um filme que todos os catarinenses deveriam ver.

Mais informações e fotos no site:www.aantropologa.com.br

Não custa...

Míriam Santini de Abreu

Se Uby estivesse aqui hoje, circulando nos vãos do Mercado Público, eu pediria a ele um poema para setembro. Porque chegou setembro... Chegou o sol de Primavera. E sempre, sempre lembro de Florbela Espanca, que desejava ouvir recostada num relvado perto do mar:

.
Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...


Já choramos muito. Não custa inventar uma nova canção...

http://www.youtube.com/watch?v=8CoEa3uD_7g&feature=related


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

E a gente fingindo que isso tudo é normal...

Míriam Santini de Abreu

Leio no link abaixo que o Grupo RBS recebeu 300 mil para um desses eventos banais para os quais o Grupo dá ampla cobertura.

http://cangarubim.blogspot.com/2011/08/governo-libera-r-300-mil-para-rbs.html

O amigo Uby há tempos desejava lançar um livro com seu trabalho. Não conseguia. Tenho um colega que está com um livro lindo, pronto, com as histórias contadas por uma moradora de Taió, e não consegue patrocínio para imprimir.

Passa da meia-noite e estou aqui ouvindo Lenine, sob essa chuva que não pára. Me sinto como o garotinho no vídeo da música Paciência, que deixa o livro quieto, e quieto fecha os olhos por um momento.

E a gente fingindo que isso tudo é normal...

http://www.youtube.com/watch?v=jJhnige5jDQ



Uby

Míriam Santini de Abreu

Partiu o poeta Uby Oliveira, aos 52 anos. Ele vendia seus poemas nas ruas e bares de Florianópolis. Nas duas edições mais recentes da Pobres, também publicou poemas na contracapa da revista. Quando Elaine e eu marcávamos encontro no Mercado Público da Capital, ele sempre aparecia, sempre esperançoso nas tentativas de publicar um livro com seus poemas. Quisera eu escrever algo belo sobre o amigo, mas é uma dessas horas em que o belo me falta.

domingo, 28 de agosto de 2011

O Jardim de Salomé

Na brancura de uma folha de papel (que é um território de sedução), planta-se a frase: “O sicômoro está iracundo, assaltado por legiões de carunchos”.
Aqui, do meu sobrado, contemplo uma noite de casas adormecidas, na ribanceira que dá para a restinga onde, entre juncos, há os gritos estagnados de coriáceas iguanas que, como se sabe, costumam devorar os que não sonham e os que pensam demais. Lembro-me do estabelecimento de banho turco, com um lavatório de torneiras barrocas a imitar peixes, torneiras que deixam escapar soluços de água.
Os navios de Le Corbusier: os ímãs de Gauss: as lentes de Espinosa: nada disso sacia minha dúvida. A música, sim, me sacia: música que reverencia aquilo que, em nós, não é nem a sombra de um menino.
Também me recordo que, numa daquelas casas na ribanceira, ainda há o ar nos pulmões da coribante Salomé – a que eu, mesmo vendo, nunca vi – Salomé selvagem, mas tão clara e alba.
Eu olho, durante horas, o estuário deserto de pesqueiros, e penso o que a devastação do corpo, a loucura, podem fazer a um homem como eu. Eu aceito tudo menos ser uma água tão tranquila como o pó das bibliotecas: lapidem esse aquam fontis vivi: a pedra é uma fonte de água viva.
Em meu sobrado, o tanque de lavar com chuva dentro.
Sob a árvore daquele pensamento descanso meu corpo noturno, logo acordo abraçado a uma âncora oxidada, a soprar com força no escuro. O homem se esquece de que é um morto que conversa com os mortos. Entro mais silencioso no casarão onde me aguarda a sombra de Salomé. É um casarão com as portas apodrecidas, reduzido às janelas ou às argolas, com telhado enegrecido por agáricos: resta no casarão a colunata de um átrio e uma cornija partida pelas raízes de uma figueira: os ladrilhos rachados e os ouros velhos dos oromos: nos cantos escuros, cactos, e algumas correntes de ar.
Para refrescar a memória, num dos jardins do casarão o tanque limoso e as carpas: algo soa próximo e longínquo: diante de mim, Salomé clama um diapasão de coéfora, e solta sua cabeleira extensa como véus negros. E, no entanto, sinto-me envolvido por ela, como se estar nesse casarão ao lado dela, tudo isso despertasse em mim obscuros ritos marinhos.
A solidão conosco mesmos não tem fim: ela apenas começou. Quem brinca esconde a morte interior. Quem brinca é criança. Deus é velho e morre. É impressionante que o jardim de Salomé fique tão perto do salão respeitável e misterioso das ideias: devido a sua proximidade com o paraíso, esvoçam no jardim de Salomé as folhas do limoeiro.
Quando abraço a essência, parece que o mundo fica frio e vazio. A alma tem seu mundo que lhe é próprio: nele só entra a essência, que não está nas coisas, nas pessoas, nos pensamentos.
Se eu saciar minha sede de água viva em Deus, me tornarei uma fonte. Devo ser salvo para a solidão em mim. Quem vive sente o passar para o outro lado, que é imortal. Minha alma me conduz ao deserto, ao deserto de minha própria essência. Não pensava que a essência em mim era um deserto seco, quente, poeirento e sem um grão de chuva.
Escuto as palavras de Jesus: “Eu vos dei o poder de pisar em cobras e escorpiões, e sobre toda força do inimigo. Nada vos poderá fazer mal”.
Escuto as palavras de Rumi: “Passado e futuro ocultam Deus de nossa vista: ponha fogo em ambos”.
Escuto as palavras de João Cabral de Melo Neto: “Acordar não é de dentro. Acordar é ter saída”.
Devo abrir, agora, o jardim encantado do deserto. Os deuses invejam a perfeição do ser humano, pois o perfeito não precisa dos deuses. O inferno é quando sei que o sério é ridículo, que todo delicado é bruto, que todo bom é mau, que todo alto é baixo. Deus nasce de uma ambiguidade escura e sobe para uma ambiguidade luminosa. Que o pensador receba seu prazer. Que o sentimental receba seu próprio pensar. Se ainda quisermos vencer a morte, então temos de avivá-la.
A profundeza é mais forte que nós.
Por isso, levo em minha travessia taças de ouro que transbordam a dulcíssima água da vida. Olho para a profundeza, rezo para a minha profundeza, desperto os mortos. Aprendi que o caminho para a verdade só está aberto para os que não guardam em si sequer o resquício de uma intenção.
Quando colocamos um Deus fora de nós, ele nos arranca deste fora, pois o Deus é mais forte do que nós. Meu medo repleto de saber. Cavo profundas covas e atiro nelas oferendas, a fim de que cheguem ao morto. Penso com o coração bondoso no mal: este é o caminho da subida.
Onde, em mim, o casarão de Salomé mora? Onde eu moro no casarão de Salomé que mora em mim? A viagem conduz através da areia quente, vadeando lentamente, sem objetivo visível de esperança. Por isso evito o lugar da minha alma.
Escuto mais uma vez as palavras de Jesus: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim” – conforme diz a Escritura: “Do seu interior correrão rios de água viva. Se podes? Tudo é possível para quem crê”.
Entrei num matagal de dúvida: sou como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei: hinübergehen (ir para o além): a alma diz: “Espera”.
O tântrico zero âmago: breu do breu: um tango seráfico: a lesma enfia-se na ânfora pra clarear seu visgo: o céu no futuro: um galeão que doura desliza silencioso: a mata pedregosa: que a chuva nos benza: perfumo a cabeça e lavo o rosto: sou pó de mirra e ao pó de mirra voltarei: então por que devo perder noites de sono?: antes que o pó de mirra me alcance, finjo que sou as linhas de fumaça do incenso em fuga por cima dos objetos desta sala: compreendo que o Deus, que procuro no absoluto, não há de ser encontrado no belo, bom, sério, elevado, humano, nem mesmo no divino absoluto.
A sala da biblioteca do casarão, que recebe uma luz coada pelas frestas das venezianas, é peça vasta e escura, separada do saguão central e do pequeno corredor que deságua no quarto de Salomé cega e nua e também as paredes do quarto são cegas.
Onde existe a força criadora do desejo, ali brota do chão a semente que lhe é própria. Ao deserto pertence a dor. Desde que em alguma outra parte é que vivemos e aqui é só uma nossa experiência de sonho. Se minha força criadora retornar para o lugar da alma, verei como a alma vai reverdcer e como o deserto produzirá frutos maravilhosos.
Tem dias, aqui no casarão, que, para espantar o zumbo das moscas, teço na língua algumas frases com balda de cancioneiro. O futuro já existia nas primeiras imagens. Nunca cheguei a aprender grego, no entanto até hoje gosto de lê-lo, sem entender patavina da letra – mas escutando sua música peremptória e profunda.
Devo ser capaz de perseverar além das coisas, pessoas e pensamentos: ser amigo, não ser escravo. O curioso é como a cega Salomé possui convicções inabaláveis sobre certas situações e indivíduos. Fisicamente ela é uma bela sombra. Levanta duas vezes de noite, agoniada e convulsa, para arrancar da garganta o anzol – tão tonta, tão branca – e pensa: “Vou morrer” – enquanto anda pelo quarto, de um lado para o outro porque a luz, os ruídos da aflição de sua garganta alagam o sono do único peixe no aquário: o sono do peixe, sabe-se, é um descuido da água.
Tu és Salomé, um tigre, o sangue do santo está grudado em tuas mãos. Uma pessoa que passa teme Salomé, pois ela quer sua cabeça, sobretudo quando ele é um santo. Salomé não quer a cabeça que pensa. Uma pessoa que pensa não deve ser um santo, senão cai sua cabeça.
Escuto as palavras de Mia Couto: “As pedras não pediram filhos. É por isso que pedras não morrem”.
Eu lavo a escrita em águas encardidas: se tivermos subido perto da altura do bem e do belo, nosso ruim e feio jazem em tormento extremo: o tormento é tão grande, que a pessoa mal pode respirar.
A blusa da cega Salomé pendurada na cadeira parece oscilar ao ritmo de uma respiração misteriosa: as paredes cegas dilatam devagar: o espelho da cômoda surge da sombra e reflete um ângulo de armário, a pia do banheiro, uma faixa do teto, um gato e a sombra do gato.
Devemos deixar as coisas acontecerem psiquicamente: ação na não-ação: wu wei: triste é viver num lugar onde dormir não difere de morrer.
Se dizes que o lugar da alma não existe, então ele não existe: se dizes que ele existe, ele existe.
Pronuncio ao sabor do acaso algumas palavras estranhas: faces talhadas em granito: turinos: marchetadas com polinésias bizarras: zebruras inscritas na voz e o fundo verdacento do maralto.
Não vou a lugar nenhum e, ai de mim, todo dia acabo chegando lá: tristeza é ver a jarra com gencianas no quarto da cega Salomé: sim, o alegre búzio da surdez marulhando no meu ouvido: observo o que diziam os antigos: “A palavra é ato criador: no princípio era a palavra”.
Quando o deserto começa a dar frutos, vai produzir uma vegetação estranha: tu te julgarás louco e, em certo sentido, serás louco: as palavras que oscilam entre a tolice e o sentido supremo são as mais antigas e as mais verdadeiras: a vida não vem das coisas, mas de nós: tudo o que acontece fora já passou.

Fernando José Karl

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Tempo pesado

Míriam Santini de Abreu

Fiquei quase toda a semana fora. Voltei, como fui, sob um tempo pesado. A ponte iluminada, o Centro da cidade já aquietado, quase 9 da noite. Eu com uma sensação de não saber o que fazia ali, o que fazia em qualquer lugar. Com a bolsa pesada, ainda passei no cachorro-quente do Afonso. Em casa, o chuveiro não esquentou. Um silêncio medonho. Tenho que dizer àquela menina de sete anos que deixei lá atrás que a maioria dos projetos dela não deu certo, e o que deu ficou cambaleante ou entortado. Ela me busca ou eu devo encontrar-me com ela? Escutei no ônibus uma música da qual gostava em algum tempo entre a infância e a juventude. Ainda gosto.

http://www.youtube.com/watch?v=XUXwBQnyEZw

terça-feira, 16 de agosto de 2011

O VENENO ESTÁ NA MESA

Segue link para vídeo "O VENENO ESTÁ NA MESA" com distribuição gratuita pelo cineasta Silvio Tendler

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Divina!

http://www.youtube.com/watch?v=HG7I4oniOyA

Um lúcido Senador

Míriam Santini de Abreu

O Seu Claico aparece no local onde trabalho quase todos os dias. Em sua pasta preta, calça e camisa alinhadas e impregnadas de cheiro de suor, ele acumula uma quantidade imensa de papéis. Nós o chamamos de Senador, porque ele se auto-nomeou líder político nacional de um determinado partido no Senado. O que sei de seu Claico, além do sobrenome, é o nome dos pais e o bairro onde ele mora na Capital, além do fato de ter um irmão. Ah, e a cidade onde ele nasceu, em SC.

Isso porque, sempre que chega, Seu Claico pede que carimbemos um texto e façamos uma ou duas cópias desses exemplares, nos quais ele pede que anexemos sua carteira de identidade. Nota-se que o Senador, que está sempre a caminhar no Centro de Florianópolis, passa por vários órgãos públicos, e sempre há alguém que digita seus escritos feitos a caneta, em letra quase indecifrável. Nos ofícios, como ele os denomina, há carimbos de diversas instituições.

Num deles, Seu Claico se auto-denomina técnico de futebol da Seleção Brasileira e lista suas contribuições ao futebol brasileiro e mundial, como: a bola leve profissional, as joelheiras acolchoadas, o apito profissional e as luvas para jogadores.

Em outro ofício, o Senador se auto-intitula chefe de segurança da UFSC e criador da Otasa (Organização dos Tratados do Atlântico Sul-Americanos). Num parágrafo, ele acrescenta: “Eu, Claico [...] sou o criador das luzes a laser, do abubo orgânico, do macro-computador, do telefone com tela das cintas plásticas, as armas a laser, do aero-brazer do carro do futuro, da linguagem comum para computação mundial, da imagem e som para computação mundial, dos telões, dos vidros planos, dos vidros impermeáveis, dos aços impermeáveis, do freezer, das agulhas a lazer, da enceradeira que encera e lustra, enfim, ALELUIA, outras coisas”.

Dia desses, quando ele esteve aqui para fazer uma cópia e carimbar vários ofícios, pedi um cargo:

- Mas eu já te nomeei!

- Para quê?

- Para o STF!

- Mas Seu Claico... Eu vou ficar entediada no STF!

- Entediada?

- É... O dia inteiro trancada lá naqueles gabinetes! Que horror!

- Ah, tu não quer ficar entediada? Então pega a tua pasta ali e vai lá para fora, para a rua, porque tem um monte de problemas para resolver!

Sim. O nosso Senador tem toda a razão.

Audiência Pública sobre a venda de ações da CASAN - Terça-feira - 16/08 - às 9h na Alesc




RÉQUIEM PARA UMA ILHA

(Para aqueles que a conheceram – no fundo)

EMANUEL MEDEIROS VIEIRA

Já é tarde para consertar.

Não, não serei nostálgico.

Não falarei de quintais, de árvores.

Já é tarde para consertar – repito.

O modelo urbano foi esse: poeira, pó e ganância.

A cobiça dos teus alcaides, dos teus “construtores”, dos teus políticos, sempre foi mais forte.

Teus homens públicos não te mereceram.

É claro: nunca te amaram

E muitos resolveram silenciar: é um réquiem o que queria escrever.

Mas um réquiem deve ter nobreza trágica.

Minhas palavras não: são pálidas, conscientes de sua inutilidade.

O tempo já não cabe dentro de mim.

Uma ilha habita o meu coração, mas não existe mais.

Já é tarde para consertar – caio na redundância.

(Qualquer palavra será inútil.)

Um dia, talvez, ela seja lembrada.

Minha ilha é nevoeiro.

(Com suas gaivotas, com seus meninos, com seus trapiches, com suas casas, com seus terrenos, com os seus verdes, com os seus pássaros, com suas praias – sem turistas deslumbrados.)

E nos teus morros, a gente poderia subir a qualquer hora do dia.

E morro (morremos): de doenças crônicas, de omissão, de complacência com a corrupção, de vaidades vãs.

Quem se lembrará dessa gente tão pequena que se apossou de ti, ilha natal?

É como se visse uma iluminada fogueira num junho qualquer – que nunca se apaga.

(Missa do Galo, tainha frita, o orvalho daquela manhã, e aquela praia chamada Lagoinha – no extremo Norte de ti –, ainda silenciosa e sem abutres.)

Ela, a Ilha (perpétua, imanente) continuará: para sempre:

Em um ser que ainda está sendo gestado – contemplando um álbum de fotografias num domingo à tarde.

Pai: Dissipa essa cerração!

Eu sei: “Todo ser humano tem dentro de si um vazio do tamanho de Deus.”

(Fiódor Dostoievski)

(Salvador, agosto de 2011)

domingo, 14 de agosto de 2011

Os trabalhadores na Universidade e as "regras" da Greve

Elaine Tavares

Muitos companheiros de esquerda me têm feito críticas severas por conta dos escritos sobre o governo Lula e Dilma. Alguns, surpreendentemente, até me colocam no mesmo patamar dos membros do PIG (Partido da Mídia Golpista). Mas, tal como o grande repórter Marcos Faerman, diante de um general, durante a ditadura militar, eu digo: “Estes são os fatos, general”. A presidente Dilma usou uma medida de força para desmontar a greve dos trabalhadores das universidades federais: entrou na justiça pedindo a ilegalidade do movimento. Diz a ação ajuizada no Superior Tribunal de Justiça que os trabalhadores não esgotaram a negociação e começaram a greve de forma abusiva. Vamos aos detalhes:

O governo ofereceu aos trabalhadores uma lei de cargos durante a greve de 2003, quando os trabalhadores lutavam contra o projeto de Previdência. A lei foi aprovada, mas já se sabia que ele traria muitos problemas para os trabalhadores. Por conta destes problemas foram realizadas duas greves, a de 2005 e 2007, ambas para tentar solucionar as questões pendentes da lei, tais como um vencimento complementar, problemas de enquadramento, aposentados prejudicados, extinção de cargos, falta de racionalização nas funções, etc...

A greve de 2007 acabou com um acordo fechado sobre esses temas. Praticamente nada do acordado foi cumprido. Nesse meio tempo a Federação dos Sindicatos, a Fasubra, esteve envolvida em grupos de trabalho com o governo e reuniões intermináveis. Era a implantação da lógica da “negociação permanente”. É disso que a presidente fala. Negociação permanente. Ela diz que a greve é ilegal porque os trabalhadores não querem ficar na negociação permanente. Ora, negociação pressupõe que as partes conversem e cada uma ceda em alguma coisa para se chegar a um ponto comum. Se formos analisar as reuniões com o governo que acontecem desde 2007 elas não são de negociação. O governo diz não e ponto.

Pois a Justiça recebeu a ação e em questão de dias já deu uma liminar. Não julgou o mérito, se a greve é ilegal ou não, mas já arbitrou uma punição aos grevistas. Outro problema. A justiça definiu que os setores devem funcionar com 50% dos trabalhadores. Mas, ao mesmo tempo não arbitrou nada para o governo. Ou seja, a decisão é de punição. A quem? Aos trabalhadores!

Outra questão que precisa ser analisada pelos trabalhadores é a seguinte: desde quando um movimento grevista tem de se submeter à ordem jurídica? Pelo que podemos observar da história das lutas dos trabalhadores, a batalha do trabalho contra o capital sempre se deu no campo da vida mesma, da luta real e concreta. Os trabalhadores explorados e violentados nos seus direitos se rebelam. Assim, a greve é um momento de exceção, de subversão da ordem. Como pode então a luta se submeter a regras ditadas pelo Estado ou pela Justiça. Isso me parece incognoscível (de difícil compreensão).

Não foi sem razão que sempre critiquei a alegria com que parte das lideranças sindicais brasileiras saudaram a legalização das Centrais sindicais. Na época eu dizia: como os trabalhadores podem se submeter a regras fixadas pelo Estado sobre como se organizar, sobre como entrar em greve, percentuais de presença nas assembléias, etc... Ora, a organização dos trabalhadores é da competência dos trabalhadores. Ela deve ser livre de qualquer força estatal ou patronal. Portanto, no meu ponto de vista, jamais um sindicalista de verdade, calejado na luta real, poderia aceitar e saudar essa institucionalização da vida sindical no aparelho do Estado.

Da mesma forma penso em relação à Justiça. Ela não poderia arbitrar sobre regras para que uma luta se faça. Isso quem decide são os trabalhadores. Eles assumem os riscos de subverterem a ordem existente e fazem o que precisa ser feito numa queda de braço contra os patrões. Historicamente tem sido assim, os oprimidos e explorados, quando não agüentam mais a opressão, levantam-se em luta, em greve, em rebelião. E o braço forte do Estado (ou patronal) usa os seus recursos para destruir, esfacelar, reprimir. Conforme a força dos trabalhadores há momentos em que eles vencem. Outras vezes são derrotados. Mas são os trabalhadores que se juntam e discutem as suas formas de luta.

A Justiça, no mundo liberal burguês, representa a classe dominante. É quase que absolutamente certo que são os interesses dos proprietários, dos poderosos, dos governantes, os que prevalecem. Raros são os momentos em que a Justiça beneficia os de baixo. Até porque as leis são definidas no legislativo nacional que, via de regra, tem a hegemonia dos poderosos. É uma conta simples. De fácil compreensão.

Agora, depois de anos em mesas de “negociação”, os trabalhadores disseram: basta! E se rebelaram. Querem que o governo apresente uma proposta concreta para os problemas. E o que faz o governo? Nega-se a conversar, coloca os trabalhadores na Justiça e ainda apresenta um projeto de congelamento salarial por 10 anos. Quem, em sã consciência, pode aceitar isso? Praticamente o governo não deu saída aos trabalhadores.

Agora vem a Justiça e manda os trabalhadores voltarem ao trabalho em 50%. Isso significa que, se acatada essa punição, cada setor teria de voltar ao trabalho. Precariamente. Em que isso ajuda a resolver o problema? Em nada. O restaurante Universitário com 50% não pode produzir as refeições e, os demais setores, funcionando pela metade, que tipo de trabalho produzirão? É uma decisão inútil. Não resolve a questão dos trabalhadores e nem dos usuários que se sentem prejudicados.

Nesse sentido, a greve continua. Porque nem se os trabalhadores decidirem cumprir a indicação da Justiça os problemas se resolvem.

Na minha modesta opinião é mais do que hora do movimento sindical parar para pensar o caminho que anda trilhando. Na medida em que os trabalhadores e suas entidades organizativas vão acatando uma institucionalização por dentro do Estado – aceitando regras e leis vindas de fora da classe - estão fazendo uma aposta alta demais. E o que está em jogo não é qualquer coisa prosaica como o cargo de presidente ou secretário, é a vida real de cada trabalhador e trabalhadora, seu hoje e seu amanhã. As lideranças têm, portanto, um papel decisivo nesse momento. Muito já foi concedido, muitos aplausos já ecoaram durante as propostas de regulamentação da luta dos trabalhadores feitas por que não o é.

No caso das universidades, seria preciso ter lideranças capacitadas a compreender que é chegada a hora de virar esse quadro. Que os trabalhadores precisam retomar concretamente a condução de suas lutas. Mas isso tampouco é coisa que se faz num passe de mágica. É preciso trabalho, estudo, militância, espírito revolucionário, consciência de classe.

É tempo de plantar a terra. É tempo de plantar. Novas sementes, novas sementes. Há um novo tempo exigindo novas respostas. E isso precisa vir... Sinto que é tempo.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Tortura de Amor

Míriam Santini de Abreu

Eu me canso de mim todo dia, toda noite, porque me cansa a imensa e inesgotável capacidade que tem um ser de ir ao encontro do deserto e do abismo quando poderia saborear tâmaras sob os terebintos e de abismos só saber por murmúrios longínquos.

Concordo com Elaine Tavares, em

http://eteia.blogspot.com/2011/08/waldick-e-sua-condicao-de-homem-da.html

ao falar sobre Waldick Soriano e sua música Tortura de Amor. É linda.

Vai a letra e o link:

Hoje que a noite está calma
E que minh'alma esperava por ti
Apareceste afinal
Torturando este ser que te adora
Volta fica comigo
Só mais uma noite
Quero viver junto a ti
Volta meu amor
Fica comigo não me desprezes
A noite é nossa
E o meu amor pertence a ti
Hoje eu quero paz
Quero ternura em nossas vidas
Quero viver por toda vida
Pensando em ti

A ordem em Santa Catarina é “Choque!”

Míriam Santini de Abreu

A mídia em geral pinça fatos e, sem relacioná-los, transforma os acontecimentos do mundo e dos lugares em amontoados sem conexão entre si. Em Santa Catarina, dominada pelo oligopólio do Grupo RBS, esse processo tem repercussões ainda mais graves na possibilidade de a população compreender o que ocorre no estado. O que tem a ver a criação de um Pelotão de Choque com a decisão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Assembléia Legislativa que, nesta terça-feira, dia 9, aprovou requerimento do governo Raimundo Colombo (ex-DEM, atual PSD) solicitando regime de urgência na análise do Projeto de Lei nº 236/2011, que autoriza a venda de ações da Casan, a Companhia Catarinense de Águas e Saneamento? Tem tudo a ver.
Em seu primeiro semestre de governo, Colombo passou o trator na luta dos professores, alterando o plano de carreira da categoria. Para conter os protestos na Alesc no dia da votação, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da PM, irrompeu na “Casa do Povo”. Agora, o governador apresentou requerimento solicitando regime de urgência na análise do Projeto de Lei nº 236/2011, em um cenário no qual a Alesc iria discutir o tema ao longo deste semestre e no ano que vem.
Com a alteração, a proposição terá 45 dias, a partir de hoje, para a sua tramitação final. O presidente do colegiado, deputado Romildo Titon (PMDB), confirmou a realização de Audiência Pública no dia 16, na Alesc, para discutir o tema antes da votação do relatório final do projeto, previsto para o dia 23. Parlamentares manifestaram-se contrários a isso, porque os prazos são insuficientes para a realização da Audiência Pública e análise do projeto. Foi lembrado o tratamento dado aos professores: “O governo precisa respeitar esse Parlamento!”, disse um dos deputados de oposição. “O projeto não está em discussão e este assunto está encerrado”, respondeu Titon. Na Sessão estavam representantes sindicais da Casan, dos Eletricitários e de outros Sindicatos que estão articulando uma frente ampla em defesa das empresas estatais de SC.
O artigo 1º do projeto diz que “fica autorizado o Poder Executivo a alienar ações da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento - CASAN, por meio de leilão, a sócio estratégico, resguardando-se ao Estado de Santa Catarina, diretamente ou por meio de sociedades controladas, a propriedade e posse de, no mínimo, 51% (cinquenta e um por cento) das ações do capital votante”.
É no artigo 5º que se concentram as dúvidas quanto às reais intenções do governo. O artigo diz: “Fica o Chefe do Poder Executivo autorizado a firmar com o licitante vencedor, adquirente das ações da Companhia Catarinense de Águas e Saneamento - CASAN, Acordo de Acionistas, bem como a promover a adaptação do Estatuto Social da companhia para regular o relacionamento entre o Estado de Santa Catarina e o sócio estratégico, resguardando inclusive os investimentos e direitos societários do mesmo, incluindo, entre outras matérias, o direito de preferência na alienação e compra de ações, realização de oferta pública e as regras sobre direito de voto nas deliberações da companhia que versem sobre a escolha de membros do Conselho de Administração e da Diretoria, aprovação da remuneração dos administradores, emissão de ações e debêntures, aumento de capital, inclusive com capitalização de créditos ou bens de qualquer natureza, política de distribuição de dividendos, orçamentos de capital, realização de investimentos, alteração dos estatutos e reorganização societária da companhia”.
Deputados alertaram que o mercado acionário passa por crise, e há perspectivas positivas de novos investimentos na empresa. Com o projeto, porém, abrem-se as portas da Casan para grandes empreiteiras e seu capital especulativo. Depois do resultado sobre o assunto na Comissão, o presidente do Sintaema (Sindicato dos Trabalhadores/as em Água, Esgoto e Meio Ambiente em Santa Catarina), Odair Rogério da Silva, disse que será necessária intensa mobilização, em menos de uma semana, para lotar a Audiência Pública. “A tendência deste governo é tratorar tudo”, declarou Odair. E é mesmo.
No dia 24 de julho, o Estúdio SC, programa da RBS TV, apresentou reportagem sobre o Primeiro Pelotão Especial de Choque da Polícia Militar. Vale a pena ver o programa e analisar o discurso de quem fala. E mais: a falta de outras vozes que não as da PM na reportagem revela a completa desconexão deste fato com todo o recente histórico de criminalização da luta social no país e, em especial, em Santa Catarina.
A reportagem inicia assim:
“Agora a gente vai conhecer um grupo que tem resistência de atleta, mas foi treinado para encarar situações de conflito. É a nova tropa de elite catarinense. Primeiro Pelotão Especial de Choque da Polícia Militar que vai atuar em grandes manifestações, ocorrências que envolvem tumulto. São 30 policiais que juntos podem conter 3 mil pessoas. Nossa equipe acompanhou a última aula deste Batalhão de Choque”.

Pergunta: qual é a definição de “tumulto”? E o “tumulto” social provocado pelas privatizações ao longo da era FHC?

Ao falar da “formação em linha”, um major da PM diz que é “a mais forte que nós temos”, “utilizada para desobstrução de vias, desobstrução de ambientes que estão ocupados por pessoas que não deveriam estar ali”.

Pergunta: quem define o uso do ambiente público? Que pessoas não devem estar nele?

Sobre a “formação em cunha”, o mesmo major explica que é para “dividir a manifestação em dois grupos”. Outra formação faz com que o “grupo” seja desviado para outro local. Ao falar das “posições defensivas”, ouve-se a seguinte declaração do major: “Aqui, se nós fôssemos os manifestantes, nenhum policial nosso está aparecendo”. Fica claro que o Pelotão tem um alvo específico: manifestantes, sejam eles quais forem.
As técnicas ensinadas, informa a reportagem, surgiram há mais de dois mil anos, e a matéria da RBS TV mostra uma cena do filme The Eagle (A Águia da Legião Perdida), “quando o exército do império romano passou a usar formação de escudos para proteger a tropa durante o ataque de bárbaros”.

Pergunta: quem são os “bárbaros” do século 21?

O telespectador é informado de que os integrantes foram escolhidos entre os mais fortes da PM. Um soldado esclarece que, ao contrário do que se pensa, não são policiais truculentos ou mal-preparados, “só indo na direção daquelas pessoas para bater. Não é isso. A nossa intenção é ter o menor contato possível, dar a chance para aquele manifestante sair do local sem que haja um confronto com a gente”.
O treinamento envolveu simulações com tiros e gás lacrimogênio em estádios de futebol e presídios. O tenente-coronel Newton Ramlow, conhecido em Florianópolis por estar à frente da PM na repressão às manifestações sociais, fala que o policial precisa agir, “na hora do extremo”, de forma “precisa e perfeita”.
A prova final dos policiais foi em uma simulação de reintegração de posse. O objetivo, diz o comandante geral da PM, é ampliar o efetivo para 120 homens “para que as pessoas tenham certeza de que o Estado está preparado para conter eventuais abusos de algumas pessoas, mas que esse mesmo Estado que conterá os abusos vai em socorro de todos acima de tudo”. Ao final da matéria, o grito: “Choque!”.
O que a mídia não mostra é a conexão entre esta tropa “precisa” e suas táticas contra os manifestantes com o projeto que vende ações da Celesc, com a repressão aos professores em Greve, com qualquer movimento que, do modo que for, levante-se para questionar não os abusos de “algumas pessoas”, e sim o abuso deste Estado que acha que tudo pode. Este debate é urgente, e cabe a todo o movimento sindical e popular preocupado com a construção de um mundo justo.

Veja a matéria sobre o Pelotão Especial de Choque da Polícia Militar em:

http://www.youtube.com/user/estudiosantacatarina?blend=3&ob=5#p/a/u/1/gchaHYR36Z0

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Entrevista que vale a pena ler

http://contramachismo.wordpress.com/2011/01/14/devemos-nos-preocupar-se-a-pornografia-sequestrou-nossa-sexualidade/

Sobre a Revista Pobres & Nojentas

A equipe da P&N, para continuar a viabilizar a revista, decidiu fazer 4 em vez de 5 edições por ano, uma a cada estação. A próxima será a edição de Primavera. O valor da assinatura continua o mesmo, 25,00 reais. Para assinar, basta mandar e-mail para eteia@gmx.net (Elaine Tavares), solicitando banco, agência e conta e enviando o nome e endereço completos, com CEP.
Faz a tua assinatura!
Equipe da P&N

Nosso dia a dia

A colega Simone enviou. Para refletir num dia de chuva.

http://www.youtube.com/watch?v=cxUuU1jwMgM

A limpeza de Dilma e o que se esconde sob o tapete

Elaine Tavares

A mídia comercial geralmente não tem partido. É neutra, dizem seus donos. Isso é uma meia verdade. Na química, neutro é aquilo que não é ácido nem base e na física diz-se dos corpos que não apresentam eletricidade. Na política, neutro é quem não toma partido entre as forças beligerantes. Então, nesse contexto, a mídia se arroga o direito de dizer que não toma partido, apenas mostrando o que acontece. Bom, pode-se dizer que os veículos de comunicação brasileiros não são ácidos nem são base, tampouco apresentam eletricidade, mas, que tomam partido diante das forças beligerantes , ah , lá isso tomam. No geral, a mídia está sempre do lado do poder. Não importa se é de direita ou de esquerda. A pessoa sentou na cadeira presidencial e, num repente, todos os meios já se domesticam.

No caso do Brasil houve uma simbiose. Quando Luis Inácio elegeu-se presidente advogando a etiqueta de “homem da esquerda”, houve certo rumor e desconforto. Mas, seu primeiro ato como presidente foi ceder uma entrevista exclusiva para a maior rede do país, a Globo. Estava selada a paz. Depois, as verbas publicitárias foram generosamente distribuídas e tudo ficou como dantes no quartel de Abrantes. Durante os oito anos em que governou Luis Inácio, a mídia se comportou direitinho.

Na troca de governo para Dilma Roussef as coisas seguiram iguais. Durante a campanha pode-se sentir uma espécie de recaída, pois os poderosos têm hábitos alimentares que podem ser escondidos, mas nunca superados. E, os espectros do Serra e do PSDB acirraram as glândulas salivares das grandes redes. Mas, as urnas deram vitória à sucessora de Luis Inácio e os donos das palavras logo voltaram ao ponto anterior, de paparicação do rei, agora, no caso, rainha.

Passado um semestre do governo da nova presidenta, seguimos vendo a mídia fazer seu papel “neutral”. Diante da crise de corrupção generalizada dentro do governo, lá estão os âncoras das grandes redes a louvar a capacidade de “faxina” de Dilma Roussef. A mulher não tem medo de assumir seu posto de mando e está conseguindo garantir a ética e a retidão no uso da coisa pública. Roubou, está fora. Não há mole para a corrupção. Olhando as reportagens a imagem de Dilma é a de uma Diana Caçadora, no caso, dos corruptos. Já vimos esse filme.

Para os espectadores que consomem as notícias do Jornal Nacional, do Datena ou do jornal da Record, a impressão é de que este é o tema mais importante a ser tratado no país. A faxina nos transportes, a faxina nos ministérios, a força da presidenta em livrar a nação dos ladrões. Cada dia aprece um caso diferente de corrupção pequena, média ou grande. É a agenda. Mas, como bem lembra o professor de Economia da UFSC, Nildo Ouriques, a corrupção tem três níveis: o dos pequenos ladrões, o das privatizações e o do sistema financeiro. “Dilma está atacando apenas o primeiro nível, o que é importante. Mas precisamos fazer uma devassa no processo das privatizações, no qual a Vale do Rio Doce, por exemplo, no mesmo ano em que foi vendida por três bilhões, teve um lucro de cinco bilhões. E ainda tem o sistema financeiro, com lucros exorbitantes. Isso precisa também ser investigado e sanado”.

O outro lado da moeda

Enquanto louva-se a “limpeza” presidencial na região norte do país, todo o dia morre alguém, lutando contra a avançada dos latifundiários sobre as terras indígenas. Lutam os ribeirinhos e povos originários contra a gigante barragem que vai destruir a vida de quase todo o Xingu. Uma barragem que já se mostrou desnecessária diante das novas tecnologias energéticas, mas que segue a passos largos atendendo aos interesses das grandes empreiteiras e das multinacionais.

Nos supermercados os preços disparam e os salários das gentes empobrecidas já não são suficientes para uma vida digna. A inflação avança. Imagine quem não tem salário e vive de bico. Nisso, o programa do Gugu é pródigo, mostrando a desgraça da vida dos imigrantes nordestinos em São Paulo, que rezam a deus para que o apresentador sorteie sua carta e eles possam voltar para casa. É, a mídia também tem suas contradições, como diria o grande Adelmo Genro.

Entre os trabalhadores a situação é mais grave. Com o movimento social e os sindicatos praticamente destruídos durante o governo de Luis Inácio, domesticados pela cooptação, pela “mesa de negociação permanente”, pelos cargos e pela divisão, o governo avança no aniquilamento dos direitos trabalhistas, sem que haja grandes protestos.

No ano passado, durante a greve dos trabalhadores da Justiça Federal, Luis Inácio apelou para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo ilegalidade da greve, criminalizando a Federação dos Trabalhadores, a Fenajufe. A ação governamental foi um golpe tremendo no direito à greve, e acabou desestruturando o movimento, uma vez que o STJ deferiu uma liminar exigindo que 60% voltassem ao trabalho sob pena de multa, até que fosse julgado o mérito. Em 2011 saiu o acórdão que julgou a questão dizendo que o STJ não tinha condições de julgar contra a Fenajufe, porque o âmbito da greve deveria ser restrito às bases dos sindicatos e não à Federação, que seria apenas uma subsidiária.

Agora, durante a greve dos trabalhadores das Universidades Federais, a presidenta Dilma usa do mesmo expediente e manda a Advocacia Geral da União entrar na Justiça contra os trabalhadores técnicos-adminsitrativos em greve, também esperando pela decretação da ilegalidade do movimento. Já escolados pelo caso da Fenajufe, a ação não é só contra a Fasubra (federação que representa os técnicos-administrativos), mas também contra cada sindicato local. Isso significa que a greve pode ser julgada nos mais diversos tribunais regionais. Enquanto isso, o movimento paredista segue caminhando para mais de 60 dias, sem que o governo aceite estabelecer uma mesa de negociação real. É a mais alta expressão do autoritarismo.

Enfim, toda a austeridade e retidão que a mídia tem incensado à exaustão não colocam em xeque, por exemplo, a distribuição de dinheiro público para as obras que envolvem a Copa do Mundo de 2014. Os estádios gigantes que serão construídos com dinheiro do povo servirão para quem? Serão colocados à disposição das gentes brasileiras para a prática de esportes ou servirão para engordar a conta de cartolas do mesmo naipe de Ricardo Teixeira? Alguém tem alguma dúvida quanto às respostas?

A corrupção é uma praga difícil de estancar, e justamente por isso não deveria ficar só no primeiro nível, como aponta Ouriques. Uma verdadeira limpeza precisa chegar também às multinacionais, às grandes empresas prestadoras de serviço ao Estado, aos crimes de lesa pátria cometidos durante as privatizações e aos embusteiros cotidianos que conformam o sistema financeiro nacional. Sem isso, é insuficiente. E, no caso da mídia, o mais interessante seria que praticasse o verdadeiro jornalismo em vez de ficar posando de vestal pudica e neutral.

SERES HUMANOS NA CRISE DO CAPITALISMO




Por Emanuel Medeiros Vieira - Ilustração de Uelinton Silva


(Modesta meditação dedicada em favor do pessimismo da inteligência e do otimismo da vontade.)



André Gide escreveu: “Todas as coisas já estão ditas, mas como ninguém escuta, é preciso recomeçar sempre.”



E o ofício de escrever é um eterno recomeçar: lutar com palavras mal rompe a manhã, para usar a expressão de



Drummond.



Creio que travamos, através da linguagem, o que T.S.Eliot chamou de “combate intolerável com as palavras” que “se estiram, racham, escorregam, perecem.”



Mas a batalha da vida não é formal. O que percebemos é a banalização do mal e não do bem. A mercantilização das relações, a hegemonia do ter e do parecer, o estímulo à futilidade e ao egoísmo, geraram um ilhamento entre as pessoas, onde muitos seres parecem apenas fingir e camuflar os seus sentimentos.



O modelo vigente acreditava que éramos meros números.



Minha geração não viu crise maior do capitalismo.



Crise ou colapso? O “Muro de Berlim” dos neoliberais?



Onde estão aqueles que exigiam Estado mínimo e nos chamavam de dinossauros?



Eles tinham verdades consagradas. Diziam que o capitalismo havia vencido.



Como disse Cesar Benjamin num artigo intitulado “Karl Marx manda lembranças”, os “Estados tentarão salvar o capitalismo da ação predatória dos capitalistas”.



O que se vê não é erro nem acidente. O projeto todo estava centrado na acumulação do capital.



Tantos anos de falso consenso resultaram neste quadro dantesco.



Resultado?



Desigualdade social obscena.



E assim por diante.



Os concílios acabaram com o limbo e com o purgatório. Com o inferno não...



Formou-se uma geração de políticos espertos, inebriados pelo marketing, não pela verdade.



E a degradação ética, internalizada em muitas almas, parece não ter fim.



Só unidos, poderemos recuperar o núcleo do humano.



(Não digo nada de novo. Eu sei. Mas nossa força é essa: nossa união, forjada em tantas lutas.)



Como observou Boris Pasternak, “viver a vida até o fim não é tarefa para crianças.”

domingo, 7 de agosto de 2011

Só se sobe a pé...

Míriam Santini de Abreu

Vi a minissérie "A Muralha" duas vezes e, por causa de meu amor pela Serra do Mar, fucei e descobri no You Tube uma das cenas que adorei, com início aos 3min18. Sim, só se sobe a pé...

http://www.youtube.com/watch?v=ywGiCk87yfY

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Frigorífico condenado em R$ 14 milhões por danos sociais

Uma ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em 2007, distribuída para a 4ª Vara do Trabalho de Criciúma, teve uma tramitação tão complexa que a sentença só foi publicada mais de quatro anos depois. A decisão determina que a empresa Seara Alimentos S.A. tome providências visando a preservação da saúde dos seus empregados na unidade industrial de Forquilhinha, sul catarinense, e condena a ré a uma indenização de R$ 14,6 milhões, por danos sociais. Durante a tramitação, o processo acumulou mais de 30 volumes e quase seis mil páginas.
Há alguns anos o MPT vem se ocupando com a saúde dos trabalhadores em frigoríficos, que manuseiam peças semi congeladas de aves, suínos ou bovinos, em ambientes com baixa temperatura.
Tudo começou com a demissão, em 2006, de dez trabalhadoras da ré, que segundo o MPT, se ausentaram por alguns minutos da sala de cortes por não suportarem o frio intenso do local.
Quando tomou conhecimento dos fatos o MPT promoveu uma série de diligências nas quais verificou a precariedade das condições de trabalho na empresa, com temperaturas abaixo de 10 °C e carga de trabalho exaustiva, que provocaram número crescente de empregados doentes e incapacitados para o trabalho.
O motivo da demora no julgamento é tratado na sentença de 73 páginas, que condena a empresa por litigância de má-fé, caracterizada por inúmeras atitudes com objetivo protelatório, segundo a juíza do trabalho Zelaide de Souza Philippi. Após analisar o processo, ela conclui que a ré, durante a demanda, “vem lançando mão de todo o expediente possível e imaginável no intuito de intimidar o autor, seu assistente litisconsorcial e o próprio Juízo, além de procrastinar o andamento do feito, conduta que não pode passar impune.”
Entre as iniciativas da empresa que podem se sujeitar aos incisos do art. 17 do Código de Processo Civil (CPC) - litigância de má-fé -, a magistrada destacou, “prefacial de ausência dos pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo, pela não submissão do feito à Comissão de Conciliação Prévia, absolutamente ciente da inexistência daquele órgão na localidade de Forquilhinha, no intuito único de protelar o feito (tanto que, no curso da presente demanda, não demonstrou autêntico intuito de conciliar)”.
A juíza também registrou a intenção de cerceamento da atuação do procurador do trabalho que assinou a petição inicial, pleiteando sua substituição e a intervenção do procurador-chefe.
Além disso, anotou a tentativa da ré de “intimidar os juízes que atuaram no feito, lançando ameaças veladas de fechamento da unidade de Forquilhinha em caso de procedência da demanda, bem assim de processos judiciais” contra as autoridades mencionadas, por supostos prejuízos causados, bem como “exceção de suspeição absolutamente intempestiva e infundada, com intuito único de causar embaraços ao andamento do feito e coagir as autoridades”.
A Juíza Zelaide salienta, por fim, que o advogado da empresa empregava reiteradamente “expressões irônicas, injuriosas e agressivas em relação aos demais litigantes, ao perito técnico designado nos autos e ao próprio Juízo”, referindo-se às trabalhadoras demitidas como “grupelho”.
Tal profissional ainda referiu que o perito teria frequentado “sessões de tanglomanglo” - alusão à feitiçaria - para justificar suas conclusões, de que o MPT estaria atuando de maneira “pérfida”, e que o juízo teria armado “circo de horrores para a empresa”. Por essas razões, a magistrada concluiu pela litigância de má-fé da empresa, determinando o pagamento de multa prevista no art. 18 do CPC.
A julgadora vislumbrou nas condutas da ré, além dos prejuízos ao trabalhador individual, reflexos nocivos à coletividade. Para ela, a conduta de precarização do trabalho atinge a sociedade local e o sistema previdenciário do país, acionado por trabalhadores incapacitados para o trabalho. E conclui: “Entendo, assim, que as reiteradas práticas da demandada de desrespeito à normas legais e constitucionais relacionadas ao Direito do Trabalho devem ser desestimuladas, bem assim reparado o dano social causado, na forma dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil, mediante o arbitramento de indenização que contemple não apenas a gravidade da conduta da demandada e os efeitos maléficos decorrentes, mas também o poderio econômico da empresa”.
A empresa foi condenada, dentre outras medidas, a conceder pausas de 20 minutos para cada 1 hora e 40 minutos trabalhados, sempre que a temperatura medida no local de trabalho for inferior a 10ºC, bem como a instalar instrumentos de controle da temperatura eficazes e garantir o acesso do MPT e do sindicato profissional para verificação a qualquer tempo.
Também determinou a suspensão de horas extras na linha de produção, a garantia aos empregados de ida ao banheiro sempre que precisarem, bem como a aceitação de atestados médicos de profissionais não ligados à empresa, acatando o tratamento e o período de afastamento prescritos, sem qualquer limitação. A ré ainda fica obrigada a diagnosticar antecipadamente as doenças relacionadas à atividade, afastando imediatamente o empregado e fazendo a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT).
Por fim, a juíza Zelaide confirmou a antecipação de tutela concedida inicialmente e condenou a empresa a pagar a indenização por danos sociais. Os R$ 14,6 milhões deverão ficar à disposição do juízo até que a Secretaria Estadual de Saúde e o Instituto Nacional de Seguro Social apresentem, em conjunto, projeto a ser custeado com o valor da condenação, destinado à recuperação de trabalhadores e reintegração ao mercado de trabalho.
A empresa entrou com recurso para o TRT/SC.


Fonte: Assessoria de Comunicação Social do TRT/SC

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Quando bate o vento sul

Elaine Tavares
O meu Campeche fica doido em dias de vento sul, tal como hoje, nessa terça-feira luminosa. Pelas ruas de areia, nada se segura. Voam os cabelos, as roupas nos varais, as telhas, as cadeiras do quintal. Caem os limões maduros, os mamões. Tudo fica agitado, como se fosse o prenúncio de um fim de mundo. Os cachorros uivam, um lamento estranho, como se comunicassem com forças invisíveis. Lá longe ruge o mar, onde as criaturas sagradas vivem. As ondas se agigantam e aconselham a não sair de canoa.

Quando vem a noite tudo fica ainda mais assustador. As corujas não voejam, escondem-se sabe lá onde. Não há vagalumes e os gatos ensaiam pulos endoidecidos. “Têm visagens”, dizem os antigos. Arrepios. Os sinos de ventos ficam numa dança louca e o seu tilintar avisa que é tempo de sossegar. As cortinas dançam por conta das rajadas que ultrapassam as gretas da madeira. As portas pipocam.

Essas são as noites em que as bruxas da ilha saem ao vento a fazer estripulias. Por isso as coisas batem e trocam de lugar. Dizem que se a gente andar pela rua escura sem algo cobrindo a cabeça, elas montam no vivente e aí, é um deus nos acuda. Pode até ser que a pessoa não consiga chegar a casa. Todo cuidado é pouco nestes dias de ventania.

É por isso que agora, quando a barra do dia já caiu, eu espio pela porta e me aquieto, chimarreando. Rodeada por gatos, cachorros e gentes, só me resta aprontar a sopa e contar histórias. Estas lindas histórias dos tempos de antanho.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Teresa lia os búzios na praia dos Paulas



E. O. Hoppé, 1926


Quando eu tinha dez anos, ficava a tarde inteira no cubículo escuro da sapataria do senhor Antonio, que batia sola ao lado de sua mulher cega, nós três envoltos no cheiro de cabedal e miséria, que é o único odor de santidade que conheço.
A dona Dorotéia, sempre de luto, ora porque havia morrido o canário, ora porque o gato foi trucidado pelo cão, ora porque seu marido se atirou sob as rodas do trem, ora porque anoitecesse no mar, sempre de luto, ela transportava com o máximo cuidado, dentro de uma caixa de vidro, uma figura tosca de São Francisco de Assis.
O santo Francisco ficava em sua redoma na sala de dona Dorotéia, sem beber água nem comer frutas. O que aliviava um pouco seu tédio era a luz que emanava do pavio de azeite.
Cresci entre o aviário do ex-lutador de box Franz – que consertava com talas de caniço as asas dos papagaios –, e o bar do Bolacha, muquifo muito suspeito, que vendia maços de cigarro sem filtro, ovos azulados imersos num vidro embaciado e garrafas de um líquido estranhamente chamado de “Cachaça de ver calcinha”.
Minha tia Teresa da Mauritânia lia búzios na praia dos Paulas, embuçada de negro como a viúva de um marujo, embora nunca tivesse casado e preferisse, no fundo, deitar com mulheres. O navio do tal marujo fictício nunca deu à costa, mas um dia aconteceu o que ninguém esperava: tia Teresa da Mauritânia grudou barba postiça em sua cara, colocou roupa e quepe de marujo, sentou num bar, sorveu cascos e cascos de cerveja Eisenbahn, pediu um lápis e rabiscou no papel em branco um navio – o convés era vasto, e os mastros altíssimos –, pegou o papel, foi até o poço do quintal, ergueu a tampa, atirou-se lá dentro a pensar, talvez, que as águas do poço eram águas do mar.
Quando o pólen da acácia chovia nas minhas pálpebras de menino, eu me excitava e, para me acalmar, fingia ser um unicórnio e me trancava no banheiro de casa a folhear revista de mulher nua: eu ainda não sabia que o chifre daquele meu unicórnio poderia, no futuro, fecundar o ventre de uma fêmea.
O barbeiro Astolfo cortava meus cabelos ao som da músicade Brahms. Um dia cansou de tudo e quebrou a asa da xícara, atirou os gatinhos dentro da privada e puxou a descarga, verteu água fervente na cabeça de sua mulher que dormia. Um dia, porque estava triste, cortou suas orelhas, seu nariz, seu pênis e comeu tudo com folhas de alface. Foi considerado louco e internado para sempre na Colônia Santana. Eu ia visitá-lo e punha na vitrola, para que ele se alegrasse, um vinil de Brahms.
A esposa do proprietário da Farmácia Alves era uma grega sumptuosa de nádegas de ânfora e pupilas que ardiam no escuro. O Alves nunca soube, mas sua mulher foi minha primeira namorada. Durante horas ficávamos dentro da igreja e, quando não havia ninguém, entrávamos no confessionário e meus dedos inocentes molhavam a pia de água nada benta que ela trazia entre as coxas e sob a saia.
Hoje, adulto, retorno à Vila Raso da Catarina e não encontro a Vila Raso da Catarina. As acácias ainda continuam por aqui, e me pergunto onde poderei encontrar o senhor Antonio e sua mulher cega, que sentava num banquinho baixo na sua sapataria?
Onde a dona Dorotéia, sempre de luto?
O aviário do ex-lutador de box Franz, me disseram, não existe mais. Franz morreu de solidão, dentro de seu quarto escuro. Os papagaios que ele curou foram empalhados e vendidos como souvenirs na feira dominical. Tia Teresa da Mauritânia foi vista, segundo as más línguas, voando numa vassoura na rua da Caixa d'água. O barbeiro Astolfo engasgou com um vinil de Brahms e levou três dias e três noites pra que enfim o ar cessasse em suas narinas.
Quanto à grega sumptuosa, logo após a morte de seu marido Alves, levou as nádegas de ânfora e as pupilas que ardiam no escuro ao Convento das Carmelitas, onde se entregou, com toda devoção, à leitura de encíclicas e ao ofício de ser noiva de Jesus.
São Francisco de Assis, este continua na sala de dona Dorotéia, que foi empalhada pelos filhos e pode ser vista, ao lado da figura tosca do santo na redoma, ambos iluminados pelo pavio de azeite. Ambos, igualmente, sem beber água nem comer frutas.
Vou ao mictório público e é com satisfação que abro o zíper e verifico que o unicórnio continua ali, sedento pelas ancas de Eulália, pelas coxas de Gabriela, pelo ventre de Cecília.
Algumas casas da Vila Raso da Catarina viraram ruínas, mas o mar resiste: nem o vento destroça suas ondas.

Fernando José Karl