quinta-feira, 29 de julho de 2010

Jornalista está cada vez mais doente

Por Elaine Tavares – jornalista


O psicólogo, professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas, Roberto Heloani, conseguiu levantar um perfil devastador sobre como vivem os jornalistas e por que adoecem. O trabalho ouviu dezenas de profissionais de São Paulo e Rio de Janeiro, a partir do método de pesquisa quantitativo e qualitativo, envolvendo profissionais de rádio, TV, impresso e assessorias de imprensa. E, apesar de a amostragem envolver apenas dois estados brasileiros, o relato imediatamente foi assumido pelos delegados ao Congresso dos Jornalistas de Santa Catarina – que aconteceu de 23 a 25 de julho - evidenciando assim que esta é uma situação que se expressa em todo o país.

Segundo Heloani, a mídia é um setor que transforma o imaginário popular, cria mitos e consolida inverdades. Uma delas diz respeito à própria visão do que seja o jornalista. Quem vê a televisão, por exemplo, pode criar a imagem deformada de que a vida do jornalista é de puro glamour. A pesquisa de Roberto tira o véu que encobre essa realidade e revela um drama digno de Shakespeare. Nela, fica claro que assim como a mais absoluta maioria é completamente apaixonada pelo que faz, ao mesmo tempo está em sofrimento pelo que faz, o que na prática quer dizer que, amando o jornalismo eles não se sentem fazendo esse jornalismo que amam, sendo obrigados a realizarem outra coisa, a qual odeiam. Daí a doença!

Um dado interessante da pesquisa é que a maioria do pessoal que trabalha no jornalismo é formada por mulheres e, entre elas, a maioria é solteira, pelo simples fato de que é muito difícil encontrar um parceiro que consiga compreender o ritmo e os horários da profissão. Nesse caso, a solidão e a frustração acerca de uma relação amorosa bem- sucedida também viram foco de doença.

Heloani percebeu que as empresas de comunicação atualmente tendem a contratar pessoas mais jovens, provocando uma guerra entre gerações dentro das empresas. Como os mais velhos não tem mais saúde para acompanhar o ritmo frenético imposto pelo capital, os patrões apostam nos jovens, que ainda tem saúde e são completamente despolitizados. Porque estão começando e querem mostrar trabalho, eles aceitam tudo e, de quebra, não gostam de política ou sindicato, o que provoca o enfraquecimento da entidade de luta dos trabalhadores. “Os patrões adoram, porque eles não dão trabalho”.

Outro elemento importante desta “jovialização” da profissão é o desaparecimento gradual do jornalismo investigativo. Como os jornalistas são muito jovens, eles não têm toda uma bagagem de conhecimento e experiência para adentrar por estas veredas. Isso aparece também no fato de que a procura por universidades tradicionais caiu muito. USP, Metodista ou Cásper Líbero (no caso de São Paulo) perdem feio para as “uni”, que são as dezenas de faculdades privadas que assomam pelo país afora. “É uma formação muitas vezes sem qualidade, o que aumenta a falta de senso crítico do jornalista e o torna mais propenso a ser manipulado”. Assim, os jovens vão chegando, criando aversão pelos “velhos”, fazendo mil e uma funções e afundando a profissão.

Um exemplo disso é o aumento da multifunção entre os jornalistas mais novos. Eles acabam naturalizando a idéia de que podem fazer tudo, filmar, dirigir, iluminar, escrever, editar, blogar etc... A jornada de trabalho, que pela lei seria de 5 horas, nos dois estados pesquisados não é menos que 12 horas. Há um excesso vertiginoso. Para os mais velhos, além da cobrança diária por “atualização e flexibilidade”, há sempre o estresse gerado pelo medo de perder o emprego. Conforme a pesquisa, os jornalistas estão sempre envolvidos com uma espécie de “plano B”, o que pode causa muitos danos a saúde física e mental. Não é sem razão que a maioria dos entrevistados não ultrapasse a barreira dos 20 anos na profissão. “Eles fatalmente adoecem, não agüentam”.

O assédio moral que toda essa situação causa não é pouca coisa. Colocados diante da agilidade dos novos tempos, da necessidade da multifunção, de fazer milhares de cursos, de realizar tantas funções, as pessoas reprimem emoções demais, que acabam explodindo no corpo. “Se há uma profissão que abraçou mesmo essa idéia de multifunção foi o jornalismo. E aí, o colega vira adversário. A redação vive uma espécie de terrorismo às avessas”.

Conforme Heloani, esta estratégia patronal de exigir que todos saibam um pouco de tudo nada mais é do que a proposta bem clara de que todos são absolutamente substituíveis. A partir daí o profissional vive um medo constante, se qualquer um pode fazer o que ele faz, ele pode ser demitido a qualquer momento. “Por isso os problemas de ordem cardiovascular são muito frequentes. Hoje, Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs) e o fenômeno da morte súbita começam a aparecer de forma assustadora, além da sistemática dependência química”.

O trabalho realizado por Roberto Heloani verificou que nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro 93% dos jornalistas já não tem carteira assinada ou contrato. Isso é outra fonte de estresse. Não bastasse a insegurança laboral, o trabalhador ainda é deixado sozinho em situações de risco nas investigações e até na questão judicial. Premidos por toda essa gama de dificuldades os jornalistas não tem tempo para a família, não conseguem ler, não se dedicam ao lazer, não fazem atividades físicas, não ficam com os filhos. Com este cenário, a doença é conseqüência natural.

O jornalista ganha muito mal, vive submetido a um ambiente competitivo ao extremo, diante de uma cotidiana falta de estrutura e ainda precisa se equilibrar na corda bamba das relações de poder dos veículos. No mais das vezes estes trabalhadores não têm vida pessoal e toda a sua interação social só se realiza no trabalho. Segundo Heloani, 80% dos profissionais pesquisados têm estresse e 24,4% estão na fase da exaustão, o que significa que de cada quatro jornalistas, um está prestes a ter de ser internado num hospital por conta da carga emocional e física causada pelo trabalho. Doenças como síndrome do pânico, angústia, depressão são recorrentes e há os que até pensam em suicídio para fugir desta tortura, situação mais comum entre os homens.

O resultado deste quadro aterrador, ao ser apresentado aos jornalistas, levou a uma conclusão óbvia. As saídas que os jornalistas encontram para enfrentar seus terrores já não podem mais ser individuais. Elas não dão conta, são insuficientes. Para Heloani, mesmo entre os jovens, que se acham indestrutíveis, já se pode notar uma mudança de comportamento na medida em que também vão adoecendo por conta das pressões. “As saídas coletivas são as únicas que podem ter alguma eficácia”, diz Roberto.

Quanto a isso, o presidente do Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina, Rubens Lunge, não tem dúvidas. “É só amparado pelo sindicato, em ações coletivas, que os jornalistas encontrarão forças para mudar esse quadro”. Rubens conta da emoção vivida por uma jornalista na cidade de Sombrio, no interior do estado, quando, depois de várias denúncias sobre sobrecarga de trabalho, ele apareceu para verificar. “Ela chorava e dizia, `não acredito que o sindicato veio´. Pois o sindicato foi e sempre irá, porque só juntos podemos mudar tudo isso”. Rubens anda lembra dos famosos pescoções, praticados por jornais de Santa Catarina, que levam os trabalhadores a se internarem nas empresas por quase dois dias, sem poder ver os filhos, submetidos a pressão, sem dormir.

A pesquisa de Roberto Heloani é um retrato vivo, chaga aberta, de uma realidade nacional. Os jornalistas espelhados aqui têm uma única opção: lutar de forma conjunta, unificados e dentro dos sindicatos. As derrotas vividas com a decisão do STF fragilizam e consomem ainda mais os profissionais, mas, a história humana está aí para mostrar que só a luta muda as coisas. Saídas individuais podem servir a um ou outro, mas quando uma categoria luta junto, ela vence! Assim é!

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Na Ilha de Patmos

Elaine Tavares

Minha mãe era uma cristã devota e desde pequena estive mergulhada no mundo jesuânico. Por outro lado, meu pai era um compulsivo comprador de livros e aprendi a ler num desses que tratavam dos deuses e mitos gregos. Depois, mais crescida, me apaixonei pelos deuses originários aqui de Abya Yala. O resultado é que vivo submersa nestes mundos todos, cheios de deuses pagãos, mitos e santos cristãos. Nem perguntem como, mas consigo conviver com todos de forma muito harmônica. Creio que é porque, ao final, tudo é muito parecido. Os deuses, sejam lá quais forem, são as redes onde descansamos nossos corpos despedaçados.

Pois foi cheia de reverência que cheguei à ilha de Patmos, na Grécia. Lá eu encontraria duas figuras que tinham muito importância para mim. A primeira delas era a grande Ártemis, a esplendorosa deusa da caça, adoradora da lua. E a outra era a do mais amado apóstolo de Jesus, João, que naquele lugar recebeu a revelação do livro sagrado do Apocalipse.

Patmos é uma das muitas ilhas do belíssimo mar Egeu. Tem pouco mais de 36 quilômetros quadrados e uma população que não passa das três mil almas. Ali, o ponto onde acorrem os turistas é a famosa caverna onde João teria escutado a voz de Jeová. E ali está ela, no alto da formação rochosa, com uma deslumbrante vista para o mar. Mas, o que era no ano 95 D.C. apenas uma cova no alto da montanha, agora é um lugar de peregrinação dos cristãos. A caverna se mantém, mas lá dentro há um belíssimo altar, com os famosos afrescos bizantinos.

Envolto em prata está o buraco onde João descansava a cabeça e também o outro onde ele colocava a mão para erguer o corpo já envelhecido. Também se vê uma espécie de púlpito, entranhado na rocha, lugar que teria servido de apoio para o escrivão do apóstolo, o jovem Próforo. No alto da caverna pode-se ver a rocha fendida, dizem, pela voz troante do próprio deus pai. Lá dentro são proibidas as fotos e as gentes entram e saem em profusão. Praticamente não há tempo para um encontro místico com aquele que foi o amado do Senhor.
A caverna de João agora está protegida por uma imensa fortaleza, dentro de cujos muros está um enorme mosteiro, construído por Alexandre I em 1.088, logo depois do cisma da igreja que resultou na divisão entre a Igreja Católica Romana e a Ortodoxa.

Ali, durante muito tempo, esteve guardada uma grande biblioteca, considerada a mais rica dos países balcânicos. Hoje, no museu que fica dentro do mosteiro, é possível se ver coisas como parte do evangelho original de São Marcos, escrito em pele de cabra, a carta do imperador Alexandre I autorizando a construção do mosteiro, o Livro de Jó, e um livro pintado à mão de Gregório da Capadocia, além de outras relíquias da igreja ortodoxa. Também no mosteiro é possível observar a diferença radical que existe entre a arte católica, baseada em temas, e a bizantina (oriental), que se concentra nas figuras humanas, sempre retratadas de forma muito simples, mais voltada à espiritualidade.

Na ilha de Patmos seguramente 100% das pessoas professam a fé cristã. Já quase ninguém se lembra da deusa originária, Ártemis. Por isso, quando, no meio do mosteiro cristão, eu insisti em saber da deusa, a guia mostrou-se hesitante. “Já ninguém mais fala dos deuses antigos”, disse, incomodada. Depois, num átimo, lembrou-se que sua mãe chama-se Artemísia, coisa que deveria ser em memória da deusa. E mais surpreendida ainda contou que se chamava Vera, nome da filha de Glauco, a mais amada sacerdotisa de Ártemis. “Não sei se minha mãe pensou nisso quando me deu este nome”. Eu, já tomada pela energia da deusa, entendi que sim. Ali estava viva, a cultura originária, ainda que subsumida pela cristandade. Vera contou também que o lugar onde pisávamos - o chão de mármore do mosteiro - era herança dos tempos antigos. Bem ali era o templo de Ártemis, que foi destruído para que se fizesse o mosteiro, embora a base permanecesse. Lembrei de nossa América Latina, dos templos maias, astecas e incas, todos derrubados, dando lugar a igrejas, com os deuses sendo solapados pelo deus cristão. Tudo tão igual.

Mas, ainda que soterrada, a cultura antiga encontra seu lugar no museu do mosteiro. Num cantinho, alguns mármores do velho templo da deusa da caça estão expostos. A linda Ártemis vive no seio do mundo ortodoxo cristão. Lá fora, o vento forte anunciava o cair da tarde, o mar Egeu, espaço de Posseidon, se agitava. Saímos impregnados daquela profunda impressão, causada pela mistura de duas culturas tão distintas, que simbioticamente convivem. Ártemis, não mais cultuada, mas não esquecida e João, o apóstolo, com sua visão de fim de mundo. Dois guerreiros, enfim. Ainda em luta no coração dos gregos.

No alto do mosteiro, estas duas culturas pareciam mesmo vivas. De um lado, os austeros monges, com suas sotainas pretas e barbas grandes. Do outro, Vera, a guia, vestida numa túnica branca, vaporosa, a própria imagem da deusa. Em pleno século XXI eu via Ártemis, na porta do mosteiro, a acenar. A caçadora ainda não fora vencida! Lá, como cá, os deuses antigos assomam, ainda que não se queira.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Comunidade do Campeche faz protesto por derrubada do Bar do Chico



Por Elaine Tavares - jornalista

O sábado chorou, porque até a natureza sabia que o Bar do Chico era espaço coletivo, das gentes do Campeche. Mas, mesmo com chuva, o povo foi para a praia levantar as bases de mais um momento de luta comunitária. Em meio à chuva, o velho bar voltou à vida. Chegou pelas mãos do artista-poeta Paulo Renato Venuto que, durante uma semana inteira, investiu na recriação do bar.

Assim, enquanto a polícia espiava, pronta para intervir se acaso o povo quisesse levantar uma construção, os garotos chegaram com o bar pronto, em miniatura, um gesto poético que mostrou o quanto a força bruta jamais consegue deter a memória. Ali estava o bar com suas paredes pintadas, sua cerca treliçada de madeira, seu telhado, sua aura, seu jeito campechiano. Então, em volta dele se juntaram as gentes. Cada um disse sua palavra, falou do que significava tudo aquilo, do absurdo que era a prefeitura derrubar o bar e deixar todo um mundo de hotéis, condomínios e casas de luxo em pé. Por que esta sanha contra o velho bar? Por que este ódio contra um espaço comunitário do povo guerreiro do Campeche?

A resposta todos sabem muito bem. O Campeche é comunidade de luta. É gente que se junta para decidir seu destino, é gente que briga contra as propostas de destruição ambiental, que enfrenta os poderosos, que denuncia os corruptos políticos de plantão. E, para os que mandam, essa gente merecia um cala-boca. Para isso decidiram atacar um homem velho, que desde os anos 60 tem sido uma referência no bairro, dando a ele, inclusive, filhos, que, participando ativamente da vida política da cidade, também dão trabalho ao poder.

O Campeche precisava de uma lição por conta de toda a sua luta por um plano diretor que respeitasse a vontade de seu povo. Desde a primeira vez que a prefeitura, ainda sob a gestão de Angela Amin, quis colocar no bairro mais de 400 mil pessoas, essa gente lutou. E agora, com Dário, o povo continuou emperrando os projetos absurdos tais como o do emissário que levaria toda a merda da cidade para o mar. Então, numa manhã brumosa, vieram as máquinas e derrubaram tudo, apesar de toda a comunidade ser contra. Foi uma vingança do poder contra aqueles que barram seus interesses.

Neste sábado a comunidade se reuniu para realizar um ato político/poético. Mas isso não significa que vai ficar só nisso. A proposta é realizar novos encontros e organizar a re-construção real. Aquele é um espaço histórico, patrimônio imaterial do Campeche. O poder público sabe que esta comunidade não é de brincadeira e ninguém pisa no pé do Campeche impunemente. Ninguém aqui vai se intimidar com as ameaças das autoridades que não tem moral alguma para fazer valer sua voz. O sábado serviu para protestar e discutir estratégias. Essa comunidade aguerrida vai saber como responder a esse ataque obtuso. É só esperar. Como diz a valente Débora Daniel. “Nós vamos brigar!” Como? Isso a cidade logo vai saber!

sexta-feira, 23 de julho de 2010

As mulheres originárias

Elaine Tavares

A cidade nos reserva surpresas inauditas. Andando apressada em direção ao almoço, cabeça baixa, cheia de minhocas a minhocar, de repente, eu as vi. Estavam ali, lado a lado, no chão, em meio à algaravia das gentes que passavam rumo ao centro de compras da Trindade. Cada uma delas oferecia, no mercado, o produto que lhes permite seguir tocando a vida. Uma expunha os ecos de sua cultura milenar: cestos, maracás, colares, bichos de madeira. A outra, exposta ao turbilhão do sistema, oferecia lenços da moda. Todas duas tinham ao lado uma criança, a lhes exigir cuidados. Tão perto e tão longe.

As mulheres com as quais me deparei eram uma guarani e uma kichwa, respectivamente do Brasil e do Equador. Duas originárias, filhas legítimas da terra de Abya Yala. A guarani vive no morro dos cavalos, na aldeia, e vem todos os dias tentar ganhar um troquinho que trocará por comida. A kichwa vem de Cotopaxi, com um grupo grande de migrantes que saiu do Equador em busca de vida melhor. Os maridos, filhos e parentes cantam e dançam nas ruas enquanto elas vendem produtos da moda comprados em quantidade.

As duas mulheres originárias estão ali, na esquina da UFSC. Estão perto, mas não se falam. Vivem cada uma no seu mundo particular, sem comunicação. Sem se dar conta, talvez, que são irmãs, iguais na condição de povos primevos, donos desta imensa terra. Estão na rua, sentadas no chão frio, esperando que algum passante apressado se interesse pelos seus produtos. Disputam a calçada de um lugar que lhes pertence.

As mulheres originárias não se conhecem, não se olham, não se falam. Submetidas estão ao modo de ser ocidental, de competição e indiferença. As mulheres originárias precisam se conhecer, e saber... Hoje o dia passou, mas segunda-feira eu vou apresentá-las! Alguma coisa haverá de mudar naquela esquina da UFSC...

A Grécia, a crise e a desconexão

Elaine Tavares

Quando desci no aeroporto de Atenas/Grécia, na calorenta manhã do dia sete de julho de 2010, já sabia que aquele país e a América Latina tinham ligações muito estreitas. Afinal, fora nele que se inspirara o libertador Simón Bolívar quando, em 1824, chamou o famoso Congresso Anfictiônico do Panamá, com o propósito de criar um grande bloco que unificasse toda a América hispânica, a Pátria Grande. Bolívar tentava fazer aqui o haviam realizado os povos pan-helênicos da Grécia antiga, que juntavam 12 grandes cidades-estado para discutir e decidir sobre suas vidas de maneira conjunta. Visionariamente, Bolívar queria fazer nesta parte do mundo, o que a União Européia logrou, em parte, logo após a assinatura do Tratado de Maastrich, em 1992. Este acordo juntou, num primeiro momento, 12 estados-nação num único bloco chamado em princípio de Comunidade Econômica Européia. Era o início da época dos grandes blocos econômicos que mudariam, uma vez mais, a cara do capitalismo mundial. Assim, carregando essa linha de tempo, entre o mundo antigo, Bolívar e Papandreu, arribei na terra dos deuses, num momento em que a inclusão da Grécia na agora chamada União Européia (hoje com 27 países) cobrava do povo a exorbitante fatura.

No caminho para o hotel, o motorista do taxi, já bem familiarizado com a rota turística, avisou, pesaroso: “amanhã não haverá o que fazer. Teremos uma greve geral”. Ruim para os turistas, que sequer conseguiriam embarcar nos ferry-boats que fazem os caminhos do “azulérrimo” mar Egeu, não para mim. Perguntei sobre a crise e ele respondeu que a coisa estava feia. “Os turistas estão indo para a Turquia, a vida lá está melhor”. Os taxis são presença absoluta em Atenas. Não passa um minuto sem que algum assome pela rua. É que a cidade recebe diariamente milhares de turistas (50 milhões ao ano). E mesmo este serviço está sob o fogo do chamado “sacrifício” imposto pelo governo. As taxas foram aumentadas e mesmo com o reajuste da bandeirada que passou de 2,90 euros para 3,90, o lucro diminuiu. A greve geral do dia 8 seria a sétima do ano e a cidade já vivia um clima de tensão. Uma olhada para a magnífica Acrópole seria suficiente para compreender o caráter do povo grego. No tempo dos deuses antigos, sua impiedade, insaciedade e crueldade levaram os homens a desafiá-los, tirando-lhes para sempre o poder de decidir sobre suas vidas. Se naqueles dias os gregos disseram basta aos sacrifícios, porque, afinal, voltariam a fazê-los em nome de uma dívida que não contraíram? Será que os governantes do Partido Socialista (que atualmente governa a Grécia) não conheciam seu próprio povo? Estas eram as perguntas que me assaltavam pelas ruas da grande cidade de Atenas, que abriga cinco milhões de almas.

As causas da crise
A bancarrota do sistema fiscal grego não é coisa de agora, portanto, não brotou do nada. Ela é fruto de várias políticas que vieram se fortalecendo nos últimos 20 anos, na qual se inclui a entrada do país no âmbito do euro, e da tomada indiscriminada de empréstimos que levaram a uma dívida externa astronômica, hoje quase em 300 milhões de euros. Para os trabalhadores que lutam contra o pagamento desta dívida, o processo começou a pesar com a entrada de recursos para financiar as Olimpíadas em 2004. Fazia quase 200 anos que a Grécia estava fora do circuito dos jogos que inventara antes de Cristo, e a histeria por realizar os jogos outra vez na sede original exigiu demasiado da população. Naquele período a Grécia investiu perto de nove bilhões de euros para a construção de novos estádios, reforma de outros e infraestrutura para acomodar atletas, imprensa e visitantes. A conversa que a população ouvia era de que estes recursos iriam melhorar também o transporte público, a segurança, etc.. ou seja, a mesma cantilena de sempre, ou para ficarmos no âmbito grego, nada mais que “um canto de sereia”. Todo este dinheiro foi dívida contraída e que agora começou a ser cobrada, gerando a crise. Para se ter idéia, em 2009 escoaram 41 milhões de euros só em pagamento de dívida.

Para nós, latino-americanos, que convivemos desde há décadas com as agruras do pagamento de juros da dívida parece mais fácil compreender o mecanismo detonado na Grécia. Assim como aqui, o governo passou estes anos todos pagando apenas juros, sem conseguir avançar no principal. Com o aumento exponencial da dívida e a corrida dos credores para receber o que lhes é devido, o governo aplicou a mesma velha receita neoliberal. Corta na carne do povo, mas segue pagando a dívida. Na televisão, o discurso dos governantes é o do sacrifício. “Para salvar a Grécia, a população tem de dar sua cota”. Mas, quando as dívidas foram feitas, a população não foi convidada ao banquete.

Não bastasse cortar o salário mínimo, diminuir o soldo dos funcionários públicos, aumentar a idade para aposentadoria, diminuir o valor das pensões, cortar gastos na educação, saúde, segurança etc... o governo grego propõe como saída para o desastre a contratação de mais um empréstimo, via FMI, o famigerado banco responsável pelas medidas de ajuste em toda América Latina nos anos 80 e 90, que, bem comparando, são as mesmas aplicadas agora pela Grécia. Tudo é uma eterna repetição. Mas, como a mídia não contextualiza nada, isso não aparece em nenhum jornal ou TV. Assim, pede-se sacrifício ao povo para sustentar mais uma bola de neve de dívida sobre dívida, cujos euros sequer sairão dos países credores. É que a dívida da Grécia foi feita junto aos mesmos que agora emprestam outra vez, mais de 100 milhões de euros com taxas de 5%, consideradas altíssimas. É um conto digno de uma tragédia grega. E a ironia é que o slogan do partido que hoje comanda esta “desgraça” é “A Grécia para os gregos”. Nada mais fora de lugar.

A greve geral
No dia 8 de julho tudo parou em Atenas. Era dia de greve geral. Bem cedinho já era possível observar o vai-e-vem dos soldados em várias ruas do centro. Eles se colocavam em lugares estratégicos, com escudos, bombas e armas pesadas, prontos para enfrentar a multidão. Da mesma forma, pelos mesmos caminhos estreitos das ruas do centro, também assomavam as gentes. Muitos jovens, com bandeiras do partido comunista, mulheres e até crianças. Todas as veredas levavam ao centro nervoso da cidade, próximo à Sintagma, a praça do parlamento.

Pelo meio do povo, um homem velho arrastava um enorme carro cheio de várias qualidades de sementes. Levava bem para o meio da passeata, pois ali teria cliente certo. Os gregos gostam de beliscar típicas sementes salgadinhas e outros “petiscos” que não consegui identificar. A caminhada gigante que circulava pela praça e as palavras de ordem não pareciam afetá-lo. Estava ali apenas para ganhar um dinheirinho. Como ele, também desfilavam os imigrantes paquistaneses, vendendo água. Da mesma forma como o homem do carroção das sementes, eles passavam com as caixas cheias daquele líquido precioso, no calorão da manhã, sem se afetar pela manifestação.

Já os negros, vindos de lugares como a Somália, Nigéria e outros pontos da África, apareciam com enormes sacolas e espalhavam mercadorias em alguma esquina, prontos a venderem carteiras ou óculos de sol, no melhor estilo dos nossos ambulantes, aproveitando a multidão. É que os imigrantes aqui na Grécia parecem ser os mais pobres entre os pobres. A eles não lhes toca a crise, pois é em crise que vivem desde que saíram de seus países para tentar uma vida nova na boa República Democrática Eleniká. Dizem os governantes que a terra dos filósofos é uma excelente porta de entrada para essas pessoas, cujo sonho é chegar à Europa rica, por isso eles são vistos aos borbotões, assim como também são perseguidos.

Num dia em que Atenas praticamente parou, sem transporte público de nenhuma natureza, sem comércio aberto, nem nada, apenas os negócios de lata ficaram abertos e seus donos estavam bem felizes, igualmente vendendo água, chocolates e biscoitos. Esses negócios são espécies de quiosques, feitos de lata, existentes a cada cem metros. Vendem essas coisinhas que não competem com os comerciantes mais abastados. Eles também reclamam da crise, pois os turistas, seus mais frequentes fregueses, diminuíram muito na Grécia desde o ano passado, quando começou a crise. Raros são os ambulantes no centro da cidade. Em compensação, os mendigos abundam. Muitos são homens jovens, que não encontram trabalho, e ficam a perambular pelas ruas. Também encontrei algumas senhoras, muito velhinhas, que chegam a andar curvadas, com suas mãozinhas enrugadas estendidas. Cena triste demais.

Já entre os trabalhadores que se manifestaram na greve geral ficava bem claro o número expressivo de jovens. Na caminhada das centrais sindicais GSEE e ADEDY e do Partido Comunista, eles eram os mais firmes no grito de ordem e na animação. Ninguém ali parecia derrotado, embora o parlamento tivesse votado no dia anterior pela reforma das aposentadorias. “Os direitos fundamentais não se apagam quando uma lei é aprovada. A luta por aqui vai continuar”, afirmavam. Também não havia choramingação em torno do fato de que o governo que aprovou esta lei e outras tantas medidas de arrocho seja um governo socialista. “As coisas são assim. Eles mudam e a gente luta. Se a gente continua, eles caem”.

Para os trabalhadores gregos não há qualquer sentido no plano de ajuda do FMI. Os grupos econômicos que viabilizarão o empréstimo de mais de 100 milhões de euros são os mesmos que são credores da Grécia. Ou seja, o dinheiro entra na Grécia e logo volta para as mãos de quem emprestou, uma vez que o principal ponto da crise é justamente a dívida que o governo tem com os bancos estrangeiros. “Os ricos que paguem a conta”, este é o grito de guerra dos que saíram às ruas no 8 de julho. Segundo eles, o tal ajuste, só ajusta a vida dos que sempre tiraram o escalpo do povo: os bancos. As medidas tiram 15% dos salários dos funcionários públicos, congelam as atuais aposentadorias e aumentam tempo e contribuição e idade para se aposentar. Algo muito parecido com o que aconteceu no Brasil em 2003.

A mídia eletrônica grega também nos apresenta uma sensação de estar em casa. Tirando a língua, absolutamente incompreensível para quem não a conhece, o resto é uma cópia do modelo CCN de fazer jornalismo. No dia da greve, por exemplo, parecia que era outro país que passava na TV. Poucas foram as notícias sobre a mobilização e as que apareceram vinham desconectadas, sem que o espectador pudesse compreender a totalidade dos fatos. Além disso, muitas são as matérias com governantes e legisladores afirmando que estas medidas são fundamentais para salvar a Grécia, o que leva uma boa parcela da população no bico.

Exemplo disso foi uma furiosa briga entre dois homens no trajeto da passeata. Um deles, irritado com a mobilização, começou a xingar, e um outro parou para argumentar. Ali ficaram por vários minutos a gritar um com o outro. Nenhum se convenceu. “Essa gente quer a derrocada da Grécia”, insistia o homem na calçada. Outro deja vu. Já os que seguiam pela rua bradavam que é o capitalismo o único culpado por tudo o que acontece, e não eles, os trabalhadores. “Os ricos que paguem”, insistiam.

Patrícia, uma brasileira que vive há 19 anos na Grécia, também não estava muito satisfeita com a greve. “Isso afasta os turistas”. Ela disse que desde que começaram as mobilizações os estrangeiros preferem ir para a Turquia, afetando assim toda uma rede de trabalho que vive do turismo. Ela conta que realmente as coisas estão bem ruins, pois o governo tem jogado a conta nas costas dos trabalhadores. “Os taxistas, por exemplo, estão tendo de pagar mais imposto e precisaram aumentar a bandeirada. Isso diminui os lucros deles. Tem gente que já não está mais conseguindo sustentar a família”. Mas ainda assim Patrícia parece não aprovar as passeatas e greves. “Temos que mostrar que a Grécia está em paz”.

Na Grécia o salário mínimo valia 650 euros, e agora baixou para 550, uma perda amarga para os que vivem na barra da miséria. Para se ter uma ideia, um lanchinho básico, com pão e café, não sai por menos de 8 euros. A passagem de ônibus custa 1 euro, e uma olhada nas vitrines que se apresentam, iluminadas, revela que um simples sapato custa 50 euros. Tudo está muito caro para o grego comum.

O dono de uma destas bodegas de lata, místico, fala que tudo começou a ficar pior na Grécia quando o governo decidiu abandonar a moeda histórica, o dracma, a mais antiga em circulação no mundo. Com a entrada da Grécia na União Europeia, essa foi uma exigência: adotar o euro. “Nossa moeda estava aqui desde os tempos antigos, fazia parte da nossa identidade. Sem ela, fomos ruindo”. O dracma foi criado ainda no tempo das cidades-estado, antes de Cristo, e eram medidas de pagamento. A versão moderna apareceu em 1833, com a independência, e foi usada até 2002, quando finalmente a Grécia entrou na zona do euro. Agora, com a crise, já tem economista falando que o país terá de renunciar ao euro. Mais um golpe. Nem euro, nem dracma. Que a grande Atena possa proteger seu povo.

O dia de greve geral acabou em clima de melancolia. Mesmo na alegre Plaka, um espaço de bares e lojas típicas, os turistas pareciam estar mais quietos, num reverente respeito ao povo que saiu pelas ruas durante o dia todo. Apenas um garotinho, tocando uma típica guitarra grega, cantava sem parar. Mas, ainda assim, seu canto não tinha alegria. Parecia mais um dolorido lamento. Só um pequeno grupo de jovens vestidos com camisetas que estampavam Che Guevara parecia estar bem. Eles atravessavam a rua com um riso bonito na cara, jeito de quem havia cumprida a missão. “Os ricos que paguem”, falei em grego macarrônico. Eles fizeram o sinal de positivo e se perderam nas ruazinhas do bairro. Lá de cima da Acrópole, os deuses também sorriram.

As saídas
Os sindicatos na Grécia vivem um momento de ascensão, mas muito arrastados pelos trabalhadores. Assim como em todo mundo, as coisas andavam em baixa. Pouca credibilidade, pouca mobilização. Com a vida cobrando seu preço no dia-a-dia, os trabalhadores foram exigindo respostas das instituições. Os mais organizados são os de trabalhadores públicos, possivelmente os que estão levando a pancada maior, mas, agora, também os do setor privado começam a levantar. De qualquer forma não há uma proposta clara e unificada por parte das forças de esquerda sobre as saídas para a crise. Fala-se em não pagar a dívida, mas esse é um discurso simplista, de agitação. Não pagar exigiria um ordenado plano entre as instituições sociais e o governo, para que o país não fosse jogado num redemoinho ainda pior.

Poucos são os que falam em uma auditoria da dívida, como a que aconteceu no Equador, por exemplo, para que o estado pudesse ter clareza do que, nestas transações, no mais das vezes leoninas, é verdadeiramente legal. Os contratos estudados pela comissão da dívida do Equador mostraram o quanto estes acordos estão eivados de ilegalidades. E, a considerar que são quase os mesmos credores, uma auditoria poderia dar uma radiografia segura sobre a legitimidade da dívida. Mas, isso é bem pouco tratado entre a esquerda. Há os que propõem a saída da zona do euro e a recuperação de uma moeda própria, embora se encontre uma articulação mais concreta. São falas sindicais ou populares. No parlamento a maioria esmagadora está com o governo e faz o discurso do sacrifício. Há que apertar o cinto, dizem, mas esta proposta é só para o povo.

Entre os militantes do Partido Comunista há a preocupação em sair do âmbito das questões meramente econômicas. Eles querem que se discuta a propriedade privada, o papel dos monopólios e a posição da Grécia dentro da União Europeia. Muitos são radicalmente contra a participação do país na EU, entendendo esta conformação como imperialista e opressora. Na verdade, eles apontam a necessidade de uma outra organização da vida, desde a realidade grega, com os recursos que o país pode dispor. E que não são poucos. Apesar de ter uma economia aparentemente frágil, baseada na agricultura (5%), indústria (20%), e serviços (74%) a Grécia é rota de um fluxo permanente de turismo, e um turismo caro, de gente rica, que deixa milhões de dólares ao ano no país. Assim, uma alternativa grega é completamente possível. Mas, para isso, seria necessária a construção de um novo sujeito político, capaz de romper tanto com as velhas práticas da Nova Democracia, como com as práticas neoliberais deste socialismo opaco que representa o hegemônico Partido Socialista na atualidade. E, daí, juntar forças tão díspares da esquerda como os minoritários do parlamento, os trotskistas, maoístas e outros, não é coisa fácil. Nem na Grécia, nem em qualquer lugar.

De qualquer sorte, a chamada crise grega desencadeou uma força vital que é a mobilização popular. Nas ruas, o povo quer respostas, saídas, propostas de segurança. Os trabalhadores querem poder viver com dignidade, cuidar da família, pensar no futuro. E esse arrastão grego pode se espraiar por outros países da Europa que enfrentam os mesmos problemas. Na periferia da União Europeia, muitos países se equilibram em empréstimos para manterem a ideia de um equilíbrio do bloco. Só que, cedo ou tarde, como um castelo de cartas, isso pode vir ao chão. Entre os gregos, as propostas econômicas para a crise aparecem e são simples. Taxar as fortunas, aumentar os impostos aos empresários, controlar a evasão fiscal que é altíssima, fazer com que os grandes empresários paguem suas dívidas com o estado, exigir que as multinacionais paguem impostos, enfim..., mas isso não parece suficiente para consolidar uma frente de esquerda capaz de impor esse receituário.

Andando pelas ruas de Atenas, no meio da multidão das gentes de todo o mundo que para lá acorrem em busca de um passado mítico, o que nos aparece com absoluta claridade é a proposta de Samir Amin: a necessária desconexão. Ou os países apostam numa outra forma de organizar a vida que não seja o sistema capitalista, ou a destruição é ponto de chegada seguro. Esta lição vale tanto para os gregos como para todos nós. Afinal, hoje, o desvelamento desta “periferia” desgraçada da grande Europa, é a prova concreta de que no capitalismo, para que um viva, outro tem de morrer.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Jornalismo de classe

Um primor a cobertura do blog Sambaqui na Rede sobre o estaleiro do Eike Batista. Confira em

http://sambaquinarede2.blogspot.com/2010/07/blog-post_19.html

Durante a barba da manhã


Henry Clarke, 1869


Fernando Karl


A minha própria voz, sufocada de espuma durante a barba da manhã: a piscina vazia em que os ventos continuam a crescer.

Há muito que eu, Palma Bravo, morri de ascite (vulgo hidropsia, vulgo barriga d'água). Se, em boa justiça era essa a doença que me cabia por ter sido um monarca dos botecos onde eu era bebedor inveterado de gim.

Mesmo morto, ainda piso os azulejos rachados do casarão em que vivi durante trinta anos: morto e a lutar com a silhueta das coisas: mesmo assim, decido fazer a barba, para fingir que estou vivo.

Mesmo morto troco de camisa, conserto o ventilador, rego as plantas, gasto um vidro de perfume barato atrás da orelha e saio para o vasto quintal do casarão no momento em que o bolero na vitrola se cala, exausto de percorrer o sulcos negros do vinil

Como uma faca revira nas entranhas, eu não me acostumo com estar morto e aproveito para espiar o mar, o deserto de areia, enfim, a mata carrasquenta que se alonga por toda orla de vegetação rasteira, e pergunto a mim próprio porque aquele engenho que se chama respiração, que vencera a incerteza e os marouços, teve que cessar entre os corvos do mar, sim, pois foi entre os corvos do mar que eu morri de hidropsia há oitenta anos.

Mas isso não importa agora, posto que destampo a rolha da cachaça, e, embora um pouco carcomido pelo salitre e pela cinza das horas, me sento no velho sofá e a certeza do efêmero toca-me o coração.

Sorrio, como se a foice da morte de novo me fizesse cócegas. Tenho ciência que, apesar do frouxo alinhavo de minha prosa, há nela qualquer coisa com o sabor dos ventos e dos mares.

Mesmo morto e sentado nesse velho sofá do casarão, eu ainda sou esse voluptuoso espectador da mediocridade e analista das almas entorpecidas pelo hábito, das almas sem acesso a qualquer forma de renegeração moral.

Eu, Palma Bravo, morto há oitenta anos, não me queiram mal se retorno ao casarão vez em quando para colher das horas nuas uma última aragem de vida.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Derrubaram o Bar do Chico, mas ele voltará!...

Elaine Tavares

No raiar da manhã de uma sexta-feira de muito frio vieram os homens e as máquinas. Não avisaram ninguém. Em minutos, derrubaram o Bar do Chico, ponto cultural da comunidade do Campeche, que está na praia desde 1981. Lugar que é reconhecido pelas pessoas que vivem no bairro como espaço coletivo de encontro e lazer. É, porque o Campeche, até hoje, sequer um praça tem. Os espaços coletivos são os que a própria comunidade cria e o Bar do Chico era um deles.

Seu Chico é um homem simples, pescador, que nasceu e viveu toda sua vida no Campeche. Do mar, tirou o sustento dos 13 filhos que criou. Mas, quando no início dos anos 80, os barcos industriais começaram a varrer o mar, tirando o pão da boca dos pescadores artesanais, ele precisou se virar. Naqueles dias não havia quase nada no Campeche, a não ser os ranchos de pesca que acolhiam as canoas e os homens. Então, do rancho nasceu o bar e, logo em seguida, o lugar virou o coração do Campeche.

O Bar do Chico estava na beira da praia, feito de madeira e palha. Lugar simplesinho, como Chico. Não havia cercas, era território liberado para as famílias que vinham à praia, para as crianças pegarem uma sombra, para o uso gratuito do banheiro nestes tempos em que se paga para tudo. No bar do Chico as gentes celebravam o começo do ano, o meio do ano, a chegada do verão, da primavera, das tainhas, o carnaval. Era a praça coletiva.

Então, deu que o filho do Chico, Lázaro, se fez vereador. Homem sério, decidido, resoluto, do lado dos empobrecidos, dos sem casa, sem terra, sem nada. Incomodou demais. Angariou inimigos. Sem ter como atingi-lo, os políticos que se acham donos da cidade, decidiram se vingar no pai. Começou a perseguição ao Bar do Chico. A alegação é de que o mesmo estava construído nas dunas e isso não podia ser. Mas, por outro lado, por toda a parte, as dunas do Campeche iam sendo tomadas e não havia ninguém querendo destruir nada. Só o Bar do Chico.
É que o Campeche é um bairro chato demais. Aqui as pessoas participam da vida da cidade, elas fazem reuniões, brigam com a prefeitura, apresentam propostas, não aceitam a especulação, enfrentam empresários, fazem o diabo. As gentes do Campeche são incomodativas demais. Então, precisava um baque, um golpe só, para quebrar a espinha, a alma forte das famílias pescadoras.

Por quase vinte anos pairou a ameaça de derrubada. Mas, o povo nunca permitiu. Quando se anunciava a vinda, lá estava a comunidade, vigiando. Então, nesta sexta, vieram sem aviso. E quebraram a espinha do Campeche. Na manhã de sábado, na sede da Rádio Comunitária, as pessoas chegavam aos borbotões. Vinham chorando, indignadas, iradas, resolutas, aquilo não ficaria assim. Ninguém estava imóvel. O golpe não vingara. Não se quebrara a espinha, não se destruíra a alma. Pelo contrário. O que assomava era a velha e renovada força popular. “Reconstruiremos!”, diziam...

O Bar do Chico caiu. E todos sabem por quê. Por outro lado, enquanto a tal da “justiça” cristaliza uma vingança em cima de um homem velho e de uma comunidade guerreira, a Casan (estatal que cuida da água e do esgoto) premia os invasores privados das dunas com a passagem de rede de esgoto nas suas casas. O mesmo estado que derruba o espaço comunitário e livre do Campeche, é o que arranca 16 milhões de reais dos cofres públicos para construir um molhe na Praia da Armação, unicamente para salvar as propriedades privadas de famílias que invadiram a beira do mar. A justiça que derruba o coração do Campeche é a mesma que permite que o famoso jogador de tênis, Guga, desfrute privadamente das dunas e da praia do Campeche. A prefeitura derruba o Bar do Chico ao mesmo tempo em que libera a construção de casas no Morro do Lampião. Ou seja, para os ricos tudo, para as comunidades nada.

O que aconteceu nesta sexta-feira no Campeche não é nada de novo. É o estado e a justiça, instrumentos de uma classe, usando seu poder sobre quem lhes incomoda. A prefeitura, incomodada com os entraves ao plano diretor que o Campeche sempre põe, quis dar uma lição às gentes. Um cala a boca. Não vai conseguir.

O povo do Campeche quer seu espaço de volta e vai reerguê-lo com as próprias mãos, a menos que cada casa, cada hotel, cada condomínio, cada espaço privado seja também demolido. Se não for assim, o Bar do Chico vai viver outra vez. Ah, vai...

E o primeiro momento de reconstrução acontece neste sábado, dia 24, a partir das três horas da tarde. O Campeche está convidando toda a cidade para vir ajudar. Aqui não vai acontecer como no poema, no qual eles vem, pisam o nosso jardim e ninguém diz nada. Aqui, quando alguém pisa no jardim do vizinho, as gentes se levantam. Hoje pisaram no jardim do Campeche. Pois vão conhecer a força do povo!

Ato Público: Dia 24 de julho. 15h. Em frente ao bar do Chico. Traga seus instrumentos de trabalho.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Repórteres da letra e foto-jornalistas no rumo da transformação

Míriam Santini de Abreu


Acabo de receber das mãos do obstetra sr. Hélio, o mago das gráficas, a nossa vigésima terceira filha, a 23, mais uma Pobres que chega ao mundo. Para esta edição, dois colegas repórteres fotográficos, Luís Henrique Prates e Celso Martins, cederem excelente material próprio, que ilustra uma reportagem sobre a atual realidade de praias como a Armação, em Florianópolis, e sobre a luta pela mobilidade urbana na Capital catarinense. Também há um perfil de Antônio Joel de Paula, morador na Novo Horizonte, também em Floripa, com fotos e texto de Marcela Cornelli. Por isso, o editorial desta Pobres, escrito por Elaine Tavares, é dedicado aos foto-jornalistas:


A Pobres chega ao quinto ano

E lá vamos nós para o quinto ano, quase um milagre. Porque a Pobres é assim, guria nojenta, incapaz de se render aos "esquemas" comerciais. Vai se vendendo no jeito antigo, no mercado original, aquele em que o que vende olha nos olhos do que compra, numa relação de interdependência. Por isso, cada um que leva a Pobres para casa é verdadeiramente importante para nós, sem retórica. Porque dependemos deste ser que compra, que acredita na nossa proposta. Até porque é a partir dele que podemos distribuir por aí, gratuitamente, a maior parte da edição.

Na revista que agora te cai nas mãos fazemos uma homenagem aos foto-jornalistas, essas criaturas que, como a nossa revista, resistem ainda, firmes, neste mundo infame do jornalismo-gosma. Essas figuras que escrevem com a luz, registrando o inaudito, o real, a vida mesma, que se expressa no instante do clicar nervoso de quem é repórter por essência. E, no olhar de repórter, esse ser que fotografa, detecta coisas que o olho comum não percebe. Ele é um observador do detalhe, feito de outro barro. Nunca está seguro, nunca chega à perfeição, nunca está pronto. Porque está em eterna construção e, numa única foto, num detalhe, precisa traduzir, na linguagem própria da foto, o fato inteiro.

Esta Pobres traz esse olhar, do Luís Henrique Prates, do Celso Martins, na Revolta da Catraca, na tragédia da perda, no espaço da luta e da resignação. Assim como já trouxemos outros do gabarito de um Claudio Silva da Silva, um Ricardo Casarini, um Ronnie Huete, uma Marcela Cornelli. Junto com essa linguagem feita em luz, oferecemos as histórias, os fatos, o jornalismo de libertação, que não se perde no estilo porta-voz, na oficialidade, na superficialidade. Um jornalismo que vai ao fato, de corpo inteiro, com olho e mão, com nariz, com boca, cheiro e gosto. Um jornalismo que diz das gentes reais. Resistindo vamos todos, repórteres da letra e foto-jornalistas, sempre no rumo da transformação.

Veja o que acontece na SEDE da British Petroleum quando é derrmado café

Idéia brilhante!

http://www.youtube.com/watch?v=1YeFgYJPvvg&feature=player_embedded#!

Pobres & Nojentas: cinco anos de compromisso com o outro, real



Por Elaine Tavares - jornalista

A revista Pobres & Nojentas entrou no quinto ano de existência fiel ao seu propósito inicial. Mostrar as vozes que se expressam no mundo dos empobrecidos para que todos saibam que as gentes que não têm dinheiro e não frequentam a ilha de Caras (popular revista brasielira que mostra a vida dos ricos) também são construtoras de mundos, de belas histórias, carregadas de sabedoria, e graça, e alegria, e esperança, e solidadriedade, e cooperação. A Pobres conta de trajetórias de vida, de costumes, de mitos, de paisagens, de lugares, de receitas gostosas, de poemas, de líricas, de dores e de alegrias. A Pobres procura revelar o outro – diferente, mas real – nas suas mais diversas facetas, acreditando que a história de um ser humano é prismática, cheia de lados significantes. A Pobres entra nos bairros de periferia com suas capas estampando as vidas reais, as caras das gentes bonitas que fazem esse mundo andar. A Pobres está nas padarias, nos botequins, nos salões de beleza, nos terminais urbanos, na Banca da Catedral, e procura equilibrar denúncia deste mundo que não se quer, com a capacidade que tem as gentes de inventarem novos mundos mais próximos de seus desejos.

Outro dia, ouvindo a linda escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie falar sobre os perigos da história única e de como isso acaba criando ilusões sobre quem são os seres humanos que vivem em determinados espaços geográficos, tais quais os da periferia, me enchi de emoção ao verificar que nós, aqui no sul do mundo abiaiálico também caminhamos por estas veredas de narrar as vidas sob várias facetas, para que as pessoas possam saber que o humano é essa mistura de sombra e luz, como bem já ensinaram os orientais. Assim, compartilhando essa rica fala de Chimamanda sob a necessidade de contar histórias sobre a vida real – eivada de suas contradições – reiteramos nosso compromisso de fazer da Pobres & Nojentas o espaço da vibrante aventura humana.

Porque nosso propósito é mostrar nossas próprias caras, para que se possa viver a emoção igual a vivida no dia 28 de junho de 2010, quando a revista foi mostrada ao povo hondurenho via canal de televisão, tal como reproduz Raul Fitipaldi, nosso colaborador: “Quando Globo TV Honduras apresentava as imagens do dia no seu programa Interpretando a Notícia, conduzido pelos jornalistas David Romero Ellner e Héctor Amador, o jornalista Rony Martínez que nos visitou em março aqui em Desterro, tomou conta do programa e disse: `- Agora vou apresentar o número da Revista Pobres & Nojentas de Brasil, especialmente feito para destacar a Resistência Hondurenha naquele país. Olhem-se aqui companheiros jornalistas. Estas fotos trazem nossa história. Aqui estão os homens e mulheres da Resistência em Honduras, e os homens e mulheres que nos receberam e são nossa família lá em Florianópolis`.

Rony Martínez pediu um primeiro plano e foi mostrando e comentando página por página, toda a Pobrinhas que se unia naquele momento, em “pleno corpo físico” à Resistência Catracha. Os jornalistas que lá se encontraram, fotografados pelo colega hondurenho Ronnie Huete Salgado, se emocionaram muito e o colega Raul Fitipaldi, que estava em sua casa da Ilha assistindo a emissão via internet, também. Era a Pobrinha cumprindo seu papel de integrar e integrar-se cada vez mais profundamente à luta dos povos oprimidos.

Os nomes da Elaine, Míriam, Rosângela, Celso e Raul soaram musicalmente na dicção privilegiada do jornalista hondurenho, que deixou saudades, junto com Ronnie Huete Salgado, entre nós, aqui na Ilha. Ficou linda a Pobres na TV de Honduras, andando passo a passo com a Resistência, marchando junto ao Povo Hondurenho a um ano do Golpe!”

Agora, o número 23 da Pobres chega com a recuperação da preciosa história de luta dos estudantes e do povo florianopolitano por um transporte urbano digno, mostra o triste destino de quem não respeita a natureza, a corajosa vida de Antônio, da Novo Horizonte, e revela a criação de uma rede de comunicação popular em Santa Catarina.

A vida e seu movimento, o povo em luta. Ah, essa beleza que nos toca viver, de sermos jornalistas e podermos narrar a caminhada da raça, sem cair na lógica do “nkali” (o que quer ser maior do que o outro), como lembra Chimamanda. Mas esse insaciável desejo de compartir, como dizem os compas de língua hispânica. Na Pobres vive o jornalismo e vive o compromisso ético de não permitir a história única.

Abaixo, o enlace para o vídeo onde a escritora nigeriana Chimamanda faz ecoar, tal como nós, o compromisso com a beleza do humano.

http://www.ted.com/talks/lang/por_pt/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Só pro meu prazer

Míriam Santini de Abreu


Uma noite de frente fria, o céu da terça estava tão puro, tão claro... Jantei na padaria da esquina da Praça 15, média e misto frio, e saí dali cheia de farelo na blusa de lã. Também comprei uns pinhões já cozidos, cheirosos, lá na ambulante ao lado do Mercado Público. Em casa, abri um keep cooler – mas podia ser um concha y toro ou um naturelle, ah, se podia... – e fiquei dançando na frente do espelho, como adoro fazer quando estou ensolarada, bebendo direto da garrafa. No laptop deslizava um CD com músicas que eu ouvia no Sintufsc, sindicato onde trabalhei. Resposta, do Milton Nascimento, Só pro meu prazer, do Heróis da Resistência, apetitosas entradas quando se aproximava o dia do rock:

Uma diz:

Será que você não é nada do que eu penso? Também se não for, não me faz mal, não me faz mal, não...

A outra:

Em paz eu digo que eu sou o antigo do que vai adiante. Sem mais eu fico onde estou, prefiro continuar distante...

E enquanto eu ouvia essas delícias, soube - com um sentimento puro neste meu coração cuja genética familiar não é das melhores - que os existencialistas têm razão: a gente não pode mudar o passado. Mas o tempo, a ventania, o sol e a neblina podem, sim, fazer o passado palpitar em outra cadência, com outra musicalidade, dentro da gente.


Em tempo: meu irmão e minha cunhada, lamento pelo keep coller e pela falta de sofisticação... Mas vou fazer 40, os pequenos pecados, perto dos grandes que já cometi, já não pesam tanto.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Ribeirão da Ilha



Na foto, cemitério do Ribeirão da Ilha, em Florianópolis. Foto da Rô Bion de Assis, que dá cara para a Pobres junto com a Sandra Werle. Ela sabe que a Míriam, da Pobres, sempre dá uma espiadinha no cemitério das cidades que visita.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Teatro: Desafio ao mau humor no Adolpho Mello neste final de semana

Neste final de semana, dias 17 e 18 de julho (sábado e domingo), às 20 horas, o palco do Theatro Adolpho Mello, em São José, dará lugar ao espetáculo "COTIDIANOS", com esquetes teatrais de primeira e ainda onde serão revelados novos talentos. "Cotidianos" reúne esquetes com textos divertidíssimos, daqueles para desafiar o mau humor de qualquer um, com apresentações em conjunto e monólogos.

Os atores são alunos da Oficina de Theatro Adulto do diretor Raphael Soares. O espetáculo contará com a participação de convidados especiais. Os ingressos custam R$ 5,00 e estarão à venda no local, nos dias das apresentações. Toda a renda arrecadada será em benefício da Oficina de teatro para a montagem dos figurinos, adereços e cenários da peça "O REINO DO ABSURDO", que será apresentada pela mesma trupe em outubro no Adolpho Mello.

Mais informações pelo fone (48) 32592368 de segunda a sexta das 14h às 19 horas e pelo e-mail raphafolia@hotmail.com. O Theatro Adolpho Mello fica na Praça Hercílio Luz, no Centro Histórico de São José.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

P&N entra no V ano! É um milagre!

Ilustração feita por Camila Bion de Assis, filha da Rô, para celebrar o quinto ano da Pobres. Da esq. para a direita, Sandrinha, Rô, Má, Mimi, Elaine e Mônica.

Saiba mais sobre o estaleiro na Baía Norte de Florianópolis

Texto de João Manoel do Nascimento e Carta de Raul Longo a Ideli Salvati


http://sambaquinarede2.blogspot.com/2010/07/blog-post_11.html

Reativada Associação Cultural Comunitária Cidadania de Fraiburgo

Aconteceu no dia 09/07/2010 a assembléia que reativou a Associação Cultural Comunitária Cidadania de Fraiburgo, o local foi o Centro de Formação Profissional – CEPROFF, a assembléia contou com a presença de mais de 60 pessoas representando 15 organizações sociais. O objetivo central da Assembléia foi a reativação da Associação Cultural Comunitária Cidadania de Fraiburgo, como primeiro passo, para a reconstrução da rádio Comunitária Cidadania, que já operou em Fraiburgo em anos anteriores. Veja as fotos clicando no link: http://www.orkut.com.br/Main#Album?uid=11063662060312871510&aid=1278740994

Leia matéria na íntegra: http://www.agecon.org.br/comentarios/Comentario.asp?cod=

Descaso e especulação no Farol de Santa Marta

Em:

http://sambaquinarede2.blogspot.com/2010/07/blog-post_5387.html

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Outros olhares sobre a manifestação grega

Por Elaine Tavares - jornalista

09.07.2010 - O homem velho arrastava um enorme carro cheio de várias qualidades de sementes. Levava para o meio da passeata, pois ali teria cliente certo. Os gregos gostam de beliscar típicas sementes salgadinhas e outros salgados que não consegui identificar. A caminhada e as palavras de ordem não pareciam afetá-lo. Estava ali apenas para ganhar um dinheirinho. Como ele, também desfilavam imigrantes paquistaneses e indianos, vendendo água. Da mesma forma como o homem do carroção das sementes, eles passavam com as caixas cheias daquele líquido precioso, no calorão da manhã, sem se afetar.

Já os negros, vindos de lugares como a Somália, Nigéria e outros pontos da África, apareciam com enormes sacolas e espalhavam as mercadorias em alguma esquina, prontos a venderem carteiras ou óculos de sol, no melhor estilo dos nossos ambulantes. É que os imigrantes aqui na Grécia parecem ser os mais pobres entre os pobres. A eles não lhes toca a crise, pois é em crise que vivem desde que saíram de seus países para tentar uma vida nova na boa Elenika. Dizem os governantes que a terra dos filósofos é uma excelente porta de entrada para essas pessoas,cujo sonho é chegar à Europa rica, por isso eles são vistos ao borbotões, assim como também são perseguidos.

Num dia em que Atenas praticamente parou, sem transporte público de nenhuma natureza, sem comércio aberto, nem nada, apenas os negócios de lata ficaram abertos e seus donos estavam bem felizes, igualmente vendendo água, chocolates e biscoitos. Esses negócios são espécies de quiosques, feitos de lata, existentes a cada cem metros. Vendem essas coisinhas que não competem com os comerciantes mais abastados. Eles também reclamam da crise, pois os turistas, seus mais frequentes fregueses, diminuíram muito na Grécia desde o ano passado, quando começou a crise. Raros são os ambulantes no centro da cidade. Em compensação, os mendigos abundam. Muitos são homens jovens, que não encontram trabalho, e ficam a perambular pelas ruas. Também encontrei algumas senhoras, muito velhinhas, que chegam a andar curvadas, com suas mãozinhas enrugadas estendidas. Cena triste demais.

Já entre os trabalhadores que se manifestaram na greve geral ficava bem claro o número expressivo de jovens. Na caminhada das centrais sindicais GSEE e ADEDY e do Partido Comunista, eles eram os mais firmes no grito de ordem e na animação. Ninguém ali parecia derrotado, embora o parlamento tivesse votado no dia anterior pela reforma das aposentadorias. “Os direitos fundamentais não se apagam quando uma lei é aprovada. A luta por aqui vai continuar”, afirmavam. Também não havia choramingação em torno do fato de que o governo que aprovou esta lei e outras tantas medidas de arrocho seja um governo socialista. “As coisas são assim. Eles mudam e a gente luta. Se a gente continua, eles caem”.

Para os trabalhadores gregos não há qualquer sentido no plano de ajuda do FMI. Os grupos econômicos que viabilizarão o empréstimo de mais de 100 milhões de dólares são os mesmos que são credores da Grécia. Ou seja, o dinheiro entra na Grécia e logo volta para as mãos de quem emprestou, uma vez que o principal ponto da crise é justamente a dívida que o governo tem com os bancos estrangeiros. “Os ricos que paguem a conta”, este é o grito de guerra dos que saíram às ruas neste dia 8 de julho. Segundo eles, o tal ajuste, só ajusta a vida dos que sempre tiraram o escalpo do povo: os bancos. As medidas tiram 15% dos salários dos funcionários públicos, congelam as atuais aposentadorias e aumentam tempo e contribuição e idade para se aposentar. Algo muito parecido com o que aconteceu no Brasil em 2003.

A mídia eletrônica grega também nos apresenta uma sensação de estar em casa. Tirando a língua, absolutamente incompreensível para quem não a conhece, o resto é uma cópia do modelo CCN de fazer jornalismo. No dia da greve, por exemplo, parecia que era outro país que passava na TV. Poucas foram as notícias sobre a mobilização e as que apareceram vinham desconectadas, sem que o espectador pudesse compreender a totalidade dos fatos. Além disso, muitas são as matérias com governantes e legisladores afirmando que estas medidas são fundamentais para salvar a Grécia, o que leva uma boa parcela da população no bico.

Exemplo disso foi uma furiosa briga entre dois homens no trajeto da passeata. Um deles, irritado com a mobilização, começou a xingar, e um outro parou para argumentar. Ali ficaram por vários minutos a gritar um com o outro. Nenhum se convenceu. “Essa gente quer a derrocada da Grécia”, insistia o homem na calçada. Outro deja vu. Já os que seguiam pela rua bradavam que é o capitalismo o único culpado por tudo o que acontece, e não eles, os trabalhadores. “Os ricos que paguem”, insistiam.

Patrícia, uma brasileira que vive há 19 anos na Grécia, também não estava muito satisfeita com a greve. “Isso afasta os turistas”. Ela disse que desde que começaram as mobilizações os estrangeiros preferem ir para a Turquia, afetando assim toda uma rede de trabalho que vive do turismo. Ela conta que realmente as coisas estão bem ruins, pois o governo tem jogado a conta nas costas dos trabalhadores. “Os taxistas, por exemplo, estão tendo de pagar mais imposto e precisaram aumentar a bandeirada. Isso diminui os lucros deles. Tem gente que já não está mais conseguindo sustentar a família”. Mas ainda assim Patrícia parece não aprovar as passeatas e greves.

Na Grécia o salário mínimo valia 650 euros, e agora baixou para 550, uma perda amarga para os que vivem na barra da miséria. Para se ter uma ideia, um lanchinho básico, com pão e café, não sai por menos de 8 euros. A passagem de ônibus custa 1 euro, e uma olhada nas vitrines que se apresentam, iluminadas, revela que um sapato comum custa 50 euros. Tudo está muito caro para o grego comum.

O dono de uma destas bodegas de lata, místico, fala que tudo começou a ficar pior na Grécia quando o governo decidiu abandonar a moeda histórica, o dracma, a mais antiga em circulação no mundo. Com a entrada da Grécia na União Europeia, essa foi uma exigência: adotar o euro. “Nossa moeda estava aqui desde os tempos antigos, fazia parte da nossa identidade. Sem ela, fomos ruindo”. O dracma foi criado ainda no tempo das cidades-estado, antes de Cristo, e eram medidas de pagamento. A versão moderna apareceu em 1833, com a independência, e foi usada até 2002, quando finalmente a Grécia entrou na zona do euro. Agora, com a crise, já tem economista falando que o país terá de renunciar ao euro. Mais um golpe. Nem euro, nem dracma. Que a grande Atena possa proteger seu povo.

O dia de greve geral acabou em clima de melancolia. Mesmo na alegre Plaka, um espaço de bares e lojas típicas, os turistas pareciam estar mais quietos, num reverente respeito ao povo que saiu pelas ruas durante o dia todo. Apenas um garotinho, tocando uma típica guitarra grega, cantava sem parar. Mas, ainda assim, seu canto não tinha alegria. Parecia mais um dolorido lamento. Só um pequeno grupo de jovens vestidos com camisetas que estampavam Che Guevara parecia estar bem. Eles atravessavam a rua com um riso bonito na cara, jeito de quem havia cumprida a missão. “Os ricos que paguem”, falei em grego macarrônico. Eles fizeram o sinal de positivo e se perderam nas ruazinhas do bairro. Lá de cima do Partenon, os deuses também sorriram.

Trabalhadores gregos estão em luta

Elaine Tavares

Os trabalhadores gregos saíram às ruas nesta quinta-feira para protestar contra o governo e contra as medidas neoliberais que vêm sendo implementadas, tirando direitos e diminuindo salários e aposentadorias. A capital, Atenas, parou totalmente. O transporte público não funcionou e até os vôos foram cancelados por mais de quatro horas, pois os controladores decidiram aderir ao movimento. Nao houve saídas para as ilhas e todos foram chamados a participar da luta.

Já de manhã bem cedo era possível ver os grupos de soldados se posicionando pelas ruas da cidade. Em pequenos grupos eles tomavam as principais saídas da área central, onde se concentrariam as manifestações. A partir das nove horas da manhã, quando no Brasil todo mundo ainda dormia, em Atenas as gentes iam saindo, devagar, de suas casas, em direção às praças onde estavam concentradas as centrais sindicais, o partido comunista e outros sindicatos menores, independentes.
Com bandeiras, faixas gigantes e os tradicionais apetrechos de passeata, o qual o mais típico é um enorme porrete que serve de mastro de bandeira, mas que também pode ser usado na hora de se defender da polícia, assim como as máscaras contra gás, o povo foi se concentrando aqui e ali. Logo, eram milhares. Comícios, palavras de ordem, caminhadas pelas ruas, tudo era motivo para chamar quem ainda nao tinha vindo.
Quando chegou a hora do meio-dia, o centro da cidade, onde está a sede do parlamento, ja estava tomado. A impressão era de que toda a cidade ali estava. Velhos, crianças, muitos jovens e até cachorros somavam-se àquele rio humano que ia varrendo cada rua. Na sede do parlamento, a cena que é igual em todo o planeta. Centenas de policiais, armados até os dentes, impedindo a passagem do povo.
O sol, a esta hora, em Atenas, é de matar qualquer um. Mas ninguém na multidão pretendia arredar pé. O dia inteiro acontecem caminhadas e manifestações. No final da tarde, um grande ato encerra o dia de greve geral. Ate o início da tarde, tudo caminhava tranquilo. A adesão em massa mostra que por aqui ninguém está de brincadeira. Se as medidas vierem contra os trabalhadores, eles saberão como reagir.

Veja o vídeo da caminhada da manhã no youtube:
http://www.youtube.com/watch?v=_lT0kzsCctA


terça-feira, 6 de julho de 2010

NOVELA, POLÍTICA E FUTEBOL: E EU COM ISSO?

Li Travassos

Tenho visto alguns capítulos da novela das 21 horas da Globo, Passione, de Silvio de Abreu. Nesta obra, a personagem Maria Candelária, representada por Vera Holtz (que, apesar de a gente saber que é um dos monstros sagrados da dramaturgia brasileira, não deixa de surpreender pela interpretação fantástica), parece centralizar uma série de questões importantes e até hoje sem solução em nossa sociedade. Maria Candelária é feirante, tem uma filha que foi mãe solteira quando tinha apenas 14 anos, e, em conseqüência disso, uma neta que criou como filha. A personagem, de uma bondade profunda, é do tipo que perde a paciência com facilidade, berra, xinga, mas acaba ficando claro que quer o melhor para todos, sempre. Porém, em torno dela, os problemas pipocam.

Na feira onde Candelária trabalha, há dois meninos que não têm família, parece que fugiram de casa em função de maus tratos, não sei direito. Um deles, ela mente que é seu filho, para poder ajudá-la na feira, sem que ela seja presa por explorar o trabalho infantil. Que fique claro: ela não explora o menino, ele é quem pede para trabalhar, parece que já morou com ela um tempo, e tal. O fato é que, se os policiais vêm verificar se há trabalho infantil na feira, e ela diz que o menino é seu filho, fica tudo bem. Ou seja: criança pode trabalhar neste país, desde que seja para os pais??? Mas quase sempre é para os pais! Pois o trabalho infantil, em sua maioria, é resultado do fato de que os adultos não ganham o suficiente. Se recebem pagamento por produção, então, nunca é suficiente. Por isso agregam o trabalho de todas as crianças da família, mesmo as mais pequeninas. E as crianças trabalham em casa também, fazendo tarefas de adultos, como cozinhar ou cuidar de bebês.

Na novela, Candelária tem maior dificuldade em mentir que o outro menino 'abandonado' é seu filho, pelo fato de ele ser negro e ela branca. Mas ele já dormiu na casa dela algumas vezes, e vive trabalhando em sua barraca escondido – ela prefere pagar pelo trabalho do que dar esmola, o que parece ser a única outra alternativa. A Silvio de Abreu não ocorre questionar mais profundamente o trabalho infantil. Do jeito que a questão está posta, parece inclusive que o defende. Fica sendo um mal menor: ou os meninos trabalham ali, ou passam fome, vão se meter com drogas, bandidos, etc.

E por falar em trabalho infantil, a novela também fala do pior de todos: a vizinha de Candelária tem duas netas que prostituí, decerto para pagar seus caprichos, posto que vive, razoavelmente, do dinheiro do aluguel de quartos e de refeições servidas em uma pensão. Uma das duas netas já lhe deu uma banana faz tempo, e é o mais perfeito exemplar de psicopata: foi seduzida e abusada quando criança, e se tornou uma pessoa fria e calculista ao extremo, capaz de passar por cima de todo mundo para conseguir o que quer. A irmã é uma menina de uns 14 anos, que a avó já colocou à venda também. E tem 'freguês' que já considera a mais velha 'passada' e quer mesmo fazer sexo com a mais nova. Aliás, há um outro personagem pedófilo nesta novela (embora muitos ainda não tenham percebido), que prefere ver fotos de pornografia infantil no computador do que ficar com a mulher com quem acaba de se casar. Isso ainda vai feder muito, mas eu espero que tenha alguma forma de discussão e amarração, ao invés de ser apenas mais um assunto jogado no ventilador...

Voltando para Candelária, sua neta/filha (Fátima) também engravidou muito cedo. Mas, ao contrário da mãe, que parece que engravidou por falta de um esclarecimento maior sobre contraceptivos, a gravidez de Fátima me cheira a golpe da barriga frustrado. Apaixonada sem reciprocidade por um rapaz horrível, que a despreza, humilha, xinga e maltrata, a menina deu um jeito de carregá-lo para a cama (drogado, parece) e, 'sem querer', engravidou. Ela deve ter acreditado que, com isso, o garoto iria se jogar a seus pés, casar com ela, e respeitá-la como mereceria a mãe de seu filho...

É claro que nada disso ocorreu. Ele mandou ela se danar, e deixou bem claro que não queria saber nem dela nem do filho. Então, posto que a gravidez não tinha mais função alguma, Fátima resolveu abortar. De posse de pouco dinheiro, que conseguiu com a avó (ainda não entendi por qual motivo, pois parece que o rapaz lhe deu dinheiro para 'resolver o problema'), ela se dirige a uma clínica clandestina de abortos. Ali, é atendida por uma médica que lhe faz o procedimento. Quando chega em casa, Fátima está se sentindo um pouco mal. Durante a noite, manifesta-se uma infecção, ela sangra, e amanhece desacordada. Levada para o hospital, corre sério risco de vida, mas acaba sobrevivendo. Enquanto isso, mãe/irmã e avó/mãe descobrem o aborto e cada uma dá um ataque a seu modo.

Revoltada, a mãe/irmã descobre o endereço da mulher que fez o aborto, vai até lá e lhe achincalha. A médica devolve, perguntando por que ela (que se apresenta como mãe de Fátima) não educou sua filha, não lhe ensinou a se cuidar, etc. Revoltada, a moça sai da clínica e vai a uma delegacia, onde faz uma denúncia, e a médica vai presa. Quando sai do hospital, Fátima vai até a delegacia com a mãe/irmã, concretizar a denúncia. O delegado chama a médica de carniceira para baixo, diz que as pessoas precisam denunciar mesmo, pois isto precisa acabar, e aproveita para passar um sabãozinho em Fátima. Esqueceu ele de dizer que, caso ela fosse maior de idade, estaria dividindo a cela com a 'carniceira', pois em nosso país o aborto é considerado crime, tanto por parte de quem o induz (enquanto médico) como por parte de quem o realiza em seu próprio corpo.

Depois de tudo, as duas mães tentam colocar juízo na cabeça da filha, mas nem se toca nos motivos que a levaram a engravidar, o que se critica é o fato de ela ter uma vida sexual, e, principalmente, o fato de ter feito o aborto. Ao fim e ao cabo, a culpa de tudo é da menina, ou da médica, ou da mãe, que não soube educá-la. O que me deixa mais indignada, é que tenha sido usado, para discutir a questão do aborto, que é um problema social e de saúde pública seriíssimo neste país, justamente o caso de uma menina que, quase certamente, engravidou de propósito. Quando sua estratégia de 'prender' o rapaz não dá certo, ela aborta. Acontece que este não é, nem de longe, o principal motivo pelo qual mulheres e meninas abortam. E esta situação, assim descrita, reforça ainda mais a 'culpa' da gestante por ter feito o aborto.

Enquanto isso, José Serra, candidato a presidência da República (decerto para ficar diferente de Dilma), defende que nada se altere em relação à criminalização do aborto no Brasil, ou 'viraria uma carnificina'. Hipócrita postura de um ex-ministro da saúde, sabedor da triste realidade do aborto no país. Em especial entre a população de baixa renda, que muitas vezes engravida por falta de educação para o planejamento familiar, ou por falta de acesso aos contraceptivos, o aborto é uma saída extrema, quando se percebe não haver condições financeiras ou sociais de criar uma criança (ou mais uma, pois muitas das mulheres que abortam já têm filhos). Ninguém faz aborto porque acha bonito. Faz porque não tem outra saída. E vale ressaltar que o aborto ainda é considerado crime em função da persistente influência da Igreja Católica em nossas leis. Laiká nós laika, mas estado laico que é good, nós não have.

E se as filhas da classe média abortam com o uso de medicamentos, ou com a ajuda de médicos bem estabelecidos, e as de classe alta são capazes até de ir abortar em outro país, onde o aborto é legal, as mulheres e meninas pobres brasileiras recorrem aos 'carniceiros' e 'carniceiras', que atendem nas melhores condições possíveis, mas que são pobres também, e muitas vezes o aborto é mal feito, o local não tem a higiene necessária, e a história acaba em infecção, morte, esterilidade permanente... Há médicos que se dedicam a esta prática apenas pelo dinheiro? Sem dúvida, mas a que camada da população você acha que eles preferem atender? Não aos pobres, decerto...

Nas gerações anteriores à pílula (que só começou a ser comercializada na década de 60, mas assim mesmo muito pouca gente tinha acesso a ela), dificilmente você irá encontrar uma senhora respeitável que não tenha feito um ou vários abortos. Muitas vezes, obrigada pelo marido. Os homens sempre quiseram sexo, mas nem sempre as conseqüências do ato. Para prová-lo, não pára de aparecer em nossos noticiários mais um caso de uma mulher 'desaparecida', que queria que o ex namorado reconhecesse a paternidade do filho... Triste é que ela denunciou o sujeito há tempos atrás, por ter inclusive tentado forçá-la a abortar, e por tê-la ameaçado de morte, mas até a análise do sangue da moça, para verificação de substância abortiva, só foi ser feita agora. Ah, esqueci de dizer que o suposto pai da criança é rico e famoso, jogador de futebol...

Como nos conta melhor o ótimo texto de Elaine Tavares neste mesmo site (http://pobresenojentas.blogspot.com/2010/07/quando-o-menor-nao-e-meu.html), também de meninos ricos teria partido uma violência sexual gravíssima contra uma menina de 13 anos em Florianópolis. Sendo todos menores, tanto a vítima quanto os agressores, por serem os meninos de famílias ricas e importantes, não tenho ouvido ninguém falar em redução da maioridade penal, o que seria o primeiro assunto a ser discutido caso os meninos fossem de famílias de baixa renda... Criminoso pobre (menor ou não) é bandido, marginal, monstro. Criminoso rico tem problemas psicológicos e, se menor, não passa de uma criança...

Voltando para nossos políticos, e já que estamos falando de saúde e justiça, dia 30 de junho houve uma Audiência Pública na ALESC, onde foram discutidos dois assuntos de grande interesse da população: o salário dos trabalhadores da saúde do estado (principalmente a incorporação de um abono), e o fato de não termos Defensoria Pública em SC, contrariando uma lei federal. Estive presente, como representante do FÓRUM ESTADUAL PELA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM SC, no qual eu represento o Sindicato dos Psicólogos. Plenário quase vazio, pois os senhores deputados não se deram ao trabalho de comparecer. Havia uns três ou quatro deputados apenas. Já as deputadas, estavam 'todas' presentes. Mas não se anime: temos apenas três deputadas – no momento quatro, porque Angela Albino está atuando como suplente.

Na ocasião, Ana Paula Lima (PT) se colocou com seriedade, pertinência e coragem, cobrando do governo estadual de SC sua responsabilidade por estas duas vergonhas. Angela Albino (PCdoB) também se colocou muito bem, e lembrou o que todas/os que participamos do Fórum sabemos: sem Defensoria Pública, não há Lei Maria da Penha, pois a Defensoria Pública serve para que a população de baixa renda possa ser não apenas defendida, mas também orientada em todas as suas necessidades de entendimento da lei. O que a defensoria dativa – que é a alternativa que SC nos tem enfiado goela abaixo estes anos todos – NÃO FAZ, a despeito de nossos governantes repetirem o contrário ad nauseam.

Já a deputada Ada de Luca, ao invés de defender o governo do estado, que afinal é de seu partido (PMDB), ou mesmo criticá-lo, o que seria uma atitude ainda mais corajosa (mas necessária), aproveitou para elogiar a seleção brasileira, que então ainda estava lutando pelo hexacampeonato. Elencou tooooodos os nomes dos jogadores, e os parabenizou um a um, sob as vaias iradas da audiência, não porque esta tivesse algo contra a seleção, mas pela falta de respeito da deputada pelos assuntos que estavam sendo ali tratados e pelos ouvintes.

A deputada Odete de Jesus (PL) preferiu sair pela tangente, e gastou todo seu tempo dizendo que o sofrimento dos profissionais de saúde é equiparável ao da mulher no parto, e exaltou um monte o sofrimento da mulher, e a mulher mãe (só faltou dizer que quem não é mãe não é mulher), e por aí foi. E viva o masoquismo feminino! Afinal, o que queremos? Nós mulheres temos todos os motivos para nos fazermos de vítimas, e que mais pode desejar um ser humano para receber atenção sem fazer força? Pena que a audiência da ALESC não tenha entendido a fala vazia da Srª. Odete: ela ainda foi aplaudida por vários dos presentes. Enfim, foram entregues ao governo do estado mais de 45 mil assinaturas de catarinenses exigindo a implementação da Defensoria Pública, os servidores da saúde prometem continuar sua luta, e vamos ver no que dá. Devo confessar que não sou das mais otimistas.

Para completar nossa 'felicidade', o Brasil foi colocado para fora da copa. Não por um time forte e eficiente, como eu achava que era a seleção holandesa (eu só assisto aos jogos do Brasil, pois não gosto de futebol). Mas por um time tal e qual o da Costa do Marfim: 'já que vocês jogam melhor do que nós, tome sopapo, chute, e outras porradas'. 'E se você apenas chegar perto de mim, eu me atiro no chão, gemo, gesticulo e grito, para ver se você recebe uma falta, e quem sabe é expulso do jogo'. 'Assim, talvez com mais jogadores que vocês, a gente consiga ganhar'. No caso da Holanda, até um dos dois gols deles quem fez foi um jogador brasileiro. Uma naba. Mas, na volta para o hotel, os pobres jogadores da seleção foram vaiados por torcedores brasileiros. Já na saída da África, foram aplaudidos. Que bom! Afinal, está na hora de o povo brasileiro parar de colocar todas as suas esperanças de felicidade no futebol. No esporte, não se pode ganhar sempre. E não se pode transferir para os jogadores da seleção nossa miséria social e política.

Preste atenção: já tem gente 'dando nó' na Lei da Ficha Limpa, e conseguindo se candidatar apesar de condenação prévia. E é claro que vão arrumar quem vote neles, e alguns irão mesmo se eleger. E você, vai reclamar quando? Até quando vai gastar mais seu tempo discutindo quem o treinador da seleção deveria ter convocado ou não, do que as leis que regem este país? Até quando vai achar que Dunga te deve mais satisfações do que o governador de seu estado? Que sua felicidade depende mais do Cacá do que do deputado que você ajudou a eleger? Nossos jogadores deram tudo que tinham para conseguir o melhor resultado. Quantos políticos você conhece de quem se pode dizer a mesma coisa?