sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Um homem é do tamanho do que faz

Por elaine tavares - jornalista

Então, de repente, aquele que era todo energia, parou. O dínamo alucinado, a cabeça privilegiada, cheia de números, normas, resoluções. O homem de ação, do dedo em riste, da cobrança, da ironia. A locomotiva do movimento dos trabalhadores da UFSC, o que enfrenta ministro e os chama pelo nome, íntimo. O que dá de dedo em deputado, senador, presidente. O que não se apequena diante de coisa alguma. De um nada, assim, num final de ano, em plenas férias, parou.

No começo ninguém se deu conta. Era tempo de férias, normal que tudo estivesse calmo. Mas, quando chegou fevereiro, por todo o campus, faltava algo. O ar estava rarefeito, o brilho do sol estava fraquinho, e até a chuva torrencial parecia estar deslocada. O Catatau andava cabisbaixo, os passarinhos pareciam mudos e, lá pras bandas do Sintufsc, havia um silêncio. Aquele vento forte, furacão, Iansã masculina, não estava derrubando tudo pelas salas recém-reformadas.

Então, todo mundo foi se dando conta. O pequenino dançador não estava ali. Flechado por uma doença, estava no hospital. Doença grande, doença dura. E ele, o guerreiro, estava agora travando sua batalha pessoal. Enfrentando de peito aberto, corajoso como sempre foi. Dom Quixote contra os moinhos. “Não são moinhos, são gigantes, mas contra eles vamos travar uma longa e feroz batalha”. E assim é!

O nosso Assis, aquele que durante um bom tempo da vida andou por caminhos tortos na política. Mas, um dia, se achou. E viu que a vereda coletiva era a mais segura. E desde então, nunca mais foi o mesmo. Guerreiro. Xangô branco, implacável com os adversários e inimigos da classe trabalhadora. Generoso ser, cheio de ódios e amores sãos.

Então, enquanto luta como um bravo, vai ficando claro o tamanho do Assis. Que grande que ele é. De todos os cantos do país chegam pedidos de notícias, mensagens de carinho. Políticos, autoridades de todos os quadrantes, sindicalistas, povo do movimento popular, gentes comuns. Uma procissão de almas vibrando na energia para que o velho “compa” se levante e siga sua trajetória de luta e de generosidade. Que grande ele é. Quão grande ficou nesta decisão histórica de caminhar com os desvalidos da história. Que imensidão de figura que provoca tanta atenção, tanto amor, tantos desejos de bem.

O Assis está no hospital, ainda. Está lutando, com a mesma garra com que enfrenta as plenárias da Fasubra, as mesas do MEC ou o neoliberalismo. O Assis está lutando, com o mesmo riso de menino, os comentários cheios de pureza, e aquela alegria que transborda dos olhos azuis. O Assis está lutando e não está só. Com ele caminhamos nós. Os que somos companheiros, os que dividimos com ele o mesmo desejo de tempos de claridão. O Assis está lutando, e por incrível que possa parecer, é ele quem vai à frente. Grande. Imenso. Carregando todos nós.

Não tenho dúvidas de que vai vencer!

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Pobres & Nojentas número 11 logo estará nas bancas

Na próxima semana começa a venda do número 11 de Pobres & Nojentas! Os assinantes recebem a "nojentinha" em casa; ela também está à venda na banca da Catedral, no centro de Florianópolis, e na banca da UFSC. Um dos textos é sobre a Alda Lorenzi, vendedora de rosas em Caxias do Sul (RS). Veja um vídeo na conta de Pobres no You Tube:
http://br.youtube.com/watch?v=-wY3456Z1Xc

Aguarde! E assine!!!

Viagem ao Velho Mundo

Veja em http://www.viagemdeambersonerosangela.blogspot.com o relato da viagem de Rosangela e Amberson de Assis ao Velho Mundo. A Rô faz a diagramação da Pobres desde o primeiro número e, como todas as "nojentinhas", não recebe nada... Pelo contrário, paga!

Sem estrondo, sem suspiro

Míriam Santini de Abreu

Foi sem alarde que o Grupo RBS fechou o suplemento AN Capital, que circulava na Grande Florianópolis dentro do jornal A Notícia, com sede em Joinville, comprado em 2006 pela empresa gaúcha. Não é de causar espanto o silêncio da empresa; incomoda, sim, esse silêncio da sociedade, por assim dizer. Não se viu manifestação, cartaz, faixa, protesto. Nada. Somente o Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina e a Direção da Federação Nacional dos Jornalistas emitiram uma nota de repúdio, protocolar, que teve mais repercussão entre os próprios jornalistas.
O AN Capital tinha charme; começou em formato standard, depois virou tablóide; apesar de menor, oferecia notícias que o então concorrente, o DC, não dava. A falta de saneamento em vários bairros da Capital, a situação precária de escolas, as agressões à natureza por causa da especulação imobiliária, eram assuntos freqüentes no suplemento. Os textos muitas vezes fugiam do padrão dos manuais de jornalismo, sem aquela cara de “drops informativo” da maioria dos veículos impressos.
Na época da transação entre a RBS e os então proprietários de A Notícia, diz a nota da FENAJ, a redação contava com cerca de 30 jornalistas. Quando a empresa anunciou a última edição, em 31 de janeiro de 2008, alegando questões financeiras, havia apenas 12. Além de questão do desemprego de profissionais com experiência, outro fato lamentável é que a RBS consolida uma posição discursiva privilegiada: dona de emissoras de rádio, de tevê e de jornais, ela é a grande fonte de interpretação da realidade social, espacial, política, econômica, do Estado. Santa Catarina vai se ver pelos “olhos” da RBS, que vai consolidar uma certa memória das coisas a dizer, filmar e escrever sobre SC.
Mais do que isso, houve um “apagamento” de arquivos. Quando a compra do jornal A Notícia foi concluída, uma das medidas do novo proprietário foi fazer a migração do Portal AN, que tinha suas páginas indexadas no Google, o que permitia a pesquisa por tema ou palavra, para outro provedor, o que limitou a série histórica já consolidada. Segundo a página do Sindicato dos Jornalistas, "as matérias publicadas entre 1998 e o final de 2004 somente podem ser encontradas pela data de publicação, o que praticamente inviabiliza a pesquisa jornalística".
O fechamento do AN Capital e a falta de reação social ao fato revelam o quanto o mergulho na indiferença é fundo e sufocante. Nesse mundo de fluidez incessante, parece não haver tempo suficiente para festejar a vida do que nasce, lamentar a finitude do que morre e, mais do isso, expressar a revolta pelo que vai deixando de existir por causa do lucro e em nome do “negócio”. Nesse tempo sombrio, ninguém se ilude esperando um estrondo, mas é triste saber que as coisas, as vidas, os projetos, as idéias, morrem sem evocar nem mesmo um suspiro.

Para saber mais, leia o artigo "RBS expande seus domínios", escrito por Jacques Mick em 28 de agosto de 2007: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=448IPB002

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Participe do I Festival de Croniportagem de Abya Yala

A revista independente catarinense Pobres & Nojentas, buscando incentivar a produção de textos que retratem a vida real que viceja nas cidades de todo o país, realiza seu Primeiro Festival de Croniportagem de Abya Yala. Este é um gênero inventado pelas Pobres que mistura elementos da crônica, posto que focaliza o cotidiano, e também da reportagem, visando a profundidade e a análise.

São características da crônica, diz Massaud Moisés
, a ambigüidade, a brevidade, a subjetividade, o diálogo - que possibilita uma conversa imaginária com o leitor -, o estilo, entre o oral e o literário, a temática, sempre ligada a questões do cotidiano, e a efemeridade. A croniportagem aproveita, em maior ou menor grau, todos esses elementos, aos quais acrescenta dois atributos da reportagem jornalística: a entrevista e a contextualização. Os perfis, portanto, podem alimentar-se dessas características.

A idéia é convidar as gentes de todo o país e da América Latina a contarem uma história de seus lugares de vivência, seja o perfil de algum trabalhador ou trabalhadora, de um militante social, enfim, alguém que faça a diferença no cotidiano das suas vidas, ou ainda a história de algum lugar que seja significativo para a vida das cidades, e que congregue a vida real dos trabalhadores e trabalhadoras.

É sempre muito importante ter em conta que a revista tem um recorte de classe, ou seja, seu objetivo é expressar a vida dos empobrecidos, da comunidade das vítimas.

Para participar basta escrever um texto com no máximo três mil caracteres (com espaço), dentro das características da croniportagem e da proposta editorial, e enviá-lo, acompanhado de até duas fotos. Os textos serão publicados paulatinamente na revista impressa e/ou no blog, para fugir da lógica do concurso. No mundo que esperamos já estar vivendo com nossa prática cotidiana, não haverá perdedores ou não-classificados. Haverá apenas aqueles que querem se expressar e que encontram seu espaço. Os textos devem ser enviados à redação da Pobres até o dia 30 de março via correio eletrônico ou correio normal.

Participe e mostre a vida que acontece na sua cidade.

*Abya Yala - nome originário das terras invadidas por Colombo. “Terra do Esplendor” (na língua kuna).

Contatos:
eteia@gmx.net (elaine) ou misabreu@yahoo.com.br (Míriam)

ou


Revista Pobres e Nojentas
Rua Coruja Dourada, 914
Campeche
88.066.035
Florianópolis/SC

Assisviajantes V


Rosângela de Assis
As Ramblas de Barcelona são lindas, cheias de árvores, construções históricas, estátuas humanas, vendedores de flores e turistas, muitos turistas. Elas ligam o centro da cidade à beira-mar. E também podem te levar ao Mercado St. Joseph, La Boqueria, com suas frutas e peixes dispostos de forma ornamental, muito perfeitos e muito caros.
Foto: Amberson de Assis

Pequenos seres

Garça azul, cervo, taça. Matéria de vidro aprisionada na madeira.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Assisviajantes IV


Rosângela Bion de Assis
A luminosidade do fim de tarde deixou a Plaza Maior de Madri ainda mais linda. Estava friozinho e ficamos até o anoitecer apreciando as luzes, sons e imagens da Praça se transformando à medida que o sol se punha e a temperatura caía.

Foto: Amberson V. de Assis

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Baía de céu-água-rocha


Não há precisão de James Bond nem de uma Baía de Phang-Nga para deixar encantado esse céu-água-rocha num ponto de terra-mar da Ilha de Santa Catarina. Basta o pescador.
Imagem de Rogério Pedro dos Santos

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Clareia-te a ti mesmo


eu só poderia clarear o
inverno sombrio
se eu mesmo fosse o inverno
sombrio
Trecho de um poema de Fernando Karl. Sugeriu-me uma paráfrase: "Clareia-te a ti mesmo". Na foto, clareiam-se as negras nuvens no céu da Ilha de Santa Catarina. Para ler o poema completo, clique em http://nautikkon.blogspot.com/
Imagem de Rogério Pedro dos Santos

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Naufragados


O Farol de Naufragados, ao sul da Ilha de Santa Catarina. Muralha de pedra e mata vigiadas pela luz.


Crédito: Rogério Pedro dos Santos

Filhos do sumidouro

Míriam Santini de Abreu

Nas estranhas histórias de João Flávio, ambientadas em Vacaria, norte do Rio Grande do Sul, geralmente aparece uma tapera. Palavra originada do tupi, tem um significado peculiar - um regionalismo gaúcho - no dicionário Michaelis: "casa onde reina a tristeza ou em que não se nota o movimento do bem-estar moral ou material". Por causa dessas histórias, toda vez que eu passo por Vacaria, a caminho de Florianópolis, experimento um estranho encantamento. Talvez por saber que a quilômetros dali, a leste, ficam as misteriosas escarpas de Aparados da Serra, que até o ano passado eu não conhecia.

O pai volta e meia conta a história do sumidouro, ponto de um rio onde desapareciam animais. Pequena, eu imaginava que aquele seria o Triângulo das Bermudas vacariano, berço de insólitos fatos.

Quando, em 1992, voltava de minha primeira visita a Florianópolis, na Br-116, próximo de Vacaria, flagrei, por segundos, uma imagem que nunca esqueci.

O sol se punha, naquele adorável lusco-fusco da Serra. Havia, na beira da rodovia, uma colina suave, e sobre ela estava um homem a cavalo, duas sombras obscurecendo os últimos clarões vermelhos no horizonte. Meu coração saltou no peito. Pareciam dois visitantes de tempos imemoriais que, num átimo, materializaram-se naquele campo sulino. E partiram, homem e cavalo filhos do sumidouro.

Ouça mais uma história de João Flávio:

Crédito: Periodistas Pobres & Nojentas

Água ou asfalto?


Estranho diorama – animal, vegetal, mineral. O homem a cavalo vacila para atravessar: será água ou asfalto?
Foto de Rogério Pedro dos Santos

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Promessa de mudança!

Por Elaine Tavares – jornalista

Ele pareceria um rei, tamanha a beleza. A bermuda despojada, uma camisa em tom pastel e um boné surrado que gritava, em vermelho sangue, uma palavra muito pouco ouvida na universidade: favela. Ele era um, em meio a uma centena de jovens negros que lotavam o auditório da reitoria da UFSC para um dia histórico. O dia em que negros e negras, muitos deles empobrecidos, entraram na universidade, não para uma visita ou para servirem de objetos de estudo, mas para ser aluno, fazer um curso superior. É que, pela primeira vez, a UFSC destinou cotas para negros no seu vestibular de ingresso.

Na comissão de professores que atendia, um por um, os calouros, era visível a alegria e o orgulho de ver uma luta de anos, finalmente sendo concretizada na prática. Havia sorrisos, apertos firmes de mão e até abraços. Pelo auditório, passeavam outras cores, cabelos cheios de tranças ou dreads, colares étnicos, risos. Eram negros, centenas, e não aquela meia dúzia, em geral africanos, que a comunidade universitária está acostumada a ver pelo campus.

Eu penso que não deveria haver cotas para negros, nem para índios, nem para estudantes da escola pública. Mas, enfim, desde que a universidade surgiu existe uma reserva de cotas. É a cota dos que fazem cursinho pago. Dos que podem ter bons colégios particulares. Então, isso sempre existiu. E, já que existiam cotas para os ricos, é muito justo que exista também para os negros, para os índios e para os que estudam em escola pública. No regime excludente da universidade pública, estas cotas instituídas agora são muito justas sim. E podem gritar os racistas, os neonazistas, e todos os outros “istas” que existem por aí, enrustidos ou não.

É claro que a luta deve ser por escola para todos. Todo e qualquer ser humano que viva aqui nestas terras devia ter direito a uma universidade pública e de qualidade. Porque gratuita ela não é. Todos nós pagamos para que poucos possam ter uma formação. E até hoje, os empobrecidos, os negros e os índios (estes na sua maioria também empobrecidos) não tinham essa chance. Não conseguiam passar a barreira da cota dos cursinhos. Quem pode ter duzentos, trezentos reais, para pagar por mês um curso preparatório?

As cotas são um paliativo. Sim, são. Mas elas podem ser fermento de mudança, elas podem escancarar a chaga escondida do racismo. Ontem, na UFSC, eu vi. Aqueles garotos e garotas negros, sempre marcados pelo preconceito, pela exclusão, unicamente por conta da cor, agora estão dentro da universidade. Não que isso seja muita coisa. Não que seja bom para eles. É bom para a universidade, isto sim! Esta universidade racista, conservadora, por vezes reacionária, precisava se abrir ao outro, ao que sempre esteve fora por conta da sua condição econômica. Esta universidade precisa conviver com a gurizada que vem das escolas públicas, com as gentes das comunidades de periferia, com garotos como aquele do boné que grita: favela!

E tudo o que eu queria ver era esses garotas e garotas negros trazerem para dentro dos muros do campus sua música, sua cultura, suas raízes, seu riso, sua crítica, sua raiva, sua doçura, sua esperança, seu jeito de viver. E tudo o que eu quero é que eles não fiquem como a maioria dos universitários: apáticos, egoístas, ambiciosos, pensando só no mercado. Eu quero que eles possam revolver conceitos, inventar o novo. Eu fiquei olhando para eles, mergulhada em emoção e sonhando. Ainda são poucos, muito poucos, mas podem fazer um grande estrago. Sempre digo que a universidade, tal como é, precisa morrer. Há que nascer uma universidade diferente, capaz de pensar a vida real, capaz de caminhar nas estradas secundárias, capaz de construir uma nova sociedade. Não sei por que, mas creio que pode começar agora. Quando as gentes da periferia, os que estão excluídos da vida digna, os índios massacrados, entrarem e seguirem sendo eles mesmos, ajudando a inventar um tempo novo.

Assim, ontem, num átimo, me voltou a esperança...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Silêncio dos Inocentes


Míriam Santini de Abreu

A neblina na estrada de Florianópolis para Lages me faz lembrar de outra, a neblina em Caxias do Sul, quando, no inverno, às vezes é difícil ver algo a dois metros de distância. O mundo fica brumoso, distante. No inverno de 1990 a 1992, eu e meu amigo Samuel Frison o enfrentávamos diariamente quando o ônibus que nos levava a São Leopoldo para cursar Jornalismo terminava a viagem, já em Caxias, perto da meia-noite e meia.

Da parada até a rua onde a minha família e a dele moram até hoje eram cinco quadras. Vencê-las era um tanto tenebroso. O coração dava pulos no peito - escuridão, neblina, silêncio, e muito, muito frio, um pouco abaixo de zero algumas vezes. Eu fazia o trajeto todo com os pêlos eriçados de medo. Mas podia ser ainda mais assustador.

O Samuel é um conhecedor de cinema, e adorávamos conversar sobre filmes na viagem de ida e volta. Não sei como os outros passageiros - todos estudantes na Unisinos - nos agüentavam. Um dos filmes que volta e meia era alvo da charla incessante era O Silêncio dos Inocentes, no qual uma das personagens, o terrível Hannibal Lecter, comia suas vítimas, e ajuda a agente do FBI Clarice Sterling a capturar outro assassino.

Uma noite, enquanto eu tentava controlar os nervos na descida diária do ponto de desembarque até o final da rua Marechal Floriano, o Samuel chegou perto do meu ouvido e sussurrou, imitando a voz do canibal:

- Clariiiiccccce...

Eu dei um berro louco e corri em disparada, furando aquele espesso véu branco. Demorei semanas para perdoá-lo. E desde então, basta baixar uma neblina para que eu ouça aquele cicio entre dentes:

- Clariiiiccccce...

Um Táxi para a Escuridão

O jovem taxista afegão Dillawar, de 22 anos, estava com seus primeiros passageiros quando foi capturado por soldados dos Estados Unidos. Morreu dias depois na Base Aérea de Bagram. O corpo miúdo fora massacrado por chutes, principalmente nas pernas. Ele ficou horas a fio algemado no teto da cela. A história inicia o documentário “Um Táxi para a Escuridão” (Taxi to the dark side, Estados Unidos, 2007, 105 minutos, direção de Alex Gibney).
O trabalho mostra as torturas praticadas pelos estadunidenses na sua “caça aos terroristas” desde o 11 de setembro. Uma delas, a tortura pela sensação de afogamento, era usada no período da Inquisição, como revela a Mostra Internacional de Instrumentos de Tortura da Idade Média, que está no porão do Teatro Álvaro de Carvalho, no Centro de Florianópolis.
Na base de Guantánamo, em Cuba, a CIA e o exército desenvolveram e criaram métodos de tortura e testaram nos detentos. Os presos ali, sem direito a habeas-corpus e sem saber o motivo pelo qual haviam sido presos, tiveram corpo e mente moídos com a anuência do alto escalão do governo. Um dos detentos, sob tortura, disse que Saddam Hussein havia treinado a Al-Qaeda no uso de armas químicas. O documentário revela que uma pessoa torturada diz o que o torturado quer ouvir. E tudo o que os EUA queriam era um motivo para invadir o Iraque. Com ou sem provas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

100% verdureiro

Míriam Santini de Abreu
- Olha o verdureeeeeeeirooo! Olha a batata, a cenoura, o morango... Verdureeeeeeirooooo!
Era assim que se anunciava o verdureiro que, toda a semana, subia, em sua carroça, o beco - então uma buraqueira só - onde morava minha vó Antônia, em Caxias do Sul. Para mim, era o anúncio de delícia a ser mordida, porque a nona sempre comprava morangos. O verdureiro era o arauto dos vegetais, dos sabores por descobrir. A gente do beco da rua Olavo Bilac saia de casa, sacolas de náilon nas mãos - e ali, ao lado da carroça, se negociava o preço do quilo, regateio chorado. As vizinhas contavam de si, perguntavam do piá recém-nascido, do casal em lua de mel. Eu, gurizota, sete, oito anos - só queria saber dos morangos. E de ouvir, quando o cavalinho descia o beco, aquele fragor do mestre dos vegetais:
- Verdureeeeeeeirooo!
A foto acima, feita na
SC-282, me trouxe a lembrança e o prazer de ver alguém dizer de si: 100%
verdureiro!
Crédito da foto: Rogério Pedro dos Santos

Assisviajantes III


Rosangela Bion de Assis

O último dia em Barcelona começou com visita ao Parque Guell, planejado por Gaudi para ser um condomínio fechado, mas acabou ficando tão lindo que só duas casas foram construídas, uma delas a casa do próprio Gaudi, projetada por um colega seu. Impensável imaginar todos aqueles jardins, esculturas, mosaicos e recantos inusitados para o desfruto de poucos. A quantidade de pessoas que passeava pelo Parque era muito grande, não imagino como possa ficar esta cidade na alta temporada. Ainda no Parque compramos lembrancinhas da viagem e vimos um instrumento redondo, aparentemente indiano, do qual era possível tirar todas as notas, parecia um fundo de panela Yok, dessas de fazer comida chinesa, mas o som era reconfortante.
Passavam por nós legiões de turistas bastante idosos. Todos esses grupos possuíam guias, também bem idosos, que usavam objetos inusitados para se destacar na paisagem e serem vistos por todos os que deviam segui-los. Alguns usavam um guarda-chuva aberto bem levantado, outros uma vareta com quase dois metros de altura com uma flor na ponta, ou uma escultura de esponja bem colorida. Foto de Amberson Vieira de Assis

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Marquetingue


A Pobres e Nojentas é tudo o que você quiser, menos uma revista qualquer.


Inspirada sugestão de Fernando Karl, poeta e jornalista

Um nova padaria

Por Elaine Tavares

Florianópolis é uma cidade feita para ricos. Aqui, as ruas priorizam carros e o transporte coletivo é o pior do sul do país. Caro e ruim. Opções de lazer também quase não existem e ao pobre resta a praia, que tampouco é uma opção barata. Com o ônibus custando 2,50, ir e vir, para uma única pessoa, já custa cinco reais. Se for a família toda, aí a coisa pega. Tudo é difícil para quem não tem dinheiro.

Um encontro para o café no final de tarde, então, nem pensar. A gente sai do trabalho, já estressado pensando na maratona de ônibus que vai enfrentar até chegar a casa, e uma paradinha para o café com os amigos é coisa difícil de fazer porque os preços estão pela hora da morte. As confeitarias tiram o escalpo e um café chega a custar três reais, com um pão de queijo, já se vão seis reais. Nas livrarias chiques, tudo é bonito, há paz, mas os comes são caros. Aí não dá. As lanchonetes mais baratas são tumultuosas e a gente tem de comer em pé. Não há condições. A hora é de relaxar.

E foi na busca de um lugar barato para tomar café no fim da tarde que nós, “as pobres”, encontramos a Padaria Brasília. É uma padaria que fica bem em frente a Praça XV, tem bastante movimento de gente, lugar para sentar e um café mais um pão com manteiga ficam por 1,50. Perfeito. Enfim, tínhamos um lugar. E essa padaria acabou sendo nosso referencial para os finais de tarde. Passeatas, greves, protestos e passeios, tudo acabava ali, onde as atendentes, apesar de lentas, eram simpáticas e já conhecidas. Até a Pobres e Nojentas nasceu ali, naquelas mesas entre farelos de pão bem quentinho.

Pois um belo dia, tudo ruiu. Voltávamos de uma grande mobilização de trabalhadores que havia fechado a ponte e causado um grande engarrafamento na cidade. Tudo já tinha acabado e decidimos tomar café, para comemorar, e esperar acabar a confusão do trânsito para voltarmos para casa. Lá fomos nós para a Padaria Brasília. Desfrutávamos nosso café com pão, e falávamos excitadas, sobre a grande manifestação. Estávamos felizes, havia muito tempo não tínhamos tantos nas ruas, mobilizados e em luta. Então , um homem que estava na mesa ao lado começou a gritar com a gente. Estava indignado com o fato de não ter podido sair da cidade. Era de Tubarão e queria ir embora. Ficou trancado na cidade por conta do fechamento da ponte.

A gente tentou conversar, explicar os motivos dos trabalhadores estarem mobilizados, mostrar que ninguém gosta de trancar a ponte e apanhar da polícia. A gente faz isso para ser visto, ouvido, para reivindicar, quando ninguém mais nos escuta. Nada adiantou, o cara foi se alterando e já estava quase partindo para a porrada. Foi quando chegou a dona da padaria e passou a dar razão a ele. Basicamente a mulher estava nos enxotando. Não importava que fôssemos suas clientes de anos, que vivêssemos fazendo propaganda do seu café com pão, que a tivéssemos quase como uma velha amiga. Aflorou ali o seu pensar político. Ela também era contra as manifestações, os trabalhadores em luta e tudo mais. Ela também nos achava um bando de vagabundo, baderneiro e tudo mais que os conservadores pensam de gente que precisa lutar para poder viver. Foi o fim.

Saímos dali perplexas, chocadas, ainda ouvindo os gritos do homem. Acabava-se o sonho da padaria Brasília. Nunca mais poríamos o pé ali. Foram anos e anos de convivência quase diária e acabava assim, numa descoberta infeliz. A mulher dera razão a um cara lá de Tubarão, que nunca tinha entrado na padaria, que só tinha entrado ali para esperar a ponte abrir. A mulher era contra as lutas. Era contra nós. Pois ela nos perdeu. Saímos e batemos o pó das sandálias. Nunca mais voltamos.

Desde então iniciou nossa jornada em busca de uma padaria onde pudéssemos comer e conversar nos finais de tarde. Foram meses de procura pelo centro da cidade. Achamos algumas, mas sempre na lógica do lugar apertado e pequeno, onde não se podia sentar. Zanzamos pelo centro, pagando caro em lugares ruins, sonhando em encontrar algo que fosse, pelo menos, parecido com a padaria Brasília.

Um belo dia, já sem opções, arriscamos ir um pouco mais adiante, na rua do terminal velho, um espaço da cidade em que nada mais há, porque com a desativação do terminal de ônibus, aquilo virou um estacionamento. Fica um vazio de gente por ali. Pois eis que era bem naquele lugar que estava a surpresa. Uma padaria, barata e com mesinhas. Virou nosso ponto. As atendentes logo passaram a nos tratar como velhas conhecidas, já sabem nossos gostos, já sentem nossa falta quando demoramos. O rapaz do caixa, que gosta de cinema, também virou amigo, parceiro das conversas. Temos de volta um lugar seguro no centro de Floripa. Fica ali, quase em frente ao velho terminal, chama-se Empório. Serve pão quentinho, café delicioso e as garotas que atendem são um amor. As “pobres” tem um novo porto. Já a padaria Brasília, soubemos, fechou suas portas depois de quase meio século. O motivo: não sabemos, mas deve ter se rendido à especulação imobiliária. Sei lá. Agora também não importa. Já temos um novo amor!

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Desacato

Leia e assista na edição bilíngüe do Portal de 10 de fevereiro:

http://www.desacato.info/

O capital fictício pegou fogo, por Juan Luis Berterretche. Brasil
Pátria Armada Brasil, por Carlos Raulino. São José
Um tour pelo inferno, por Tali Feld Gleiser. Brasil
As crianças palestinas estão nascendo em Santa Catarina , por Urda Klueger. Blumenau
Era uma vez ... um circo, por Koldo. País Basco/República Dominicana
Tenho tanto pra te contar, mas não sei como, por Carola Chávez. Venezuela
A Colômbia que marchou, a que não marchou, e a que marchou contra os que marcharam, por Fredy Muñoz Altamiranda. Venezuela/TeleSUR
Guerrilheiro das FARC preso denuncia. Colômbia/ Anncol/MMRN/Telesur
O sangue vingado – a terra recuperada. O assassinato de Matias Catrileo. (VÍDEO) Chile
Para quem falou a viúva de Líber Seregni?, por Allisson Gabrielle. Florianópolis
Peruanos protestam contra lei que permite construção de hotéis em ruínas incas. Peru/TeleSUR
Toda arrogância será castigada, por Leonardo Boff. Brasil
10°44' 37” S 62°19' 23” W Save the Rainforest, por Marco Arenhart. Brasil
A deriva da esquerda italiana - Legislatura de curto alcance, por Gennaro Carotenuto. Brecha-Uruguai/Itália
A humanidade, além do capital, por Daniel Bensaid. Agenda Radical/França
O imperialismo suíço ou os segredos de uma potência invisível, por Sebastien Greoux, CADTM
Um mentiroso chamado Robert Ménard, por Raul Fitipaldi. Brasil
Inconsistência, por Vanessa Bortucan. Florianópolis
Numa barriga, numa praia, numa ilha, por Jacky Hinckel. São José
Malditas, benditas cidades!, por Miriam Santini de Abreu. Florianópolis
Assisviajantes, por Rosângela Bion de Assis. Revista Pobres & Nojentas. Toledo/Espanha
Hillary no samba com Obama, por Lady Marguerita direto de Nova Iorque. Site Sarcástico

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Descabelada

Palmeirinha descabelada à beira-mar, tonta de maresia, peixes agarrados às raízes, enoivados do vento. E ali, no banco mudo, concreto nu, repousa o invísivel segredo do mar, o invisível segredo da ausência.

Eternidad

Enriqueta Ochoa

La eternidad mece, ondula,
abre de par en par su túnica de viento;
en el espacio de su seno esplende
una constelación de luz acumulada.
El Padre la detiene. Un instante
mete su mano turbulenta hasta la entraña
y la abre sobre la piel del mundo.
Un alud de semillas caen, parpadeando.
Se fecunda la tierra. Cada segundo se fecunda.
El hombre entra a la prisión de su cuerpo
doblada la cerviz
y vuelve a tirar de sí, uncido al yugo de la vida,
hasta que aspira el Padre
y volvemos al seno de la Madre.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Reencuentro

Enriqueta Ochoa

Eres tú
la que atraviesa el silencio y las tinieblas.
Qué cerca estás al fin.
------------------- Tu sonrisa se abre sobre mí
como flor de cristal llovido.
Me refresca la paz de tus pupilas
y en los nervios me duele
no haberte amado todo lo que necesitas.
Ambas debieron haber crecido en mí
Como una sola espiga,
alumbrando mis pasos de indecisa gacela.
Siempre temí perderlos
y fue mi corazón entre dos puntos
como un compás abierto goteando hieles.
Pero esta noche tu ternura me salva los temores
y te reencuentro a través de mis manos
que presionan la frente en horas duras.
Y en mis pasos macizos,
------------------- y en las miradas húmedas.
Lo ves, lámpara que iluminas mi pecho intrincado:
ya no puedo perderlos
aunque nos medie la distancia
y un secreto dolor nos martirice.
Voy a enfrentarme al mundo tímida y confusa,
intuitiva y humilde.
Porque tal es el patrimonio
------------------- de tu sangre en mis venas.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Cidade... Maldita, bendita

Míriam Santini de Abreu

Há esses dias em que a Cidade, o espaço público da rua, nos comovem. Florianópolis continua cheia de turistas, que tiram fotos sem parar na Praça da Figueira, filmam os galhos retorcidos da velha árvore, se dão as mãos para completar voltinhas em torno do tronco nodoso e garantir um amor. Todos os dias, passo por ali. Às vezes há um rapaz vendendo uns homenzinhos-aranha miúdos, grudentos, que se colam nas paredes e deslizam por ela aos poucos; hoje vi um homem de calça e camisa social lambendo um picolé, encostado numa parede, como se nada mais existisse além daquele tubo gelado. Quanto prazer! Noutro dia a canção “Chiquitita” em espanhol, tocada por músicos latino-americanos, enchia a Praça XV, e eu, apressada, atrasada, parei para sentar num banco de pedra sob as árvores só para ouvir. Cidade... Maldita, bendita.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A hora da volta ao lar




Míriam Santini de Abreu

Li em uma Seleções do meio do século passado um artigo sobre a hora de final de tarde, “hora da volta ao lar, da esperança, da renovação”. Guardei esse trecho na memória. A revista, escondi tão bem que nunca mais encontrei. Também amo o final de tarde. Invejo quem acorda com o sol, quem é testemunha do instante em que os primeiros raios nos tiram da noite, mas, mesmo tendo vindo ao mundo às seis horas, acordar cedo não me dá prazer. O lusco-fusco, sim. Por isso gosto de voltar para casa no final de tarde e testemunhar o recolhimento das gentes, aquele frêmito, os passos apressados, o pão sob o braço. Fotografei e filmei o lusco-fusco no Parque de Coqueiros, na entrada da Ilha de Santa Catarina. Lindo, suave, vital.

Crédito: Periodistas Pobres & Nojentas

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Nós no Desacato!

Míriam Santini de
Abreu passa a colaborar, a partir deste domingo, com o portal Desacato. Elaine Tavares já colabora desde o lançamento do
portal, ano passado. Belo e bilíngüe, esse Desacato! Míriam e Elaine
são editoras da Pobres & Nojentas.
O endereço do portal é http://www.desacato.info/

Solaris

Míriam Santini de Abreu

Impossível terminar a leitura de Solaris, de Stanislaw Lem, sem um nó na garganta. É ficção científica da melhor qualidade, e uma reflexão aguda sobre as “sedes” que a espécie humana não consegue saciar. Na história escrita pelo polonês em 1961, o “outro”, o alienígena, não é um ser com forma mais ou menos humana, engraçada ou assustadora. É completamente diferente: em vez de “homenzinhos verdes”, um gigantesco oceano de plasma pontilhado de ilhas é que se estende por toda a superfície de Solaris.

Quando o astronauta Kelvin chega ao planeta - que é um quinto maior que a terra - para um missão, encontra desordem na estação espacial e nos terráqueos que nela habitam. O caos é material e psíquico. Um dos homens morreu, outro parece não reconhecê-lo e um terceiro se recusa a manter contato com outros seres humanos. Não precisa muito tempo para Kevin entender o motivo do horror de seus companheiros. Ele descobre que o planeta tem duas formas de se comunicar com os visitantes da Terra. Uma é criar gigantescas formas de plasma que recebem nomes como mimóides e simetríades. Outra, muito mais inquietante, é materializar os pensamentos dos humanos. O astronauta Snow resume bem o significado dessa forma de comunicação do oceano de Solaris: “Portanto, você compreende que devem existir coisas... situações que ninguém ousa materializar e que o pensamento engendrou de maneira acidental, num momento de loucura, de alucinações, chame como quiser. Na etapa seguinte, a idéia se materializa. É isso".

O leitor do livro tenta imaginar qual o pensamento que mais tentou enterrar, que mais desejou não ter pensado... Pode ser o puro horror, a pura beleza. Pois os personagens da história precisam enfrentar ou esse horror, ou essa beleza, plenamente materializados na estação Solaris. Seria isso um presente do oceano para os humanos que o visitam? Ou uma forma brutal de vingança?

Num tempo em que astronautas de verdade consertam naves em pleno espaço, que sondas construídas pelos humanos chegam a planetas distantes, outra reflexão do personagem Snow é reveladora:“Só nos interessa o homem. Não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos. Não sabemos o que fazer dos outros mundos. Um único mundo, o nosso mundo, nos é suficiente, mas não o aceitamos como ele é. Procuramos uma imagem ideal do nosso próprio mundo. Saímos à procura de um planeta, de uma civilização superior à nossa, mas desenvolvida na base do protótipo do nosso passado primitivo”.

No livro, a incapacidade de compreender o planeta e sua forma de vida tão diferente leva os astronautas a pensarem em destruí-lo. Os três homens reproduzem em Solaris o que, na Terra, geralmente caracteriza o olhar e o modo de agir na relação com o diferente. A história de Stanislaw Lem foi filmada pelo russo Andrei Tarkovski (1971) e pelo estadunidense Steven Soderbergh (2002). Nesse último, disponível nas locadoras, o papel principal é de George Clooney. Mas o livro é bem mais desconcertante.

STANISLAW LEM. SOLARIS. RIO DE JANEIRO: RELUME DUMARÁ, 2003. 269 PÁGINAS.

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Guri de Vacaria

Míriam Santini de Abreu

Lá em casa, nos tempos de guriazinha, ficar em volta da mesa depois do jantar era motivo para meu pai, João Flávio, contar histórias estranhas de Vacaria, município onde ele nasceu e morou na juventude. Lugar frio, no Nordeste gaúcho, com umas paisagens de amplidão desconcertante. Ele sempre começava cumprindo um ritual. Alisava a toalha da mesa e, com a ponta dos dedos, ia afastando para os lados as migalhas de pão. E bastava que se distraísse para o César, irmão do meio, jogar mais uns pedacinhos de miolo e dar início a novos piparotes. O João, para nosso secreto divertimento, nem desconfiava.

Um dos episódios preferidos do pai, até hoje, é a tal pedrinha que dava três pulos seguidos de uma corrida no teto de tabuinhas da casa da família e sumia no escuro. O mistério se estendeu por anos a fio, até que um padre fez benzedura e nunca mais se ouviu o tal barulho. E havia também um gemido de mulher, que começava próximo da fazenda de um certo Jaques e sumia na noite, lá pelos lados do olho d´água. Uma das histórias que mais nos inquietava era a do fervedouro. Segundo o pai, nesse lugar, no meio do rio, volta e meia sumia gado. Ao menos, era o que há tempos contava o pai do pai, o meu vô, que também se chamava João. Eu supunha se tratar de uma versão vacariana do Triângulo das Bermudas. Imaginava um bezerro desesperado sendo sugado pela água e levado para outra dimensão. Tinha calafrios só de pensar.

Entre um mistério e outro, João Flávio contava da infância pobre. Vivia, segundo ele, com os pés craquentos e as pernas assadas, parecendo salame, por causa do hábito de esquentar o corpo no calor do fogo-de-chão e depois ir para o sereno. Botou o primeiro sapato aos 14 anos.

Num sábado desses, liguei para ele, que sempre me saúda com um esticado “Ôôôôô, fia!!!”. Contou que estava mesmo pensando nos tempos de guri, quando tudo o que desejava era ter um carrinho. Ouviu falar, então, de uma tal de tia Barda, que trabalhava num centro espírita e distribuía brinquedos para as crianças pobres. “Fui três vezes procurar o lugar, mas nunca descobri onde era”, lamentou ao telefone, ao que respondi: “Bom, vou te dar um carrinho de aniversário, fazer de conta que sou a tia Barda!”. Mas o pai foi enfático: “Não, fia, não quero mais carrinho! Agora, só quero carinho!”

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Assisviajantes II


Rosangela Bion de Assis

Toledo parece um imenso cenário de cinema. Esta cidade medieval, que já foi a capital da Espanha, tem ruelinhas charmosas e estreitas, por onde mal passa um carro, construções baixas de pedra ou tijolinho, com sacadinhas minúsculas. As ruas são também revestidas por pedras. Lá conhecemos os mazipãs, que são pãezinhos doces com um toque alcoólico, e vimos armaduras, facas e espadas de todos os tamanhos e modelos. E neste cenário passavam as pessoas que lá viviam. Quando sentamos na praça para descansar vi um grupo em trajes de festa, pareciam ter saído de um casamento e seguiam para o almoço. Incrível imaginar que numa cidade assim mágica viviam pessoas que já não se encantavam mais com aquelas pracinhas minúsculas no tamanho, mas imensas na beleza e na riqueza de detalhes. Foto de Amberson Vieira de Assis