Míriam Santini de Abreu
Lá em casa, nos tempos de guriazinha, ficar em volta da mesa depois do jantar era motivo para meu pai, João Flávio, contar histórias estranhas de Vacaria, município onde ele nasceu e morou na juventude. Lugar frio, no Nordeste gaúcho, com umas paisagens de amplidão desconcertante. Ele sempre começava cumprindo um ritual. Alisava a toalha da mesa e, com a ponta dos dedos, ia afastando para os lados as migalhas de pão. E bastava que se distraísse para o César, irmão do meio, jogar mais uns pedacinhos de miolo e dar início a novos piparotes. O João, para nosso secreto divertimento, nem desconfiava.
Um dos episódios preferidos do pai, até hoje, é a tal pedrinha que dava três pulos seguidos de uma corrida no teto de tabuinhas da casa da família e sumia no escuro. O mistério se estendeu por anos a fio, até que um padre fez benzedura e nunca mais se ouviu o tal barulho. E havia também um gemido de mulher, que começava próximo da fazenda de um certo Jaques e sumia na noite, lá pelos lados do olho d´água. Uma das histórias que mais nos inquietava era a do fervedouro. Segundo o pai, nesse lugar, no meio do rio, volta e meia sumia gado. Ao menos, era o que há tempos contava o pai do pai, o meu vô, que também se chamava João. Eu supunha se tratar de uma versão vacariana do Triângulo das Bermudas. Imaginava um bezerro desesperado sendo sugado pela água e levado para outra dimensão. Tinha calafrios só de pensar.
Entre um mistério e outro, João Flávio contava da infância pobre. Vivia, segundo ele, com os pés craquentos e as pernas assadas, parecendo salame, por causa do hábito de esquentar o corpo no calor do fogo-de-chão e depois ir para o sereno. Botou o primeiro sapato aos 14 anos.
Num sábado desses, liguei para ele, que sempre me saúda com um esticado “Ôôôôô, fia!!!”. Contou que estava mesmo pensando nos tempos de guri, quando tudo o que desejava era ter um carrinho. Ouviu falar, então, de uma tal de tia Barda, que trabalhava num centro espírita e distribuía brinquedos para as crianças pobres. “Fui três vezes procurar o lugar, mas nunca descobri onde era”, lamentou ao telefone, ao que respondi: “Bom, vou te dar um carrinho de aniversário, fazer de conta que sou a tia Barda!”. Mas o pai foi enfático: “Não, fia, não quero mais carrinho! Agora, só quero carinho!”
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