quarta-feira, 28 de novembro de 2007

IELA faz festa Latino-Americana

O Circuito de Cinema Latino-Americano e Caribenho “Alí Primera”, promovido pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA/UFSC), termina o seu primeiro ano com uma festa político/cultural. Depois de levar para a universidade um circuito de filmes sobre a realidade e a história desta parte praticamente esquecida do continente, o Circula alia o cinema com a música, a fotografia, o texto e a mística. Tudo em nome da transformação deste mundo que aí está.

Assim, neste dia 04 de dezembro, terça-feira, realiza uma festa que terá desde a projeção de filme até o lançamento de um livro sobre a África. A idéia é misturar arte, cultura, educação, propostas de mudança e fazer uma grande celebração de final de ano, preparando terreno para mais um tempo de discussão e debate sobre as lutas na América Latina.

A programação, na sede dos Volantes, começa às 18h, com a projeção do documentário: “Encontro com Milton Santos”. A partir das 20h será apresentada uma mística e acontece o lançamento do livro Minhas Memórias de África, do fotógrafo paulista Thomas Bisinger. Logo em seguida é a vez da música latina entrar em cena. Samba , salsa, cueca, tango, chacarera, cumbia e tantos outros ritmos que fazem desta “nuestra” América um espaço de alegria. Então, aliando lutas, denúncias, desejos de transformação e dança, o povo do Circula/IELA se despede de 2007 e promete: em 2008 o circuito segue, e cada vez melhor.

A festa latino-americana começa às 18h, no salão de festas da Associação dos Servidores da UFSC (Volantes), ao lado da Igrejinha. Haverá comida e bebida típicas de vários países da América Latina. Ingresso R$ 3,00 – dá direito à comida e um copo de Chicha.

Olhar crítico no jornalismo

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Mais uma turma está se formando em Jornalismo na Unidavi, Rio do Sul, Alto Vale do Itajaí, norte de Santa Catarina, e começa a temporada de defesa de Trabalhos de Conclusão de Curso, os TCCs. Destaco cinco cuja execução acompanhei e que revelam uma preocupação dos estudantes com temas complexos, vistos sob uma ótica crítica. Aline Kummrow escreveu a grande reportagem “Terra herdada, terra paga”, que fala sobre o conflito entre agricultores e índios na Terra Indígena Laklãnõ, também conhecida como Reserva Indígena Duque de Caxias. Djanaina Peiker, na grande reportagem “Bichos de Passagem”, mostra como Santa Catarina recolhe e trata os animais silvestres que precisam de cuidados.
Marilene Franz, também na modalidade grande reportagem – intitulada “Mulheres de Rio Sul – superando obstáculos e vivendo com HIV/Aids” – escreveu sobre o atendimento prestado no município às mulheres que têm o vírus. Com o título “Por amor a Camila”, Roberta Bilk fez um livro-reportagem para relatar a experiência de pessoas com Síndrome de Down. Por fim, Sheyla Germano, no livro-reportagem “Katanghára: Memórias do Pacificador”, conta a trajetória de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, considerado o “pacificador” dos índios Kokleng.

Ilha da Magia... Para quem?

Ocorre nesta quinta-feira (29/11), às 15 h, na Câmara Municipal de Florianópolis, uma audiência pública para discutir o Projeto de Lei Complementar nº 768 de 2006, que tem por objetivo o cancelamento da construção da avenida SCI-15. Caso seja aprovada sua construção, a avenida SCI-15 vai atravessar o Parque Ecológico do bairro Córrego Grande, ligando a Avenida Ângelo Crema à Av. Prof. Henrique da Silva Fontes (Av. Beira Mar). A obra está prevista na Lei Complementar nº 001 de 1997 e representará um grande impacto ambiental sobre o horto florestal. Veja foto que simula o traçado da avenida SCI-15 e leia mais informações em: http://ises-do-brasil.blogspot.com/2007/11/avenida-passar-por-dentro-de-parque.html, site de onde foi extraída essa informação.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Caso de polícia

A UFSC reuniu o Conselho Universitário para discutir e votar o projeto do governo federal que "expande" a universidade. Migalhas para uma instituição que já morre à mingua. Estudantes e técnicos-administrativos foram barrados na discussão. Impedidos de entrar pela segurança interna e com toda a ostentação da Polícia Federal. É assim que a UFSC vem tratando todos os debates que envolvem a vida da universidade: como caso de polícia. Reitoria surda e desconectada da realidade de seus estudantes e trabalhadores. Conselho Universitário covarde e incapaz de dialogar. Mas estudantes e trabalhadores seguem na luta. Contra o Reuni e a favor da qualidade na educação, afinal, educação não é mercadoria.

http://www.youtube.com/watch?v=fIVZltLv_8k

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Uns braços

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Sabedora, por esse blog, de minha atração por braços, uma colega blogueira indicou-me a leitura de "Uns braços", de Machado de Assis, e aí encontrei, palavreada, a expressão dos meus desejos. E compartilho:
http://www.biblio.com.br/conteudo/MachadodeAssis/unsbracos.htm

Amanhecer proverbial

Por Fernando Karl, poeta e jornalista

Há dias que amanheço dizendo provérbios...

Um domingo desses saí para almoçar e, cada vez que falava, pintava algo do tipo:

1. "de grão em grão a galinha enche o papo"
2. "mais vale um pássaro na mão que dois voando"
3. "só dando com o gato morto no louco até o gato miar"
4. "água mole em pedra dura tanto bate até que fura"

depois fui devidamente internado no Manicômio de Água Santa,
na ala das virgens,
e agora, em vez de provérbios,
eu escrevo, com meus lábios,
périplos pelas peles e singro pelos pêlos
dessas mulheres atônitas de estarem aqui, junto comigo,
e deram tanto com o gato morto em mim que eu ressuscitei

ergui âncoras e dei a volta ao mundo
num véu


sábado, 24 de novembro de 2007

Croniportagem, gênero das Periodistas Pobres & Nojentas

O blog de Pobres & Nojentas entra em nova fase! Vamos enriquecer esse espaço de textos e fotos com pequenas reportagens em vídeo, tanto no blog quanto em conta própria no You Tube. As Periodistas Pobres & Nojentas estão colocando em prática o gênero Croniportagem, misto de crônica e reportagem para “exercer a pureza com ferocidade e reinventar a língua portuguesa dentro de nós”, como diz o poeta e jornalista Fernando Karl, que atualmente mora em Curitiba. Prometemos teorizar sobre isso, mas, por ora, vamos apenas croniportar!

Croniportagem 1 - Sob o céu de Ibirama


Nas fotos, Ibirama vista do antigo hospital Hansahoehe e objetos de Eduardo Hoerhan expostos no Museu

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Diz o poeta e jornalista Fernando Karl:
“Falamos em português - língua sumarenta - porque não exercer, então, a pureza com ferocidade e reinventar a língua portuguesa dentro de nós?”


Língua sumarenta... A língua portuguesa levou-me a Ibirama, Alto Vale do Itajaí [SC] numa tarde quente de novembro. A cidade não me era estranha, com seu relevo arredondado, as pontes sobre o rio Itajaí-açu, a construção imponente no alto de uma colina, construção e colina objetos de meu desejo. Uma Igreja? Escola? Eu não sabia, e, estando a caminho de Rio do Sul, não havia como parar na rodoviária e tirar o véu dos mistérios daquele prédio com a fachada repleta de janelas. Mas eis que descubro a história de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan, responsável pela chamada “pacificação” dos índios Xokleng do Alto Vale do Itajaí.
A revelação se deu pelo escrito de Sheyla Germano, estudante de jornalismo na Unidavi, em Rio do Sul, que mora em Ibirama e fez o seu Trabalho de Conclusão de Curso sobre Eduardo Hoerhan. E desde que li a história deste homem – pureza e ferocidade demasiado humanas, chamado pelos indígenas de Katanghára, o rijo – não tive descanso até parar em Ibirama e conhecer o Museu onde estão alguns de seus objetos pessoais e o Cemitério onde ele foi enterrado. E o Museu, descubro, era na construção da colina, o antigo hospital Hansahoehe. Serendipity!
Lá encontro Wilde Bauner, em cujas mãos cuidadosas aqueles antigos vestígios experimentam, de novo, a vida:

Chapéu marrom manchado
Arreios de grosso couro
Botas negras de cano alto
Antigas fotografias, de antigos feitos. E aquela que tanta impressão me causou. Eduardo Hoerhan quase nu, corpo sem pêlos, curva acentuada nos ombros largos, no peito um colar indígena.


E vamos depois, eu e Sheyla, ao Cemitério, onde uma flecha de pedra à guisa de cruz, à sombra de uma palmeira, marca o lugar de descanso do Pacificador. No túmulo, apenas o epitáfio:

“Aqui jaz Katanghara. De seus nobres feitos podem falar as matas virgens de Santa Catarina ou os koingang de longos e negros cabelos que bem o conheceram.”

E experimento ali, sob o céu de Ibirama, o encontro desejado desde que a portuguesa língua deu a conhecer, revivida no livro-reportagem “Katanghára: Memórias do Pacificador”, a tortuosa trajetória de Eduardo de Lima e Silva Hoerhan.

Museu Eduardo de Lima e Silva Hoerhan

Crédito: Periodistas Pobres & Nojentas

A Igreja dos Lavados


A fonte era atrás da Igreja dos Lavados – e fiquei horas num êxtase, língua à brasa de coxas, andando, no pensamento, em torno do poço com erva da tempestade no céu da boca. Bebi aguardente, benzi pedras e gatos. Vi, pela primeira vez, o aspecto interior da fonte de água mineral que me envolve e me incita ao linho. Sonhei, chuva a chuva, o abismo em que me precipitei nulo. Escutei em meus tímpanos o bosque de uma voz que desfiava uma barca na correnteza. Retirei da sombra a meu Lautréamont íntimo, a meu ser colossal, e tirei-me a ferros das entranhas de mim mesmo. Devaneio entre o bairro de Água Branca e o bairro dos Paulas. Gozo antecipadamente o prazer de ir tocar as coxas de uma das três mulheres do sabonete Araxá. Uma hora estou aqui deitado nas folhas das folhas de relva, outra hora estou lá, e pratico ablução com areia embaixo de um baobá, vendo os ângulos algumas vezes cáusticos do absurdum – bate o fino tambor de Dennis Radünz: absurdum, absurdum, absurdum. Tornamo-nos cadáveres, ainda que falsos, até atingirmos aquele ponto da ilusão em que a própria ilusão se destroça, onde já não distingüimos quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Porque, de resto, o que fingimos é isto, fingimos ser cadáveres e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com essa vidraça – ou a vida –, é estarmos em desacordo com nós próprios e com esses talhos fundos sobre a fauce, como feitos por dentes de garfo. O absurdo é o divino e eu passo por entre lianas, alcanço o retábulo de pedra e nele adormeço. Acordo para estabelecer a seguinte teoria: o mar assina oráculo na carapaça da lagosta, depois age contra ela, para justificar o quanto é oco esse oráculo e ocas as nossas ações e as teorias que as vivificam. Talhar uma tainha na nuvem, e logo em seguida agir contrariamente ao mar e seguir por essas espumas. Ter, nos gestos todos, jorro de água e, no pensamento, uma loja de cristais; gestos aquáticos e o inferno é esse gato persa que penetra surdamente na loja de cristais e os cristais – tensos todos – confidenciam que nem somos gato persa nem pretendemos ser nuvens. Adquirir um livro para ler nas páginas desertas a pétala, o salmão e, se pétala de salmão é escama, também é selo de poesia. Ir a concertos para não escutar os cellos suntuosos de Brahms nem para ver o Mister Wong que sempre lá está (no auditório de um concerto, todo calvo é sempre o Mister Wong); dar longos passeios por cima das ondas, andar no bosque vazio por estar farto de andar no bosque vazio e ir passar domingos com a cabeça embaixo do travesseiro só porque ali o céu não nos aborrece. Agora, que me oprime a roda-de-ferro na fronte, aquela angústia antiga me conta que chovem fios de mel na carpa, por vezes bebo o andamento delas num aquário e respiro deitado numa das longas folhas da bananeira. E como, ao sair eu, o vento verificasse que a garrafa de vinho ficou pela metade, o vento bateu com a cortina na garrafa, aliviou-a de repente de seu líqüido e o vento se afastou.

Fernando José Karl
Foto: Cartier Bresson na Itália

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Magia sob quatro rodas



Míriam Santini de Abreu, jornalista

Na terça-feira, dia 20, eu tinha três compromissos em diferentes bairros de Florianópolis. Para dar conta deles, precisei usar 11 vezes o transporte coletivo da Capital, chamado “integrado”. 11! Inacreditável. Do primeiro ao segundo compromisso, saí do bairro Itacorubi para chegar à Estação Ecológica de Carijós, às margens da rodovia de acesso à Jurerê e Praia da Daniela. A campainha do coletivo estava com defeito, puxei a cordinha alguns metros antes da parada, o motorista não ouviu.
Eu esbravejando, e o cobrador, impávido: - Puxou depois da parada.
Até a estação seguinte foram mais uns dois quilômetros, porque ao redor da rodovia há manguezal, pouquíssimas casas.
Desço, atravesso para o outro lado e, entre o sol da uma da tarde e a espera de outro ônibus, prefiro caminhar.
E, pela estrada afora, eu vou bem sozinha...
Depois de meia hora de caminhada, 30 graus na moleira, chego aonde queria.
Filmei e fotografei o lugar, lindo...
A Ilha da Magia é ótima, mas para quem tem carro.

Editoras de P&N têm dois artigos em livro

Será realizado no dia 29 de novembro, quinta-feira, às 18h, no Hall do Centro Sócio-Econômico da UFSC, em Florianópolis, o lançamento da segunda edição do livro Universidade: a democracia ameaçada, organizado por Valdir Alvim, Waldir Rampinelli e Gilmar Rodrigues. Um das editoras de Pobres & Nojentas, Míriam Santini de Abreu, assina o artigo “A resposta do poder ao movimento grevista de nove meses na UERJ: ruptura do discurso e da prática da democracia. Já Elaine Tavares, também editora de Pobres & Nojentas, assina, com Raquel Moysés, o artigo “Esta democracia?! Ou a invenção do novo...” A obra tem 14 artigos, com autores da UFSC e de outras universidades, entre os quais professores, técnicos-administrativos e estudantes.
O livro Universidade: a democracia ameaçada tem como objetivo principal analisar e apontar novos rumos para o avanço de um processo democrático na universidade brasileira. Para tanto são abordados vários assuntos, entre os quais o papel dos intelectuais na sociedade, passando pela democracia e pelas eleições internas, focando o dirigismo dos órgãos fomentadores de pesquisa, analisando o carreirismo que leva “à raridade do pensamento crítico e abrangente”, discorrendo sobre o movimento estudantil e dos técnicos-administrativos, denunciando o expansionismo dos cursos pagos lato senso, discutindo a idéia de universidade e a recente reforma universitária. Temas por demais importantes que requerem uma discussão constante. Universidade: a democracia ameaçada é o resultado de um debate permanente nas comunidades universitárias, bem como entre os próprios autores.


- Apresentação: Ricardo Antunes – Professor da Unicamp;- Prefácio: Zilda Márcia Grícoli Iokoi – Professora da USP;- O Papel dos intelectuais na transformação social: James Petras - Universidade de Nova Iorque;- Universidade, Sociedade e Política - Adriano Luiz Duarte e Waldir José Rampinelli – UFSC;- Democracia capilar – Armando de Melo Lisboa – UFSC;- Esta democracia?! Ou a invenção do novo... - Elaine Tavares e Raquel Moisés – UFSC;- A corrida pelo Lattes - Antonio Ozaí da Silva; UEM;- A resposta do poder ao movimento grevista de nove meses na UERJ - Míriam Santini de Abreu – UFSC;- Representação, Participação e Democracia – Rodrigo Mioto dos Santos – UFSC;- A crise da universidade, o desafio digital e a democratização do ensino - Sérgio Luiz Prado Bellei – UFSC;- Democratização universitária com políticas de comunicação – Paulo Fernando Liedtke e Moacir Loth – UFSC;- Kant, Derrida, e a idéia de universidade - Maria de Lourdes Borges – UFSC;- Entre Córdoba e Washington: a disputa pela reforma universitária na América Latina – Nildo Ouriques – UFSC;- Democracia e Universidade: A reforma que não reforma - Fernando Ponte de Sousa – UFSC;- Rumos da Educação Universitária – Célio Espíndola – UFSC;- Ensino público e gratuito: a problemática dos cursos de pós-graduação ‘lato sensu’ e as fundações de apoio – Valdir Alvim e Gilmar Rodrigues – UFSC.

LEIA ARTIGO DA PROFESSORA MARLI AURAS ESCRITO PARA O LANÇAMENTO DA PRIMEIRA EDIÇÃO DO LIVRO:

Por que a democracia encontra-se ameaçada no interior da Universidade?
Marli Auras - Professora Titular do CED/UFSC, aposentada

Está para ser lançado o livro Universidade: a democracia ameaçada, organizado por Waldir Rampinelli, Valdir Alvim e Gilmar Rodrigues, pela editora Xamã, São Paulo. Trata-se de uma obra composta por 14 artigos, todos de autoria de integrantes do cotidiano universitário, professores, pós-graduandos, jornalistas e servidores técnico-administrativos da UFSC e de outras universidades públicas brasileiras e latino-americanas. Posso afirmar que o traço comum a amalgamar os artigos é a forte preocupação para com a defesa do caráter público da Universidade, sob diversos ângulos do trabalho realizado no interior da instituição. Daí o próprio título da obra, que apresenta como inspiração e como força motriz o entendimento de que, para que se consiga ampliar, realmente, com firmeza e coerência, tal compromisso com o público, é indispensável a ampliação e o aprofundamento das práticas democráticas também no âmbito da própria Universidade. Inclusive porque esta instituição, mantida pelos cofres públicos, diante do avassalador domínio do analfabetismo, funcional ou não, a caracterizar historicamente a sociedade brasileira, é um campo privilegiado para a promoção do avançar da democracia em nosso meio, teórica e praticamente (para percebermos mais fundamente o significado disto, é fundamental lembrarmos que a pesada e distorcida carga tributária nacional, proporcionalmente, acaba incidindo mais sobre a multidão dos brasileiros que ganham menos, sob a forma de impostos indiretos, como é o caso do ICMS).

Considero importante recordarmos que a UFSC proclama como sua missão “produzir, sistematizar e socializar o saber filosófico, científico, artístico e tecnológico (...) na perspectiva da construção de uma sociedade justa e democrática”. Será que tal mister vem, de fato, sendo perseguido e concretizado? O livro ora em pauta possibilita levantar sérias dúvidas a respeito, chegando mesmo a afirmar que a democracia encontra-se ameaçada. Diante da continuidade secular do abissal quadro de excludência a caracterizar a realidade de nosso país (1) mantendo o Brasil na vergonhosa posição de ser um dos campeões mundiais no quesito desigualdade econômico-social, apenas superado por um e/ou outro país do continente africano (geralmente marcados pela presença de guerra civil entre seus diferentes grupos étnicos), urge perguntarmos pela real densidade do caráter público da propalada democracia brasileira e perguntarmos, também, já que são questões inter-relacionadas, pelo caráter público da universidade pública. Se o grande traço de nossa paisagem social é a desigualdade, a marcar feito um vergão gerações e gerações de nossos patrícios Brasil afora, seria ingênuo imaginar que a Universidade nada ou pouco tem a ver com tudo isso.

É fundamental, pois, que venha a contribuir para a criação de um outro “clima cultural”, que problematize fundamente o “status quo”, que busque desvelar - em todos os campos do saber - a gênese e os nexos responsáveis pela sempre reiterada reprodução do mesmo, de modo a possibilitar o avanço das condições históricas capazes de, efetivamente, promover a construção da “res publica”. Tal imperativo demanda, ao fim e ao cabo, a construção de um projeto nacional, democrático, popular, que trate de responder, de fato, ao desafio de mobilizar legiões e legiões de brasileiros, de todas as idades e quadrantes, para a geração de um coletivo que possa romper com a condição subalterna e garantir mais e mais uma vida decente e digna para o conjunto da população.

Todos os artigos da obra aqui referenciada, encharcados por esse caráter militante, desafiam ao debate, à produção de novas e singulares sínteses a partir da diversidade do trabalho realizado nesta instituição. Vale a pena conferir. O leque das discussões vai do papel dos intelectuais latino-americanos na transformação social aos rumos da educação universitária brasileira sob o domínio do capital financeiro e do conservadorismo. O que vem a ser democracia (é preciso “democratizar a democracia”) e a própria idéia de universidade, a relação entre o público e o privado e a questão do exercício do poder no interior da instituição, seus vários processos eleitorais, a acelerada corrida pelo Lattes (condição “sine qua non” para a vida acadêmica), a ausência de uma política de comunicação entendida como um bem público, a longa greve de nove meses dos servidores da UERJ e o desvelamento do discurso supostamente democrático da reitoria e a cerrada luta do movimento estudantil da Universidade Estadual de Londrina (PR) pelo alargamento de sua participação, são temas, todos da maior importância, trabalhados na obra em pauta, Universidade: a democracia ameaçada.

Mas há ainda mais. O leitor interessado encontrará artigos que, feito dardos, lançam perguntas fundamentais, tais como: “Com a universidade pública em descaso, é a sua reforma que precisamos discutir?”, “Por que atualmente se descarta com tanta facilidade o compromisso nacional que ‘toda’ universidade possui?”, “Como é possível que milhares de universitários brasileiros se dirijam, ano após ano, às universidades estadunidenses e européias e não percebam que as instituições que freqüentam e nas quais conquistam seus títulos são ‘universidades nacionais’?”.

Continuam, na obra, as problematizações, todas fecundas e fundamentais, abordando a relação crise da universidade, desafio digital e democratização do ensino (formação educacional para aprender a comprar ou para aprender a refletir?). Por fim, gostaria de destacar um artigo que, pela riqueza e seriedade de suas fontes, alcança o caráter de uma denúncia: “Ensino público e gratuito: a problemática dos cursos de pós-graduação ‘lato sensu’ e as fundações de apoio” (2). Você sabia, caro leitor, que há casos de professores que conseguem faturar cerca de R$ 70 mil mensais só com a remuneração recebida das fundações? E que há casos de alguns tão envolvidos com o oferecimento de cursos pagos fora da sede que chegam a ser substituídos pelos seus doutorandos que, como orientandos-professores, “eram remunerados pelas aulas ministradas!”?Para finalizar, faço minhas as palavras da professora Zilda M.G. Iokoi, da USP, responsável pelo prefácio: “Considero que este livro será muito significativo para o debate sobre a democratização da universidade, que, como puderam observar, é equivalente ao da democratização da sociedade”.

(1)A propósito, recentemente, em 21-09-05, a “Folha de São Paulo”, no Caderno Dinheiro, publicou a reportagem “Fosso – Brasil não só está entre os 4 países mais desiguais em estudo do Banco Mundial como tem mecanismos para perpetuar situação - Bird vê ‘armadilha da desigualdade’ no país”, p. B-1.
(2)Por uma questão de espaço e isonomia, não estou citando os autores do artigo, a exemplo de todos os demais que compõem o conjunto do livro.

Blog, território livre para cães


Essa vem do Espírito Santo! Che Catatau, o cão revolucionário de Abya Ayla, personagem criado por Leopoldo Nogueira a partir de Catatau, um cachorro que circula no Campus da UFSC, em Florianópolis, virou cão-propaganda de uma clínica! Catatau, que já era exibido, agora ficou muito mais, e ontem foi visto uivando para a lua numas macegas da UFSC!
Quem deseja saber mais sobre o peludo pode acessar http://fabulemicas.blogspot.com/

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Sinergia lança livro sobre sindicato e cultura

No dia 21 de novembro, quarta-feira, o Sinergia (Sindicato dos Eletricitários de Florianópolis) vai lançar o livro/revista Sindicato e Cultura. A obra aborda o papel do sindicato na atualidade e reflete sobre vários conceitos de cultura, abordando também o processo de construção do Sinergia em seus 17 anos de existência. O lançamento do livro/revista será às 18h30min, na Fundação Cultural Badesc, rua Visconde de Ouro Preto, 216, centro, Florianópolis.

Mészáros faz conferência em Florianópolis


Figadas de verão

Por Míriam Santini de Abreu, jornalista

Adoro a Serra Gaúcha no verão. Os caminhos para as colônias cheiram a uva, os parreirais amaciam a minha melancolia. É época de figos, também, e torço para que minha mãe e minha tia Nique mais uma vez façam figada.
Lembro do ritual, guardado nas memórias de infância:


Comprar uns 10 quilos de figo, o açúcar.
Moer. Despejar o fruto no tacho.
Mexer, mexer, horas a fio, com uma pá de madeira.
Que canseira, aquilo. A uvada é pior, as bolhas doces pulam, às vezes nas mãos.
Eu mexia uns 10 minutos e cansava. A mãe e a tia não cansavam.
Depois, despejar a pasta docemente viscosa nos potes de vidro.


O tacho, como dantes, continua a ser acomodado no canteiro. Negro por fora, dourado-escuro por dentro. E as minhas duas bruxas ali manejam a pá, naquele caldeirão doce. Eu gosto de olhar. E, depois, deslizar, com indolência, a fruta virada pasta num pão caseiro recém-saído do forno. Mas, nem que por uns minutos, eu também deslizo a grande colher de pau no fundo do tacho, preguiçosamente, só para poder dizer que também fui partícipe daquele ritual da colônia.

domingo, 18 de novembro de 2007

Trabalho pesado

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Volta e meia me pego pensando em uma notícia lida no final de setembro, “Bombeiros apagam incêndio que durou 180 anos em mina chinesa”. Dizia que a equipe especial de bombeiros trabalhava na extinção das chamas desde 1997, e que o fogo fora provocado aparentemente por mineradores que teriam discutido com seu capataz, na mina Rujigou --região autônoma de Ningxia-- no século 19. O incêndio consumiu 30 milhões de toneladas de carvão, cerca de 10% da reserva total da jazida, em quase dois séculos.
De tudo isso, tão inusitado, o que mais me chamou a atenção foi o fato de que, devido à alta toxicidade da fumaça, cada bombeiro só podia trabalhar no máximo 10 minutos seguidos, o que retardou as tarefas.
Dá para imaginar um serviço desses?
Um livro-reportagem a propósito do tipo de trabalho reservado para determinados grupos sociais é “Cabeça de Turco”, do jornalista alemão Günter Wallraff. Em 1983 ele publicou anúncio em jornais de seu país para procurar emprego, “mesmo que seja muito pesado e sujo, mesmo que paguem pouco”. E assim, meses a fio, ele se empregou disfarçado de turco, justamente para mostrar como a sociedade alemã tratava esses imigrantes. O capítulo no qual fala sobre suas atividades de limpeza em uma usina nuclear é terrível. O trabalho era terceirizado, e subempreiteiras pagavam miséria para que os operários se expusessem à radiação.
Em poucos dias, ou horas, às vezes até mesmo segundos, eles recebiam a dose máxima de radiação permitida por ano. Isso, no jargão nuclear, era chamado, segundo o jornalista, de colocar o operário para “queimar”. Ninguém era avisado sobre as seqüelas tardias que a radiação poderia provocar.
O trabalho de limpeza nas usinas siderúrgicas é igualmente terrível. Descrição de Wallraff:

Depois de uma hora de ofensas e tormentos, o “xerife” aparece e constata que é impossível prosseguir com essas ferramentas primitivas. Manda buscar perfuratrizes, brocas e compridas raspadeiras. Sem máscaras, voltamos a atacar a massa compacta, provocando nuvens de pó. Sob os constantes insultos dos dois chefes, rastejamos para o interior da máquina. O barulho estrondoso das perfuratrizes ecoa nos estreitos dutos metálicos, ensurdece-nos completamente. Protetor de ouvidos? Nunca ouvimos falar nisso... os olhos ardem, o nariz escorre, todos começam a escarrar. É o inferno! [...]
Os joelhos estão ensangüentados; as calças, esfarrapadas; as luvas de trabalho, despedaçadas. E a máquina de transbordo continua parada! Já faz treze, catorze, quinze horas que estamos aqui dentro, batendo com estas ferramentas pesadas e engolindo todo este pó [...]


Aos turcos, diz o jornalista, restam poucas alternativas além desse tipo de trabalho, caso queiram permanecer na Alemanha.
Sobre a questão do trabalho no mundo capitalista vale ler “O horror econômico”, da jornalista francesa Viviane Forrester, sobre o qual há várias resenhas na internet.
Há que se pensar que não é apenas o trabalho dito pesado que adoece as pessoas. Um caso ilustrativo é o dos bancários, cada vez mais acometidos por lesões por esforço repetitivo. E, se os sindicatos que representam esses trabalhadores fazem a luta necessária junto aos banqueiros, o mesmo não acontece em relação às milhares de pessoas que trabalham nas lotéricas, fazem serviço de bancário e tem representação legal frágil como categoria profissional. Assunto que vale uma grande reportagem.

Ah, os braços...

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Confesso que sempre fui preguiçosa para trabalho braçal. Acho que é por isso que tenho atração por braços, tanto masculinos quanto femininos. Adoro aqueles com musculatura sutilmente definida, uns bíceps sensualmente arredondados, resultado de trabalho muscular na vida cotidiana, não na academia. Há um trecho de uma música que adoro, “Quem Saberia Perder”, que diz:

“Vivo do que faz meu braço. Meu braço faz o que a terra manda.”

Ah, os braços...

terça-feira, 13 de novembro de 2007

O Cruzeiro na rede

A página Memória Viva, que está on line desde 20 de abril de 1998 , disponibiliza edições digitalizadas da revista O Cruzeiro, um marco do jornalismo brasileiro. É possível ver a capa da revista, entrar no sumário, escolher a matéria, ler na íntegra, ver as fotos tratadas, tudo como em uma revista digital atual. Acesse
http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

A tropa da elite não é invencível

Por Elaine Tavares - jornalista

“Pátria, minha patriazinha, tadinha. Lindo e triste Brasil”. Esta canção do Vinícius bem que se enquadra neste triste país, que, em 2003, perdeu a chance de fazer uma viragem. Não por nossa culpa. Votamos por mudança. Mas por medo daqueles que assumiram o poder e decidiram não tocar nas feridas. Apenas um curativo onde o sangue está escorrendo. A chaga seguindo intacta. O bonde da história perdido. Pequenas reformas que não levam à transformação.

Agora, nestes dias, duas temáticas têm invadido a patriazinha. Uma delas diz respeito ao filme “tropa de elite” e a outra, às declarações do prefeito do Rio falando sobre a necessidade da legalização do aborto, porque, segundo ele, as favelas são fábricas de marginais. Na verdade, os dois temas são faces de uma mesma moeda. A incapacidade da elite e da pequena burguesia de compreender o mundo real, das maiorias, onde a vida acontece na sua crueza. Vivendo em palácios, condomínios fechados ou mesmo em prédios de classe média, essa gente muitas vezes não tem a menor noção do que seja a vida mesma. A vida dos que nada têm, dos que são bombardeados diuturnamente pelas fábricas de mais valia ideológica, como as televisões e a indústria cultural.

A vida no sistema capitalista é pura dureza, mano. Nele, para que um viva no condomínio fechado, outro tem de morrer. Para que um tenha segurança, outro tem de morrer, assim por diante. Não há essa história de direitos iguais ou qualquer outra pataquada de igualdade de oportunidades. Os garotos negros, de favela ou não, ainda continuam sendo visto como pessoas “suspeitas”. As meninas negras seguem não tendo “boa aparência” para uma infinidade de posições no mundo do trabalho e as mulheres em geral ainda ganham menos que os homens fazendo a mesma coisa que eles. É a selva humana, onde nenhum tipo de solidariedade parece existir.

É por isso que me enoja o debate moral. Na patriazinha morrem, por ano, milhares de mulheres, por conta de seqüelas de abortos feitos por curiosas. E, ao fim, estas mulheres, já mortas, ainda são vistas como “assassinas de bebês”. Fico pensando se essa gente que faz o debate moral acredita mesmo que uma mulher acorde de manhã, com um feto no útero, e diga, sorrindo para o espelho. “Ai, que lindo dia, acho que vou fazer um aborto!” Não creio. Conheço muitas mulheres que fizeram aborto e todos os dias se flagelam de culpa. Mulheres que não tinham outra saída, que não tinham coragem, que não eram fortes o suficiente para agüentar tudo o que vem de se ter uma criança, sozinha, sem grana, sem amparo.

Quem de nós pode apontar o dedo para uma destas criaturas a chamá-las de assassinas? Quem de nós sabe das dores que essas mulheres carregam? Quem pode saber da quase incapacidade de enfrentar o mundo sozinhas, que dirá com um filho? Eu me recuso ao debate moral. Não conheço ninguém que se vanglorie de ter feito aborto. Só conheço profundas dores e me reservo ao direito de amparar essas mulheres em um longo abraço, para que não sofram mais do já padecem. Alguém pode até dizer que mulheres há que não se importam, que fazem aborto como quem come um mamão. Beleza. Pode ter. O ser humano é sempre surpreendente. Mas, com certeza são exceções, raríssimas.

De resto, se formos analisar as estatísticas, as “mulheres da favela”, como disse o Sérgio Cabral, não são as que mais fazem aborto. Não são mesmo. As mulheres empobrecidas, que vivem em comunidades empobrecidas, elas são fortes demais, e por isso não temem trazer à vida seus rebentos. Elas enfrentam com eles a fome, o medo, a impossibilidade. Elas rompem a vida, carregando seus filhos, com o poder de suas dores e de seus fardos pesados. Elas são as que fazem a raça humana andar. A “fábrica de marginais” não vem delas. A fábrica de marginais fica nos gabinetes dos que têm o poder fetichizado e que impedem que vida brote na sua inteireza. Dos que se apropriam das riquezas, dos que acumulam bens, dos que se adonam das terras, dos que escravizam gentes. A fábrica de marginais é de propriedade de uma elite predadora e insaciável. Eles são a tropa assustadora e renitente.

Enfim, não há ninguém em sã consciência que seja favorável ao aborto. O que se quer é que as pessoas pensem e possam compreender que, às vezes, neste mundo cão que é o mundo capitalista, pessoas há que tropeçam, que caem, que não são fortes o suficiente. E que se há alguma culpa aí, não é delas. A tropa da elite é a que manda. Ela é a assassina. Mas não é invencível como faz parecer o festejado filme. Existem momentos lindos em que as gentes se juntam e mudam tudo! E esses momentos acontecem. Sempre, inexoravelmente... sempre. Assim é!

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Lançamento é nesta terça!

O lançamento do número 9 de Pobres & Nojentas será nesta terça-feira, 6, às 19h, no Botequim, em Florianópolis. Confira ao lado a capa da edição!

Enfileiradas!


Salvem os canteiros!


Canteiro na rua Tronca, em Caxias do Sul, RS. Vento e rosas!

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

O dia dos mortos


Por Elaine Tavares - jornalista

Quando chega o final de outubro a Bolívia já se prepara para celebrar o dia dos mortos, uma festa cheia de cores, música e alegria. Porque para os povos andinos, ao contrário da tristeza que se vê nas sociedades ocidentais, este é um dia de profunda alegria. É que, segundo conta a sua cosmovisão, o dia dos mortos é o dia em que eles voltam a terra para ver como estão as coisas, encontrar parentes e viver momentos de comunhão e partilha. Daí a necessidade de toda uma preparação para que este dia seja o mais especial possível.

Na semana que antecede o primeiro de novembro as mulheres preparam os pães dos mortos, que são vendidos às centenas. São pães moldados como corpos, inclusive com as carinhas de homens e mulheres. Também são feitos pães em formato de escada e de cavalo. A escada representa a “chakan uru”, ou seja, a ponte que liga ao sagrado. Por ela, os mortos descem para vir visitar o mundo dos vivos. E é nela que, depois, voltam para o lugar onde agora vivem. O cavalo é o veículo que os mortos utilizam para ir de um lugar a outro, afinal, há muita gente para visitar.

Então, desde o dia 31 de outubro até o dia 02 de novembro, as famílias montam mesas que são altares. Nelas ficam os retratos dos mortos, os pães (os tantanwawa), água e toda a comida que os mortos mais gostavam. Junto às mesas, quando chega o meio-dia do dia primeiro, as gentes fazem cerimônias com as folhas de coca, que são sagradas para o povo andino. Reza-se e espera-se que os mortos desçam a escada para compartilhar as notícias do ano. Conforme conta Fernando Huanacuni, as famílias sempre conseguem detectar um sinal de que o parente está ali, partilhando. “Pode ser um bichinho que apareça voando, pode ser um vento, um raio de luz. O morto sempre avisa que está presente”.

A igreja católica também incorpora parte da simbologia dos povos andinos. A celebração dos mortos é no dia 02 e da mesma forma que os aymaras e quéchuas, os católicos também fazem pães no formato humano e montam altares. A visitação aos cemitérios segue a mesma lógica. No maior cemitério de La Paz , em Chamoco Chico , milhares de pessoas acorrem no segundo dia de novembro com suas tantanwawas (os pães), que depositam sobre os túmulos, numa festa de re-encontro.

Mas, apesar de a maioria do povo boliviano ainda prezar as velhas práticas da celebração dos mortos, já é possível perceber na grande La Paz , a lógica estadunidense do consumo desenfreado presente na celebração do Halloween (o dia das bruxas). Algumas lojas montam suas decorações com abóboras e bruxas e, em alguns lugares da cidade, as crianças são chamadas para celebrar o último dia de outubro fantasiadas de monstros e repetindo a velha frase: doces ou travessuras. É uma prática insipiente se comparada ao “winiapacha” mas já começa a levantar o debate. “Esta é uma celebração alienígena. Não tem significação para nós. É só a consolidação de um poder colonial. O Halloween não tem transcendência, não diz nada. É só comércio. Nossa gente vai saber guardar suas tradições como fez até agora”, diz Ruth Gonzales, que todo ano faz seus pãezinhos para a celebração dos mortos.

Na Praça de San Francisco, reduto popular dos mais importantes em La Paz , durante toda a semana que antecede o dia dos mortos, monta-se uma feira de tantanwawas. No meio, fica um altar com a foto do chamado “santo dos pobres”, Carlos Palenque. Este foi o homem que, na década de 80, conseguiu aglutinar as gentes originárias num grande movimento político - a Condepa (Consciência de Pátria) – que, caracterizando-se como um movimento nacionalista e originário, definiu o início de um pachakuti, ou seja, aquilo que hoje se vê como o novo movimento autóctone na Bolívia. Carlos Palenque e o Movimento Consciência de Pátria buscavam recuperar a dignidade perdida e a soberania das gentes autóctones, coisa que hoje se expressa com muito mais vigor na Bolívia do século XXI. Talvez por isso ninguém o esqueça, e seu retrato seja obrigatório nos altares do povo. Carlos Palenque, fundador da Rede de Televisão Popular, a RTP, que sempre deu vazão à vida e aos costumes populares, é considerado por muitos bolivianos como um santo. Mas, mais do que isso, ele abriu caminho para que aymaras e quéchuas se reconhecessem como povo soberano e começassem a construir uma nova Bolívia.

Naquele dia 02 de novembro de 2006, em meio a Praça San Francisco, altar das mais importantes lutas populares do país, entre as gentes que aguardavam seus mortos, brincamos todos ao som das cuecas e carnavalitos. A chuva fina que caiu a partir do meio dia foi o sinal. Ali estavam os nossos mortos, a bailar também, comemorando esse tempo novo, esse pachakuti (revolução) que está a se cumprir.

Um passeio pelo inferno

Por Elaine Tavares - jornalista

Chove a cântaros em Florianópolis. São seis e 15 da tarde e saio do trabalho como um bagaço. Foi um longo dia. A sombrinha comprada no camelô vaza água por cima e molha toda a minha cabeça. Aperto o passo para chegar logo à parada do ônibus. Mas, um motorista, dentro de um ônibus da Insular, passa a toda velocidade sobre uma poça de água e encharca a minha saia. Maldito! Não têm consciência de classe. Preparo-me para o calvário que me espera. Em Florianópolis ninguém fica menos de meia hora numa parada de ônibus.

Passam 35 minutos e eu ali, gelada e com ódio. Xingo os empresários dos transportes, os vereadores, o prefeito e toda a sua geração. O Volta ao Morro enfim passa e lá vou eu até o final da Carvoeira para pegar mais um ônibus - na famosa “integração” inventada por Ângela Amin - rumo ao Rio Tavares. A chuva não dá trégua. Já são sete e dez da noite e eu tenho de andar mais um pouco na chuva para chegar à parada. Começo a chorar, num ódio surdo deste transporte desintegrado, incompetente e ineficaz. Bate uma vontade de quebrar tudo.

Na parada do Rio Tavares se repete o martírio. São 50 minutos de espera sob a chuva. É inacreditável que se fique tanto tempo esperando um ônibus. Lá vem ele, enfim. Está lotado até a boca. Então, são duas opções: ou a gente se sujeita a essa indignidade do aperto, do empurra-empurra, do esmagamento, ou fica mais 50 minutos esperando o próximo. É coisa para enlouquecer qualquer um. E só o que se quer é chegar em casa. Grito de ódio e as pessoas na parada me olham como se eu fosse louca. E, enquanto grito, agoniada, elas vão entrando feito carneiros, no latão lotado. Não entro. Praguejo como um marinheiro. Já são oito horas da noite. E, pensar que da universidade onde trabalho até minha casa são apenas 20 minutos de carro. Toca a esperar.

A chuva segue, zombando. Os carros passam céleres e vazios. Às oito horas e trinta e cinco minutos aponta um outro Rio Tavares. Aleluia. Não está tão cheio e ainda restam bancos na parte da frente. Hesito em sentar ali porque pela lei de Murphy certamente se eu sentar logo vai entrar um idoso. E, nessas horas, todo mundo vira o rosto para a janela fingindo não ver. Eu não resisto. Minha herança cristã e o respeito pelos mais velhos afloram. Sempre cedo o banco. Por isso não sento na frente. Não gosto da idéia de levantar depois de ter posto o corpo para descansar. Mas, com aquela chuva, penso que os velhinhos não deverão sair de casa àquela hora. Sento.

Distraída, fico a olhar os bancos. Só então percebo mais um absurdo do transporte coletivo. Os bancos da frente que são reservados aos idosos e pessoas com necessidades especiais ficam sobre altos degraus. Não é estranho? Os mais velhos terem de subir ali, arriscando cair, uma vez que, por conta do horário que têm de cumprir, os motoristas parecem sempre carregar bois? Começo a resmungar e falo sobre isso com o cobrador que me olha curioso. Ele encolhe os braços, indiferente. Mais um sem consciência de classe. Mais ódio se acumula no meu ser.

São nove e quinze da noite quando chegamos ao terminal do Rio Tavares e só haverá ônibus para o Castanheira às nove e meia. Isso significa que só chegarei em casa lá pelas dez da noite. Continuo chorando enquanto as pessoas-cordeiros olham indiferentes. Mas, meu choro não é faniquito de pequeno-burguesa. Ao contrário. É ódio. “Ódio são”, como diria Cruz e Souza. Ódio da indiferença das gentes que se acomodam e não lutam. Enquanto outros, os que lutam, são chamados de baderneiros ou sofrem mutilações como aconteceu com o vereador Márcio de Souza. Ódio dos empresários e governantes que não estão nem aí para os seres que fazem a cidade. Viesse um gênio a ofertar-me desejos eu pediria que essa gente fosse obrigada a andar de ônibus por um ano inteiro. Queria ver se não mudava.

São quase dez horas quando chego em casa. Insanidade. Quatro horas no inferno. A chuva amainou e os gatos esperam no alpendre com seus olhos mansos. Na cozinha há uma luz acesa onde meus homens esperam. Dois sobrinhos-filhos e o meu amor. Estão secos e alimentados. Acolhem minhas dores e servem café quente. Só aí a vida parece fazer sentido. Lá fora, ruge a caldeira do diabo. Um diabo que tem nome.