quinta-feira, 29 de setembro de 2011

As enchentes em Blumenau

Por Elaine Tavares – jornalista

A imagem fala. Cercado pela água, um dos mais importantes cientistas de Blumenau, Fritz Müller, deve se perguntar: o que é que os homens fizeram dessa cidade? Primeiro comentador da polêmica obra de Charles Darwin, Müller, que vivia em Blumenau desde 1855, mandou para o cientista britânico uma pesquisa com crustáceos da ilha de Santa Catarina, na qual comprovava a idéia evolucionista do colega. Fritz Müller foi também o primeiro cientista a apresentar modelos matemáticos para elucidar a chamada “seleção natural”. Chamado por Darwin de “o príncipe dos observadores”, o cientista, que atuava como professor na cidade catarinense, acabou citado mais de dezessete vezes nas edições posteriores do “Origem das Espécies”, e manteve correspondência por longo tempo com Darwin. Mas, naquela primeira semana de setembro ali estava ele, em bronze, ilhado, impotente, vendo a cidade encher mais uma vez.

Quem também esteve ilhada por alguns dias foi a professora Catarina Gewehr. Morando no quarto andar ela não teve nada de seus pertences tocado pelas águas, mas, do alto da janela, sem luz, sem água, viveu o que descreve como um sentimento de “total desolação”. Catarina conta que para onde quer que olhasse ali estava a água, tomando toda a região próxima à FURB. “Foi a primeira vez que vivi uma enchente aqui em Blumenau. Não dá medo, não dá pavor, o que dá isso mesmo, uma profunda desolação. E é o que a gente vê nos olhos das pessoas por toda a cidade. Quando a água baixou e eu saí para a rua, tentando ajudar, esse era o sentimento que eu via em toda a gente. Desolação e resignação. Como se aquilo tudo fosse coisa natural, triste, mas natural”.

Na região de Blumenau, antes de chegarem os colonizadores alemães, viviam os Xokleng e os Kaigangs. Eram comunidades coletoras, de cultura simples, mas conhecedoras dos segredos da natureza da região. Como era comum aos indígenas da época, nos tempos de chuva eles se moviam para longe dos rios, pois sabiam que as divindades das águas avançariam pela terra afora, tornando fértil o vale e fazendo com que nascessem mais bonitos os frutos locais. A relação com a natureza era de conhecimento profundo e harmonia. Mas, todo esse equilíbrio se quebrou com a chegada dos primeiros imigrantes, trazidos para o Brasil com o objetivo de colonizar os “lugares vazios”. Só que esses lugares não estavam vazios e o processo que introduziu o homem branco – a maioria de famílias alemãs e italianas – foi de violenta destruição dos povos autóctones. Não bastasse o genocídio, as famílias que chegavam, no sonho de uma vida melhor, foram fincando raízes nas margens dos rios, expondo-se elas mesmas aos caprichos das divindades aquáticas.

Quando em 1850, o doutor Hermann Blumenau chegou ao vale para fundar uma comunidade, ninguém imaginava que o lugar iria protagonizar, sistematicamente, longas batalhas com o grande rio (Itajaí-açu). A primeira delas já foi no ano de 1852, quando, no mês de novembro, o rio passou dos 16 metros (a maior cheia até agora), segundo dados do Centro de Operação do Sistema de Alerta (CEOPS), da FURB (Universidade de Blumenau). Desde aí, até o ano de 2005 foram contabilizadas 68 enchentes, ficando de fora a tremenda tragédia de 2008, quando a cidade praticamente ruiu, e a última, do mês de setembro de 2011.

O que parece intrigante é que, se desde os primeiros anos da colonização até hoje, as enchentes se sucedem, por que não houve e nem há uma prevenção efetiva, de não ocupação das margens, para que as famílias não tenham de viver cotidianamente os horrores do alagamento? Ainda segundo o CEOPS, historicamente, sempre que acontecia um grande desastre por conta das águas, como nos anos de 1911, 1927, 1957 e 1983, o poder público discutia com mais afinco a questão, inclusive propondo medidas de prevenção. Mais isso só fervilhava no pequeno período pós-enchente, arrefecendo na medida em que a cidade voltava à vida normal. Assim, o que os pesquisadores da FURB observam é que, apesar do impacto das tragédias, a população e o poder público tendem a manter inalterada a disposição de usufruir das medidas de defesa contra as enchentes, porque, afinal, não querem arcar com os ônus políticos/econômicos/culturais que isso acarreta.

No que diz respeito aos morros também já existem dezenas de estudos que comprovam a fragilidade destes espaços na região – com alguns deles propensos a deslizar mesmo sem ocupação humana - e ainda assim os morros seguem sendo ocupados, com as pessoas sequer sabendo desse “detalhe”, uma vez que a própria mídia acaba não cumprindo o seu papel de divulgar esses estudos. Se houvesse uma política de informação, muitas famílias desistiram de comprar uma casa ou um sítio em lugares vulneráveis, ou ainda, lugares vulneráveis não seriam vendidos. Mas, os estudos feitos sobre enchentes ou deslizamentos só aparecem, re-nascidos das gavetas empoeiradas, sempre depois dos desastres, e para as gavetas voltam assim que a população vai retomando seu cotidiano.

Segundo o engenheiro florestal, e pesquisador do CEOPS/FURB, Julio Refosco, a cidade tem a seu dispor soluções estruturais, tais como canalizações, reflorestamento, recuperação das matas ciliares nas margens do rio. Mas estas são consideradas muito caras. Para se ter uma idéia, tão logo a cidade se recuperou da enchente de 1983, em 1986 foi finalizado um mapa, chamado de primeira carta-enchente, no qual estão bem delimitadas as áreas que são atingidas assim que o rio chega aos 8 metros. Esse seria um instrumento que deveria nortear as políticas públicas de longo prazo, mas acaba não sendo levado em conta. Julio lembra o exemplo de Curitiba que decidiu criar parques ciliares nas margens dos rios, fazendo assim um trabalho de longo prazo, mas verdadeiramente preventivo.

No caso de Blumenau sabe-se que esse tipo de ação seria bastante complicado. Há muita gente morando nas áreas próximas ao rio, seriam necessárias muitas desapropriações e, numa cidade onde o poder público não tem um plano bem claro para o desalojo, fica bem difícil para as famílias aceitarem sair do lugar onde vivem desde há gerações. Mas a pergunta que não cala é: o que acaba sendo mais caro, realocar as famílias ou viver essa tragédia a cada dois, três anos? Julio Refosco concorda que talvez fosse mais vantajoso para a sociedade blumenauense apostar numa solução de longo prazo, com uma mudança radical na estrutura da própria cidade, mas também argumenta o quanto isso pode ser difícil considerando a realidade concreta das pessoas.

Na enchente desse mês de setembro, quando o rio chegou a 12 metros, as áreas atingidas foram bem maiores do que as da carta-enchente de 1986 e novos instrumentos deverão ser construídos a partir dessa realidade. Mas, outros problemas se avolumam na margem ocupada do rio, como é o caso da margem esquerda. Ali, além da invasão das águas, quando o rio cresce, está acontecendo o problema da instabilidade do terreno. Quando em 1990 a região passou por obras paliativas da enchente, houve uma canalização do rio. Isso fez com que as águas aumentassem de velocidade, retirando sedimentos das margens e causando instabilidade. Um exemplo típico de uma intervenção emocional, sem visão de longo prazo. “Medidas como muro de contenção, por exemplo, não são indicadas, porque acabam provocando problemas ainda maiores” diz Refosco. Ele também avalia que proteger as margens do rio com vegetação seria o mais adequado. “É certo que isso não é coisa para se fazer num ano, precisaria de um programa de no mínimo 50 anos, para retirada gradual de casas e construção de parques. Isso teria de ser um programa que envolvesse educação ambiental, reordenamento geral da vida, uma coisa muito mais ampla do que tomar medidas emergenciais”.

O fato é que, como ensina a escritora canadense Naomi Klein, existe sempre um grupo bem pequeno de pessoas que lucra muito com a “política do desastre”. Quando ocorrem catástrofes de destruição de cidades, logo vêm as empresas de reconstrução que movimento milhares de reais em materiais, cimento, etc... Há gente que lucra muito com a desgraça alheia. Talvez seja por isso que os instrumentos de conhecimento que a cidade já produziu através de seus cientistas e pesquisadores permaneçam escondidos nas gavetas. Ou isso ou os administradores estão falhando, como bem lembra a professora Catarina. “Não dá para a gente viver acreditando que isso é natural. O poder público tem que se responsabilizar por essa situação. Tem que propor saídas concretas e não paliativas. Os estudos existem. Há todo um contingente de pesquisadores que produzem informação de qualidade, que propõe soluções. Mas não são levados em conta”. Ela lembra a própria Universidade de Blumenau, que tem uma histórica produção sobre as enchentes. Se as soluções definitivas requerem um redesenho na cidade isso deveria ser encarado como uma possibilidade, senão de agora, pelo menos do futuro. Um bom planejamento e vontade política podem mudar essa dinâmica de tragédia atrás de tragédia.

Por outro lado há que haver também um compromisso dos sindicatos e movimentos sociais da cidade em fazer esse debate de maneira mais profundo. O sistema capitalista de exploração da natureza já deu mostras do seu esgotamento. Ou se pensa a cidade de forma a atuar em harmonia com a natureza, ou ela vai seguir seu curso. E aí não será possível chamar a tragédia de uma desgraça natural. Ela é fruto da forma de ocupação pela qual se optou desde os tempos do Dr. Blumenau. A cidade está então colocada entre a cruz e a caldeirinha. Ou aceita a lógica de destruição/reconstrução permanente, ou se repensa, assentada em outra lógica, de uma vida segura em relação harmônica com o grande rio.

Segundo informações da CEOPS a prefeitura já chamou os pesquisadores para a feitura de uma nova carta-enchente, para saber quais espaços da cidade são alagados a 8, 9, e 12 metros. E o que se espera é que, em posse desses dados, a comunidade blumenauense, informada, possa decidir sobre seu futuro.

Agora vem aí mais uma Oktoberfest, a famosa festa que recebe turistas de todo o país. E, por conta dela, as ruas do centro e da região dos pavilhões já estão como novas, limpas e belas. As pessoas da cidade, conhecidas por sua fortaleza, se colocam em pé. Isso é bom, movimenta o turismo, traz dinheiro para a cidade, levanta a auto-estima. Mas, lá na frente, novas chuvas cairão, e o rio seguirá seu curso. Talvez fosse hora também de reinventar a cidade para que ali, sua gente pudesse bem-viver, sempre, e não só nos dias de festa.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

É tempo de celebrar! Feliz Primavera!

Elaine Tavares

Os povos pagãos, nas suas culturas, sempre me pareceram mais sábios. Eles tinham como costume celebrar a vida nos equinócios e solstícios, rendendo homenagens às estações. E isso não era coisa à toa. É porque cada estação traz com ela suas bênçãos. No girar desta bola azul, as comunidades vão experimentando a beleza do outono, a introspecção do inverno, a volúpia do verão e a alegria da primavera. É ainda nesse lento rodopiar que a terra e as gentes vão encontrando seu momento de plantar, colher, descansar e dançar.

Pois hoje, nesta nossa parte do mundo, é o equinócio da primavera. No ritmo das estações, tudo começa a vicejar. A voz dos passarinhos fica mais forte, as flores embestam a aparecer e, a despeito de todas as dores e lutas, também as pessoas parecem florescer em festa.

Aqui estamos nós no imenso jardim vendo cada coisa que plantamos no inverno, apontar pela terra afora. Então é hora de dançar a dança dos deuses, fazer “pago à Pacha Mama”, reverenciar Inti (o sol), saudar Ñanderu, o grande pai Guarani, que com Jacy e Kuaray tornam esse mundo tão belo. É tempo de dizer o nome da beleza para que ela nos tome inteira como crêem os Navajos.

Um dia, bem longe, os povos do leste invadiram nossa Tekoá (terra-casa) e soterraram a cultura autóctone, trazendo novo deus e desconhecidos santos. Mas, sempre é tempo de recuperar nossa condição primeira, de povo de Abya Yala, e retomar velhos rituais. A caminhada dos tempos já tratou de mostrar que na profusão de deuses e deusas que co-existem nas mais variadas culturas, o que fica como certeza final é de que esta terra é sagrada e cabe a nós cuidar para que ela siga firme, com saúde e um lugar bom de viver. A Eko Porã do povo Guarani(terra boa e bonita para todos) .

Esse tempo ainda não vingou, proliferam as guerras, as gentes precisam migrar de um lado para outro buscando sobreviver em meio à destruição do capital. Mas, em cada ser que vive, brilha a indefectível esperança. Dia virá em que todos poderão dançar para Inti, Pacha Mama, Viracocha, Quetzalcoalt, Istsá Natlehi, Wakan Tanka, Krisna, Jesus, braços dados, irmãos. E a terra será bela, e o banquete repartido. Paraíso. Socialismo. Eko Porã.

Enquanto isso, celebremos, pois. Os passarinhos nos chamam, as flores perfumam a vida e nós temos a obrigação de render graças. Porque nada no mundo pode ser melhor que caminhar na direção da beleza, da vida plena, da alegria, da Eko Porã. Em meio à tormenta, cantamos, dançamos e plantamos jardins porque confiamos, como Jeremias, diante da sua terra arrasada, que ainda vingarão flores neste lugar...

Feliz primavera! Viva Abya Yala...

terça-feira, 20 de setembro de 2011

CONGRESSO DA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS - II momento começa na quinta, dia 22

CONGRESSO DA CIDADE DE FLORIANÓPOLIS II momento

22, 23 e 24 de setembro de 2011

PROGRAMAÇÃO

Quinta feira, 22 de setembro de 2011

PARTE I

Local: Auditório do Fórum Distrital do Norte da Ilha - UFSC

Horário: 18:00/22:00h

18:00/ 19:00: Trabalho de Inscrições

19:00/22:00: Trabalho de abertura da mesa

Ângela Maria Liuti – UFECO - Oradora

Palestras de debates

Tema: Políticas Públicas Urbanas e a Gestão Democrática da Cidade

Palestrantes:

Daniel Montandon, Diretor de Planejamento Urbano , Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades

Verônica Kroll – Dirigente do Fórum dos Cortiços e Sem Teto de São Paulo, filiado à União Nacional de Movimentos de Moradia – UMN

Sexta feira, 23 de setembro de 2011

PARTE II

Local: Auditório do Fórum Distrital do Norte da Ilha - UFSC

Horário: 19:00/22:00h

19:00/22:00 – Palestras, Exposições e Debates

Palestras do COMINTER (Comitê Interuniversitário – UFSC, UDESC E UNISUL)

Tema Geral: PERFIL SOCIO CULTURAL E URBANO DA CIDADE

SUB TEMA 1: Perfil Geofísico

Prof. Luiz Pimenta – GEO/UDESC

SUB TEMA 2: Perfil Sócio Cultural

Profa. Cristiana Tramonte – CED /UFSC

Profa. Lígia Lüchmann – CFH/ UFSC

SUB TEMA 3: Questão Urbana e Habitacional – O Direito à Cidade

Prof. Lino Peres – ARQ/ UFSC

Exposição dos grupos setoriais

Tema 1: MEIO AMBIENTE E SANEAMENTO

expositores: Lise Torok – Câmara de Meio Ambiente e Saneamento do Fórum da Cidade - CMAS-FC

Gert Schinke – MOSAL

Tema 2: MOBILIDADE E TRANSPORTE URBANO

Expositor: Werner Kraus Jr - UFECO/Câmara de Mobilidade do Fórum da Cidade- FC

Tema 3: HABITAÇÃO E REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Expositor: Eleonora Cristina Kaczur - Fórum Social da Bacia do Saco Grande/Câmara de Moradia e Regularização Fundiária- FC

Tema 4: CONTROLE SOCIAL E GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE – PROBLEMATIZANDO OS CONSELHOS DE DIREITO

Expositor: Ci Ribeiro – Fórum da Cidade

Tema 5: SEGURANÇA PÚBLICA

Expositor: Carlos Thadeu Pires - CONSEGPANSUL / AMECOM

Tema 6: PLANO DIRETOR – NÚCLEO GESTOR

Expositor: Flávio de Mori – Representante Distrital Ratones no NGM-PD

Sábado, 24 de setembro de 2011

PARTE III

Local: salas no Centro Sócio Econômico - UFSC

Horário: 8:30/12:30h

8:30: inscrições e orientações de onde acontecerão os grupos.

9:00 / 12:30 - GRUPOS DE TRABALHO TEMÁTICOS

Discussão por temas em grupos temáticos

1-Meio Ambiente e Saneamento

2-Habitação e Regularização Fundiária

3-Mobilidade e Transportes

4- Plano Diretor – Núcleo Gestor / Autoconvocado

5-Segurança Pública

12:30 / 13:30 – almoço

PARTE IV

Local: Auditório do Fórum Distrital do Norte da Ilha - UFSC

Horário: 13:30/19:00h

Plenária: APRESENTAÇÃO, DISCUSSÃO E APROVAÇÃO DAS PROPOSTAS DOS GRUPOS DE TRABALHO E DELIBERAÇÕES

terça-feira, 13 de setembro de 2011

América Latina é o berço do novo

Elaine Tavares

O seminário “Novo Constitucionalismo na América Latina, Estado Plurinacional, Cosmovisão Indígena e Pluralismo Jurídico”, promovido pelo programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, deixou bem claro que, hoje, o que acontece na América Latina é o que há de mais interessante no campo do direito constitucional. As novas Constituições da Venezuela, Bolívia e Equador estão sendo esquadrinhadas por pesquisadores de todo o mundo, porque significam novos e originais aportes que mudam substancialmente as práticas jurídicas.

A professora Milena Peters, da Universitá Degli Studi Suor Orsola Benincasa, de Nápoles, Itália, mostrou que é a partir dos anos 80 que, na América Latina, começam as reformas constitucionais, visto que boa parte dos países entra na chamada transição democrática. “O que se vê é uma difusa adesão a uma forma de Estado Constitucional que expande os direitos humanos, os direitos fundamentais e aponta para novas garantias e novos significados”. As constituições abrem-se para o paradigma da liberdade e para o reconhecimento de ações positivas das minorias. Nos anos 90, esses direitos se ampliam mais ainda, atuando também no campo das garantias ambientais e direitos humanos.

Mas é a partir no novo milênio que começa a fluir uma nova linfa, trazida pelas transformações políticas de caráter popular na Venezuela, Equador e Bolívia. “Essas constituições são o novíssimo, o original”. Um dos elementos fundamentais dessas constituições é que elas nascem da mobilização real das gentes. São realizadas assembléias participativas, e o conceito “participação popular” torna-se real. “Essas constituições radicam-se na realidade histórica descolonizada, ligam a realidade global à local, tem um enfoque na solidariedade, atribuem valor à biodiversidade e sociodiversidade, reconhecem a cosmovisão indígena e garantem a efetiva participação popular”.

Milena lembra que a Constituição do Equador traz um capítulo inteiro de artigos que garantem a proteção da Pachamama, dando base legal a outro tipo de desenvolvimento que não seja predador da natureza. “É um aporte para toda a teoria constitucionalista. Muda tudo. Reforça o conceito de pluralidade que é a base das sociedades multiétnicas e dos estados plurinacionais. Toda a herança cultural é protegida, tantos dos indígenas como dos afrodescendentes. É um modelo peculiar de estado plurinacional e comunitário.” Para a professora, o projeto que emerge dessas novas Constituições é audacioso e bonito mas, também muito difícil de se concretizar. Não é sem razão que a Europa está de olho nesse processo, porque o que acontecer aqui na América Latina pode ter conseqüências mundiais no campo do Direito.

A professora Maria Rosario Valpuesta Fernández, da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha, lembrou que as Constituições não são apenas formas jurídicas, mas o resultado de processos políticos, daí a originalidade das novas Constituições que emergem na América Latina, fruto da mobilização e aceitação popular. “O que dizer dos EUA, há democracia por lá? É o estado que nomeia os ministros da Justiça, tudo depende do estado. E a Inglaterra? É uma monarquia. Uma loucura”. Segundo ela, a América Latina hoje está muito mais interessante do que a Europa. Aqui está vicejando o novo. Mas, apesar das mudanças ainda há muito por fazer no que diz respeito à desigualdade social. “para haver democracia de fato, isso tem de acabar”.

Maria Rosario acredita que a América Latina também precisa acertar contas com as suas elites uma vez que os governos pós-coloniais também fizeram muito mal. “Os mapuches, por exemplo, quem destruiu foram os chilenos e não os espanhóis. Nas guerras de independência os índios não contaram, no Peru não se fala em índio, mas sim em camponês. Então as elites locais também têm sua cota de responsabilidade”.

A professora espanhola argumenta ainda que é preciso observar com cuidado as demandas indígenas pois, “nem todos os índios são bons. Há os que vendem madeira, os que exploram outros índios. Tem gente boa e ruim, como em qualquer etnia. Não dá para romantizar”. Sobre a Bolívia ela aponta a ideia de Estado Plurinacional como uma novidade importante uma vez que garante cidadania a uma maioria que estava completamente excluída do processo político.

O professor Antônio Carlos Wolkmer, da UFSC, mostrou que o Constitucionalismo liberal cristalizou uma igualdade formal que, na prática, forja um estado de controle, sem democracia, com participação elitista e ausência das massas. Ou seja, coisa muito diferente do que se anuncia agora nas novas Constituições. No caso do Brasil, historicamente, o constitucionalismo tem sido sempre uma cópia, desde a primeira carta, em 1824, que reproduzia a Constituição francesa, incluindo aí o poder moderador. Depois, veio uma Constituição conservadora, centrada no direito dos proprietários, individualista, patriarcal, que vai até os anos 30 do século passado. A modernização impulsionada pela oligarquia desalojada do poder gera o estado corporativo, inspirado no fascismo, com controle dos sindicatos e alguns novos direitos sociais. Os anos 60, tempo da ditadura, trazem a doutrina da segurança nacional e só em 1988, sem o jugo da ditadura, a Constituição brasileira vai ampliar direitos.

A carta de 1988 não é a desejada, feita sem exclusividade e sem participação popular. Mas, ainda assim, ela avança em pontos como os direitos coletivos, direitos culturais, proteção aos povos indígenas e ao meio-ambiente. Wolkmer observa que, na relação com as novas Constituições da região andina, a brasileira ainda tem muito que avançar, principalmente no que diz respeito à participação popular.

O seminário mostrou ainda o quanto o novo movimento indígena tem sido importante na consolidação de novas formas de organizar a vida. A recuperação de formas históricas de solidariedade, cooperação, equidade e relação harmônica com a natureza, têm aberto uma cunha na lógica desenvolvimentista do capitalismo dependente que domina a América Latina. As comunidades indígenas assomam e dizem sua palavra, oferecem seus exemplos e formulam propostas que levam em consideração aspectos jamais observados pelos governantes de plantão. Muitas das novidades que tanto encantam o mundo europeu são as que foram incorporadas do mundo indígena e do mundo popular que, até então, nunca tinham sido levados em conta no processo de construção das cartas magnas. Agora, com essas comunidades, muitas vezes na liderança dessas ações, elementos como referendos populares, estado plurinacional e multiculturalidade se fizeram concretos e estão contemplados na lei.

É certo que tornar real o que a letra da lei escreve ainda é um grande desafio para os povos latino-americanos. A plurinacionalidade é um processo em construção, ainda multifacetado e informe, mas assim como as gentes dessa parte do continente lograram avançar no aspecto constitucional não cabe dúvidas de que serão também capazes de inventar as formas concretas de incorporar a lei ao seu cotidiano. Todos os dias, nas entranhas da Pátria grande, a vida avança. E, dessa vez, é daqui que saem as lições. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.

Três momentos do Divino Espírito de Santo Antônio de Lisboa


Nas fotos, dona Rosinha em dança típica e o jornalista Celso Martins fotografando o presidente da Associação do Bairro de Sambaqui, Rodrigues Viana, às voltas com a preparação das crianças para o boi de mamão.

Míriam Santini de Abreu

Primeiro Momento

A música ao longe é de festa. Mal desembarco do ônibus e paro em frente a um monumento de azulejos azuis - ao lado de uma vistosa luminária - que conta a história da então Freguesia, elevada a esta categoria em 27 de abril de 1750. Na Praça Roldão da Rocha Pires, esquina das ruas Cônego Serpa com Padre Lourenço de Andrade, há outra placa, sob uma árvore seca repleta de barba de pau, que informa: 21 de outubro de 1845, primeira rua calçada de SC. Santo Antônio de Lisboa, 11 de setembro de 2011.
Uns poucos passos adiante e está ali, num majestoso barroco, a Igreja Nossa Senhora das Necessidades. Vai começar mais uma atração da Festa do Divino 2011, a apresentação do grupo folclórico Raízes Açorianas, ligado à Casa dos Açores. Os cerca de 30 integrantes iniciam com o ritual de entrada “Caninha Verde”, e encerram com o ritual de saída “Lare”. Entre os dois, outras 8 canções que fazem bailar os pares, homens e mulheres, com seus trajes e danças, fazem o bailado típico de cinco das nove ilhas dos Açores entre os séculos 17 e 18. Às vezes calçam chinelos, sandálias, apenas meias de renda ou pés no chão.
Entre um volteio e outro aparece a bandeira dos Açores, branca, azul e laranja, na qual brilham um açor – ave de rapina – e nove estrelas representando as ilhas habitadas que compõem o arquipélago. Os casais se olham, sorriem um para o outro. O menino Bruno, de 8 anos, dança parte das músicas, com um chapéu preto sobre o rostinho branco de olhos verdes. Está com a mãe, Paula e o pai, Juliano. Bisavós de Paula vieram dos Açores.
Recordo do filme “Orgulho e Preconceito”, baseado em um livro de Jane Austen. Douglas Ferreira Gonçalves, integrante do grupo, me explica que, naqueles séculos, as festas eram lugares de cortejo, porque o desejo, o amor entre os que procuravam par não podiam se manifestar através de toques, a não ser nas celebrações. O Raízes Açorianas, formado por voluntários, formou-se em maio de 2010, incluindo integrantes vindos de outros grupos. Hoje, é o único, na Grande Florianópolis, a manter a tradição das danças típicas dos Açores. Mesmo as roupas, com exceção de duas, foram feitas na ilha, a mão e com tear. Para manter a tradição, o Raízes faz estudos em livros, na internet e mantém contato com grupos de outros municípios de SC e de outros estados.
Para 2012, eles preparam uma surpresa: “Vamos trabalhar com o folclore das ilhas dos Açores e também com o folclore ilhéu, a partir de releitura de contos de Franklin Cascaes, usando a dança contemporânea, mais teatral, para mostrar a eleição bruxólica”, diz Douglas. Outro projeto é encenar poemas de Cruz e Souza, ambos com apoio adicional da Fundação Franklin Cascaes. Quem não conhece Franklin Cascaes e Cruz e Souza deve, de imediato, se apropriar da beleza da obra de ambos para saborear as iniciativas planejadas para o próximo ano.

Segundo Momento

Rosa dos Santos Cruz, a dona Rosinha, de 76 anos, parece uma fada que se desenrolou das fitas da tradicional apresentação de Pau de Fita do grupo Olaria. Era para ser encenada por homens e mulheres, mas, segundo dona Rosinha, os homens não se estusiasmam muito, nem as mais jovenzinhas, para manter a tradição, então são mulheres que também envergam o traje de calça branca e camisa vermelha. Dona Rosinha, no seu vestido rosa, as sapatilhas brancas, o cabelo curto adornado por um arco, os delicados brincos de pérola, parece incrustada em um camafeu. Teve tempo apenas para me contar que dança o pau de fita há uns seis anos: “Quanto mais a gente dança, mais a gente gosta”, revela ela, com um sorriso. Mas no meio da conversa precisa correr, porque vai participar do desfile do Cortejo Imperial com a mesma faixa que havia usado no desfile anterior, a que tinha escrita a palavra “Fortaleza”, em alusão a um dos sete dons do Espírito Santo.

Terceiro Momento

Enquanto o professor e pesquisador Nereu do Vale Pereira lançava o livro “O boi de mamão – Folguedo folclórico da Ilha de Santa Catarina: introdução ao seu estudo” (2010), os visitantes ocupavam o Largo da Igreja para ver as figuras típicas deste folguedo, trazidas à festa pela Associação do Bairro de Sambaqui. Vinham o boi, os ursos, a bernunça, a maricota, as crianças de mãos dadas com os personagens, e em meio à brincadeira um cachorro preto tentava driblar os pés dos passantes. Virou personagem. Lindo de ver quando entrou a benzedeira que foi curar o boi: “Eu te benzo, meu boi, com galinho de alecrim”, começava a benzedura, que foi repetida duas vezes. Não saí de perto daquele espumoso mar de Santo Antônio de Lisboa sem visitar o cemitério, ladeado por altas árvores enredadas, encantada com o gesto de um homem que, no alto da igreja, tocava o sino para anunciar o Cortejo Imperial. Eu te benzo, Santo Antônio.

Assassinatos e desaparições são comuns em Honduras

Por Elaine Tavares - jornalista
Enquanto as emissoras de televisão brasileiras, seguindo a lógica da colonização mental, seguem mostrando, à exaustão, as feridas do atentado do 11 de setembro em Nova Iorque, nenhuma notícia é veiculada sobre o massacre cotidiano que acontece na pequena Honduras. O país da América Central sofreu um golpe de estado em 2009, apoiado pelo governo estadunidense que não queria ver o espaço que ele considera “seu quintal” entrar para órbita da Aliança Bolivariana para as Américas (ALBA), liderada por Hugo Chávez. Hoje, dois anos depois, comandadas por um governo títere, as mesmas forças golpistas seguem ceifando vidas dos lutadores sociais, sindicalistas, jornalistas, comunicadores populares e pessoas comuns que decidiram resistir contra o golpe.
Isso mostra que o golpe em Honduras, na verdade, continua em curso, mesmo depois da saída de cena dos militares e das eleições que levaram ao poder um novo presidente, Pepe Lobo. Até porque, a consulta popular contou com uma abstenção gigante e não teve qualquer candidato de esquerda. É que a população hondurenha, que foi às ruas dia após dia, durante o governo dos militares, não engoliu a “democracia” tutelada pelos golpistas. Até hoje o novo presidente não é reconhecido pelas gentes. A resistência popular insiste na volta de Mel Zelaya, no retorno a uma verdadeira democracia, sem a mordaça do regime militar, e sem a violência assassina que segue sem trégua.
Todos os dias somos informados de mais uma morte, como se o governo tivesse fotografado cada rosto nas passeatas, nas mobilizações, nos atos, e agora os caçasse. Um a um, os militantes vão caindo sob as balas ou sob estranhos acidentes como o que matou o conhecido cantautor José Daniel Gonzáles, conhecido como Jerônimo, de 57 anos, que fez de suas canções páginas de resistência. Ele foi atropelado em julho desse ano por alguém que fugiu e nunca mais foi encontrado.
Outro conhecido militante da resistência, abatido a tiros em sua própria casa nesse mês de setembro, foi o ativista Emo Sadloo, de nacionalidade suriname, mas vivendo há mais de 30 anos em Honduras. Emo foi atingido por cinco tiros, quatro no peito e um na cabeça. Ele era muito popular entre os resistentes, liderando muitas das marchas realizadas ao longo dos movimentos pelo fim da ditadura. Desde aí, a mídia hondurenha – apoiadora do golpe - vinha fazendo dura campanha pela deportação de Emo, acusando-o de “atos anárquicos” e etiquetando-o como “estrangeiro”. Só que além de levar 35 anos vivendo em Honduras, ser naturalizado legalmente, Emo tem dez filhos hondurenhos e, na luta, sempre se assumiu como hondurenho, na defesa da liberdade para ele e os seus. Agora, não há mais o risco de deportação porque o carismático ativista já está a sete palmos, sem que seus assassinos sejam conhecidos.
Um dia depois da morte brutal de Emo, também foi assassinado, na cidade de Puerto Cortés, norte de Honduras, o comunicador Medardo Flores, membro ativo da Frente Ampla de Resistência Popular (FARP). Assim como ele, outros radialistas e jornalistas seguem sendo perseguidos e caçados, até que tombam crivados de balas em algum beco escuro. Com a sua morte somam-se já 15 assassinatos só de jornalistas. Isso sem contar os desaparecidos que chegam ao número de 10, só nesse ano. É o que o jornalista hondurenho Ronnie Huete chama de “carniceria humana”.
Ninguém precisa ser muito inteligente para observar que todas essas mortes, acontecidas de maneira violenta ou simulando acidentes, são absolutamente encomendadas. Todos os mortos tiveram participação ativa nas mobilizações da resistência e continuavam a atuar na luta por uma Honduras soberana e democrática. Mas, as milícias paramilitares e os esquadrões da morte que se formaram no país, sob as vistas grossas do governo, seguem agindo sem pejo, à luz do dia, sem que o Estado tome qualquer atitude. O que é óbvio, visto que os assassinatos parecem emanar do poder constituído.
Da mesma forma que o Estado, a comunidade internacional também parece ter abandonado à própria sorte a população hondurenha que segue em luta. Com as eleições ao final do ano de 2009, mesmo não sendo as mesmas reconhecidas pelos hondurenhos, Honduras deixou de ser um foco de cuidado e notícias. Esquecidos pelos órgãos de direitos humanos e pela mídia internacional as pessoas que atuaram e atuam na resistência são alvos contínuos dos assassinos de aluguel e de seqüestradores, identificados – esses sim – como estrangeiros, ou como agentes do governo, uma vez que seguem toda uma logística oficial, embora não se vistam como força policial. Ao que parece, o governo não quer deixar vivo nenhuma pessoa que tenha tido participação firme na resistência. São mortes anunciadas e nada é feito para proteger a população. O terror é pílula diária no país, buscando calar pela força das armas o desejo de liberdade.
Assim, enquanto em todo o mundo se chora a dor dos estadunidenses – que lembram os 10 anos de uma de suas tragédias – esquece-se deste terrorismo cotidiano, perpetrado pelos aliados do governo estadunidense, porque, afinal, qual é o valor da lágrima de uma mulher hondurenha, comparada a de uma moradora de Manhattan?
De qualquer forma, com todas estas ameaças e violências reais, o povo hondurenho segue lutando. Jornalistas seguem falando, militantes continuam promovendo marchas e protestos. E, ainda que esquecidas pela mídia comercial, aliada impassível do poder, as gentes e as vítimas do governo de Pepe Lobo são lembradas e narradas pela imprensa popular, pelos movimentos sociais, os blogues e toda a sorte de outros meios de comunicação que tomam o mundo. O grito de liberdade que ecoa desde a pátria de Morazán chega até nós e o reproduzimos como um eco teimoso e insistente. Em Honduras, os lutadores estão morrendo, assassinados pelo Estado, mas, para cada um que cai, centenas se levantam... Não há força capaz de barrar o sonho da pátria livre.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Maricultura da UFSC lança dejetos na areia da praia da Ponta do Sambaqui


Celso Martins, Daqui na Rede e Sambaqui na Rede

A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) transformou parte da praça Macário da Rocha, na Ponta do Sambaqui, em Sambaqui, numa espécie de “pocilga”. A água usada na limpeza dos moluscos, de cor cinza, está sendo lançada na praia. Buracos feitos na areia recebem e encobrem os dejetos.

As fotos que acompanham a matéria foram feitas em 2 de setembro. Dois funcionários da unidade de maricultura da UFSC receberam com agressividade e deboche o Portal de Notícias Daqui na Rede, proferindo ameaças e soltando piadinhas, como: “Pega essa tua máquina e... vai tirar fotos de paisagens”.

Advertidos de que estavam contaminando a praia no ponto mais movimentado, ficaram mais nervosos ainda. “Desde quando água do mar contamina”, respondeu um deles com sarcasmo. O fato é a água escura escorre pela areia e deixa manchas de tonalidade cinza e, contaminada ou não, dão um péssimo aspecto ao local, como a própria estrutura da UFSC ali existente para a limpeza dos moluscos.

Festa do Divino Espírito Santo na Rede!

O Portal de Notícias DAQUI NA REDE informa estar realizando uma cobertura completa da Festa do Divino Espírito Santo e Nossa Senhora das Necessidades de Santo Antônio de Lisboa (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil), iniciada no último dia 3 e que se estende até 11 do corrente mês de setembro.

Reunimos uma equipe de repórteres, comentaristas, repórteres fotográficos e fotógrafos para, num trabalho voluntário, acompanhar e difundir os diversos momentos da festividade.

Caso aprecie a referida cobertura, solicitamos a divulgação do endereço. Se deseja contribuir a porta está aberta.

www.daquinarede.com.br

Todo Mundo Junto na luta por um mundo sem preconceitos

Marcela Cornelli

Nem o frio e a chuva em Florianópolis atrapalharam o acalorado debate “Mulheres de Luta” promovido pelo Sindes na segunda-feira, dia 29 de agosto. O debate foi realizado no auditório do Museu Cruz e Souza, no Centro da Capital, e reuniu militantes do Movimento LGBT, de direitos humanos, do MST, estudantes, dirigentes sindicais e filiados do Sindes. O objetivo do Sindes em chamar este debate, que abordou temas como homofobia e violência contra a mulher, foi trazer para o movimento sindical a discussão da necessidade da unificação da pauta com os movimentos sociais na luta contra o preconceito e por uma sociedade verdadeiramente mais igualitária. Porque, se queremos uma sociedade socialista e diferente desta em que vivemos a luta contra qualquer tipo de preconceito, o machismo e a violência precisam ser combatidos por todos.
Para debater com os participantes do evento, que também marcou o Dia da Visilibidade Lésbica, estiverem presentes as palestrantes Anahi Guedes de Mello, do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades (NIGS) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Kelly Vieira, coordenadora da Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade de Florianópolis (ADEH) e do Conselho Municipal de Saúde de Florianópolis; e Guilhermina Cunha Salasário, da Associação de Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade de Florianópolis da (ADEH), do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, do Coletivo de Mulheres da ABGLT e da Articulação Brasileira de Lésbicas (ABL).
Gulhermina Cunha Salasário fez um resgate de datas históricas que marcaram as conquistas e as lutas das mulheres como o Dia Internacional da Mulher (8 de março) e a criação do Dia da Visibilidade Lésbica (29 de agosto), que surgiu como uma forma de luta contra a lesbofobia e contra o machismo. A palestrante lembrou que somente nos anos 70, ou seja, há apenas 40 anos, a mulheres começavam a entrar para partidos e se candidatarem na política. “Hoje muitos dizem que os partidos têm dificuldade de preencher a cota para mulheres, mas esquecem que é tudo muito recente e que em 40 anos não se pode mudar toda a cultura machista da sociedade”. Ela lembrou também que foi no final dos anos 80 que, com a criação dos conselhos e delegacias especializadas nos direitos das mulheres, que o combate à violência contra a mulher ganhou mais visibilidade. “Não que isso não acontecesse antes, mas as delegacias de mulheres tornaram visível a violência sofrida dentro de casa. A violência contra a mulher tornou-se um crime. Antes pessoas famosas, como o caso do cantor Lindomar Castilho, assassinavam suas mulheres por ciúmes e nada acontecia. Com a criação da delegacias especiais as mulheres criaram coragem e começaram a dizer que estavam apanhando”, citou Guilhermina.
No entanto, a palestrante enfatizou que não é fácil para a mulher sair de casa mesmo depois de denunciar o marido pela agressão. “Não devemos julgar a mulher porque são variados os motivos que as levam a continuarem vivendo com os maridos agressores, tanto pela dependência financeira, quanto pela dependência emocional”.
Gulhermina lembrou que a criação de redes nacionais e internacionais como a Articulação Brasileira de Lésbicas e a Ilga (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneres e Intersexuais), entre outras instituições latino americanas e Caribenhas ajudam cada vez mais a dar visibilidade à luta contra a violência e o preconceito contra as mulheres.
A palestrante citou exemplos de países onde o preconceito chega a extremos como na Jamaica onde ser homossexual é considerado crime com pena de 10 a 15 anos de prisão; em países árabes onde a mulher considerada adúltera morre por apedrejamento e o mesmo tratamento recebem as lésbicas. No entanto, nestes mesmos países se a mulher passar por uma operação se transformando em homem, ai pode se casar. “Tudo é uma questão de cunho religioso”.
Guilhermina também lembrou que a Lei Maria da Penha completou 5 anos. “Não queremos mais leis para sermos melhores que os homens e sim queremos leis que nos permitam ter direitos iguais”.
“Em casos como o estupro, as mulheres precisam provar que foram violentadas e ainda precisam ouvir insinuações sobre a roupa que vestiam, o modo como se portavam e a linguagem que usavam. No Afeganistão 87% das mulheres são analfabetas, no Congo mais de 1.100 mulheres são estupradas diariamente, no Paquistão 90% das mulheres sofrem com violencia doméstica e homicidios por honra, na Índia 100 milhões de mulheres se envolvem com tráfico de pessoas e na Somália 95% das mulheres sofrem mutilação genital e isso são apenas alguns exemplos que foram possíveis de serem registrados graças ao trabalho de redes feministas, de direitos humanos e LGBT”.
A palestrante também chamou a atenção para o machismo velado e enrustido que existe no meio sindical. “Vemos muitas mulheres nas diretorias, mas quantas estão na presidência dos sindicatos? Muito poucas em todo país, talvez uma meia dúzia”, disse. No entanto, Guilhermina ressaltou a importância da realização de debates como este chamado pelo Sindes para quebrar tabus e trazer a discussão à tona, ampliando o debate que já existe no movimento LGBT para o movimento sindical e para toda a sociedade. “Os sindicatos tirarem esta discussão do gueto já em uma grande avanço”, ponderou.
Guilhermina também apontou outros dados como: 60% das mulheres que apanham em casa não são dependentes dos seu maridos; 28% de mulheres em São Paulo sofrem agressão em suas próprias casas. Em Santa Catarina, 65% das denúncias no Centro de Referência de atendimento de mulheres em situação de violência são por violência física doméstica sofridas dentro de casa pelos próprios maridos e/ou companheiro. Colocou ainda que nestes 5anos de lei Maria da Penha 80% das ocorrências são por violência doméstica, que 164 casos de mulheres traficadas foram denunciados; 1.050 foram mantidas em cárcere privado; e mais de 4 mil casos de denuncias são de ameaça de violência e/ou morte. “A mulher ainda se cala por medo ou vergonha. Precisamos mudar esta realidade em Santa Catarina e em todo o País”, finalizou.
Kelly Vieira, coordenadora da Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade de Florianópolis (ADEH) e do Conselho Municipal de Saúde de Florianópolis falou sobre os desafios do movimento LGBT. Para ela, um dos grandes preconceitos está na sexualização das coisas. “O movimento LGBT tem dificuldade de conquistar mais espaços, pois quando se fala sobre o tema, o que se vê é a sexualização da pessoa, não se vê o sujeito, a sujeita, além disso tudo, o que está ligado ao movimento é como se fosse voltado somente para questões sexuais". Kelly também chamou a atenção que no movimento LGBT a predominância é machista, “daí a necessidade do combate da invisilibidade Lésbica”. “Na sociedade ainda há muitos preconceitos. Você pode ser homossexual, mas se tiver traços mais femininos, isso já incomoda, ai você é chamado de bichinha, mariquinha, etc.”.
Na opinião da palestrante, os papéis do que é público e do que é privado na sociedade estão misturados. “Porque é importante saber o que se faz entre quatro paredes? Tudo está sexualizado”.
A palestrante também falou sobre o diferente tratamento que é dado para um gay e/ou lésbica na noite, em bares, “onde muitos casais heterossexuais os procuram, os acham atraentes, mas daí à luz do dia são objetos de chacota dessas mesmas pessoas, mostrando todo tipo de hipocrisia e preconceito que há na sociedade”.
Kelly afirmou que nos últimos anos as mulheres tiveram alguns avanços, mas ainda estão bem atrás dos avanços masculinos. Ela citou como exemplo a discussão e implementação de políticas públicas para a saúde feminina. “A plataforma da saúde para homens está 100% à frente da discussão para a saúde das lésbicas, por exemplo. A discussão sobre a AIDS entre as mulheres lésbicas nem saiu do papel ainda”, comentou.
Ela colocou ainda que a questão do machismo está também no movimento LGBT que “se apropria do excesso do poder do macho. Ainda precisamos que a luta das lésbicas dentro do movimento e fora dele também dialogue, como a luta dos gays, por exemplo, de igual para igual com os governantes, os ministérios em Brasília”. Kelly também chamou a atenção para as divisões e sectarismos dentro do próprio segmento e da necessidade da unificação das lutas e pautas de reivindicações para que o movimento tenha mais força. “Na sociedade precisamos olhar de igual para igual para todos e o movimento LGBT precisa ocupar espaços e acabar com a fragmentação para avançarmos na luta por igualdade”.
Além disso, quando questionada sobre possíveis avanços e/ou retrocessos no governo Dilma para o movimento LGBT, Kelly afirmou que o problema não está na receptividade dos governantes às reivindicações do movimento e sim no próprio individualismo da sociedade que não reivindica unida. “Cada um está preocupado em ganhar seu salário e ir para a sua casa, não existe a preocupação com o outro”.
A palestrante e pesquisadora do Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades NIGS/UFSC, Anahi Guedes de Mello, falou sobre a luta das mulheres lésbicas e portadoras de deficiência física e/ou mental. “Antes mesmo do preconceito por sermos lésbicas, temos que quebrar a barreira do preconceito da deficiência”, disse. “A imprensa não dá visibilidade a luta de gênero e principalmente quando se trata de uma mulher portadora de alguma deficiência. Houve um caso recente em que uma menina foi estuprada pelo pai, mas ninguém falou da irmã que tinha deficiência mental e também era violentada”, lembrou.
“As lésbicas, as feministas lutam pela legalização do aborto e da mulher decidir sobre seu próprio corpo, mas não falam do aborto seletivo ou permitido quando há anomalia fetal. A criança com deficiência já é excluída aí”. “A deficiência do corpo é algo que repugna a sociedade. Mulheres heterossexuais e/ou lésbicas e deficientes físicas e/ou mental são consideradas assexuadas, as mães não tratam do assunto sexo com elas. Isso é bem comum na nossa sociedade, como se por terem alguma deficiência fossem assexuadas”, ponderou Anahi.
A palestrante lembrou que até mesmo para fazer um exame de mamografia, os equipamentos atualmente utilizados dificultam a realização de exames para as mulheres com deficiência física. “Outro tipo de preconceito que enfrentamos é quando somos tratadas como crianças por nossos parceiros/parceiras e incapazes por termos alguma deficiência”, disse Anahi.
Ela colocou também a situação de muitas mulheres e meninas que são portadoras de deficiência física e/ou mental e são violentadas por seus próprios cuidadores, dentro de casa, por quem deveria ser responsável pelo seu zelo e cuidados.
Anahi também defendeu a unidade na luta dentro do movimento LGBT, do movimento feminista e de movimentos que lutam pela causa. “Nossa pauta de reivindicação deve ser unificada para que possamos avançar na luta contra o preconceito”.
O Sindes agradece às palestrantes e a todos que participaram e contribuíram com o debate e como diz nosso logo vamos seguir “Todo Mundo Junto” na construção de um novo mundo!
Fonte: Sindes