terça-feira, 6 de julho de 2010

NOVELA, POLÍTICA E FUTEBOL: E EU COM ISSO?

Li Travassos

Tenho visto alguns capítulos da novela das 21 horas da Globo, Passione, de Silvio de Abreu. Nesta obra, a personagem Maria Candelária, representada por Vera Holtz (que, apesar de a gente saber que é um dos monstros sagrados da dramaturgia brasileira, não deixa de surpreender pela interpretação fantástica), parece centralizar uma série de questões importantes e até hoje sem solução em nossa sociedade. Maria Candelária é feirante, tem uma filha que foi mãe solteira quando tinha apenas 14 anos, e, em conseqüência disso, uma neta que criou como filha. A personagem, de uma bondade profunda, é do tipo que perde a paciência com facilidade, berra, xinga, mas acaba ficando claro que quer o melhor para todos, sempre. Porém, em torno dela, os problemas pipocam.

Na feira onde Candelária trabalha, há dois meninos que não têm família, parece que fugiram de casa em função de maus tratos, não sei direito. Um deles, ela mente que é seu filho, para poder ajudá-la na feira, sem que ela seja presa por explorar o trabalho infantil. Que fique claro: ela não explora o menino, ele é quem pede para trabalhar, parece que já morou com ela um tempo, e tal. O fato é que, se os policiais vêm verificar se há trabalho infantil na feira, e ela diz que o menino é seu filho, fica tudo bem. Ou seja: criança pode trabalhar neste país, desde que seja para os pais??? Mas quase sempre é para os pais! Pois o trabalho infantil, em sua maioria, é resultado do fato de que os adultos não ganham o suficiente. Se recebem pagamento por produção, então, nunca é suficiente. Por isso agregam o trabalho de todas as crianças da família, mesmo as mais pequeninas. E as crianças trabalham em casa também, fazendo tarefas de adultos, como cozinhar ou cuidar de bebês.

Na novela, Candelária tem maior dificuldade em mentir que o outro menino 'abandonado' é seu filho, pelo fato de ele ser negro e ela branca. Mas ele já dormiu na casa dela algumas vezes, e vive trabalhando em sua barraca escondido – ela prefere pagar pelo trabalho do que dar esmola, o que parece ser a única outra alternativa. A Silvio de Abreu não ocorre questionar mais profundamente o trabalho infantil. Do jeito que a questão está posta, parece inclusive que o defende. Fica sendo um mal menor: ou os meninos trabalham ali, ou passam fome, vão se meter com drogas, bandidos, etc.

E por falar em trabalho infantil, a novela também fala do pior de todos: a vizinha de Candelária tem duas netas que prostituí, decerto para pagar seus caprichos, posto que vive, razoavelmente, do dinheiro do aluguel de quartos e de refeições servidas em uma pensão. Uma das duas netas já lhe deu uma banana faz tempo, e é o mais perfeito exemplar de psicopata: foi seduzida e abusada quando criança, e se tornou uma pessoa fria e calculista ao extremo, capaz de passar por cima de todo mundo para conseguir o que quer. A irmã é uma menina de uns 14 anos, que a avó já colocou à venda também. E tem 'freguês' que já considera a mais velha 'passada' e quer mesmo fazer sexo com a mais nova. Aliás, há um outro personagem pedófilo nesta novela (embora muitos ainda não tenham percebido), que prefere ver fotos de pornografia infantil no computador do que ficar com a mulher com quem acaba de se casar. Isso ainda vai feder muito, mas eu espero que tenha alguma forma de discussão e amarração, ao invés de ser apenas mais um assunto jogado no ventilador...

Voltando para Candelária, sua neta/filha (Fátima) também engravidou muito cedo. Mas, ao contrário da mãe, que parece que engravidou por falta de um esclarecimento maior sobre contraceptivos, a gravidez de Fátima me cheira a golpe da barriga frustrado. Apaixonada sem reciprocidade por um rapaz horrível, que a despreza, humilha, xinga e maltrata, a menina deu um jeito de carregá-lo para a cama (drogado, parece) e, 'sem querer', engravidou. Ela deve ter acreditado que, com isso, o garoto iria se jogar a seus pés, casar com ela, e respeitá-la como mereceria a mãe de seu filho...

É claro que nada disso ocorreu. Ele mandou ela se danar, e deixou bem claro que não queria saber nem dela nem do filho. Então, posto que a gravidez não tinha mais função alguma, Fátima resolveu abortar. De posse de pouco dinheiro, que conseguiu com a avó (ainda não entendi por qual motivo, pois parece que o rapaz lhe deu dinheiro para 'resolver o problema'), ela se dirige a uma clínica clandestina de abortos. Ali, é atendida por uma médica que lhe faz o procedimento. Quando chega em casa, Fátima está se sentindo um pouco mal. Durante a noite, manifesta-se uma infecção, ela sangra, e amanhece desacordada. Levada para o hospital, corre sério risco de vida, mas acaba sobrevivendo. Enquanto isso, mãe/irmã e avó/mãe descobrem o aborto e cada uma dá um ataque a seu modo.

Revoltada, a mãe/irmã descobre o endereço da mulher que fez o aborto, vai até lá e lhe achincalha. A médica devolve, perguntando por que ela (que se apresenta como mãe de Fátima) não educou sua filha, não lhe ensinou a se cuidar, etc. Revoltada, a moça sai da clínica e vai a uma delegacia, onde faz uma denúncia, e a médica vai presa. Quando sai do hospital, Fátima vai até a delegacia com a mãe/irmã, concretizar a denúncia. O delegado chama a médica de carniceira para baixo, diz que as pessoas precisam denunciar mesmo, pois isto precisa acabar, e aproveita para passar um sabãozinho em Fátima. Esqueceu ele de dizer que, caso ela fosse maior de idade, estaria dividindo a cela com a 'carniceira', pois em nosso país o aborto é considerado crime, tanto por parte de quem o induz (enquanto médico) como por parte de quem o realiza em seu próprio corpo.

Depois de tudo, as duas mães tentam colocar juízo na cabeça da filha, mas nem se toca nos motivos que a levaram a engravidar, o que se critica é o fato de ela ter uma vida sexual, e, principalmente, o fato de ter feito o aborto. Ao fim e ao cabo, a culpa de tudo é da menina, ou da médica, ou da mãe, que não soube educá-la. O que me deixa mais indignada, é que tenha sido usado, para discutir a questão do aborto, que é um problema social e de saúde pública seriíssimo neste país, justamente o caso de uma menina que, quase certamente, engravidou de propósito. Quando sua estratégia de 'prender' o rapaz não dá certo, ela aborta. Acontece que este não é, nem de longe, o principal motivo pelo qual mulheres e meninas abortam. E esta situação, assim descrita, reforça ainda mais a 'culpa' da gestante por ter feito o aborto.

Enquanto isso, José Serra, candidato a presidência da República (decerto para ficar diferente de Dilma), defende que nada se altere em relação à criminalização do aborto no Brasil, ou 'viraria uma carnificina'. Hipócrita postura de um ex-ministro da saúde, sabedor da triste realidade do aborto no país. Em especial entre a população de baixa renda, que muitas vezes engravida por falta de educação para o planejamento familiar, ou por falta de acesso aos contraceptivos, o aborto é uma saída extrema, quando se percebe não haver condições financeiras ou sociais de criar uma criança (ou mais uma, pois muitas das mulheres que abortam já têm filhos). Ninguém faz aborto porque acha bonito. Faz porque não tem outra saída. E vale ressaltar que o aborto ainda é considerado crime em função da persistente influência da Igreja Católica em nossas leis. Laiká nós laika, mas estado laico que é good, nós não have.

E se as filhas da classe média abortam com o uso de medicamentos, ou com a ajuda de médicos bem estabelecidos, e as de classe alta são capazes até de ir abortar em outro país, onde o aborto é legal, as mulheres e meninas pobres brasileiras recorrem aos 'carniceiros' e 'carniceiras', que atendem nas melhores condições possíveis, mas que são pobres também, e muitas vezes o aborto é mal feito, o local não tem a higiene necessária, e a história acaba em infecção, morte, esterilidade permanente... Há médicos que se dedicam a esta prática apenas pelo dinheiro? Sem dúvida, mas a que camada da população você acha que eles preferem atender? Não aos pobres, decerto...

Nas gerações anteriores à pílula (que só começou a ser comercializada na década de 60, mas assim mesmo muito pouca gente tinha acesso a ela), dificilmente você irá encontrar uma senhora respeitável que não tenha feito um ou vários abortos. Muitas vezes, obrigada pelo marido. Os homens sempre quiseram sexo, mas nem sempre as conseqüências do ato. Para prová-lo, não pára de aparecer em nossos noticiários mais um caso de uma mulher 'desaparecida', que queria que o ex namorado reconhecesse a paternidade do filho... Triste é que ela denunciou o sujeito há tempos atrás, por ter inclusive tentado forçá-la a abortar, e por tê-la ameaçado de morte, mas até a análise do sangue da moça, para verificação de substância abortiva, só foi ser feita agora. Ah, esqueci de dizer que o suposto pai da criança é rico e famoso, jogador de futebol...

Como nos conta melhor o ótimo texto de Elaine Tavares neste mesmo site (http://pobresenojentas.blogspot.com/2010/07/quando-o-menor-nao-e-meu.html), também de meninos ricos teria partido uma violência sexual gravíssima contra uma menina de 13 anos em Florianópolis. Sendo todos menores, tanto a vítima quanto os agressores, por serem os meninos de famílias ricas e importantes, não tenho ouvido ninguém falar em redução da maioridade penal, o que seria o primeiro assunto a ser discutido caso os meninos fossem de famílias de baixa renda... Criminoso pobre (menor ou não) é bandido, marginal, monstro. Criminoso rico tem problemas psicológicos e, se menor, não passa de uma criança...

Voltando para nossos políticos, e já que estamos falando de saúde e justiça, dia 30 de junho houve uma Audiência Pública na ALESC, onde foram discutidos dois assuntos de grande interesse da população: o salário dos trabalhadores da saúde do estado (principalmente a incorporação de um abono), e o fato de não termos Defensoria Pública em SC, contrariando uma lei federal. Estive presente, como representante do FÓRUM ESTADUAL PELA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA EM SC, no qual eu represento o Sindicato dos Psicólogos. Plenário quase vazio, pois os senhores deputados não se deram ao trabalho de comparecer. Havia uns três ou quatro deputados apenas. Já as deputadas, estavam 'todas' presentes. Mas não se anime: temos apenas três deputadas – no momento quatro, porque Angela Albino está atuando como suplente.

Na ocasião, Ana Paula Lima (PT) se colocou com seriedade, pertinência e coragem, cobrando do governo estadual de SC sua responsabilidade por estas duas vergonhas. Angela Albino (PCdoB) também se colocou muito bem, e lembrou o que todas/os que participamos do Fórum sabemos: sem Defensoria Pública, não há Lei Maria da Penha, pois a Defensoria Pública serve para que a população de baixa renda possa ser não apenas defendida, mas também orientada em todas as suas necessidades de entendimento da lei. O que a defensoria dativa – que é a alternativa que SC nos tem enfiado goela abaixo estes anos todos – NÃO FAZ, a despeito de nossos governantes repetirem o contrário ad nauseam.

Já a deputada Ada de Luca, ao invés de defender o governo do estado, que afinal é de seu partido (PMDB), ou mesmo criticá-lo, o que seria uma atitude ainda mais corajosa (mas necessária), aproveitou para elogiar a seleção brasileira, que então ainda estava lutando pelo hexacampeonato. Elencou tooooodos os nomes dos jogadores, e os parabenizou um a um, sob as vaias iradas da audiência, não porque esta tivesse algo contra a seleção, mas pela falta de respeito da deputada pelos assuntos que estavam sendo ali tratados e pelos ouvintes.

A deputada Odete de Jesus (PL) preferiu sair pela tangente, e gastou todo seu tempo dizendo que o sofrimento dos profissionais de saúde é equiparável ao da mulher no parto, e exaltou um monte o sofrimento da mulher, e a mulher mãe (só faltou dizer que quem não é mãe não é mulher), e por aí foi. E viva o masoquismo feminino! Afinal, o que queremos? Nós mulheres temos todos os motivos para nos fazermos de vítimas, e que mais pode desejar um ser humano para receber atenção sem fazer força? Pena que a audiência da ALESC não tenha entendido a fala vazia da Srª. Odete: ela ainda foi aplaudida por vários dos presentes. Enfim, foram entregues ao governo do estado mais de 45 mil assinaturas de catarinenses exigindo a implementação da Defensoria Pública, os servidores da saúde prometem continuar sua luta, e vamos ver no que dá. Devo confessar que não sou das mais otimistas.

Para completar nossa 'felicidade', o Brasil foi colocado para fora da copa. Não por um time forte e eficiente, como eu achava que era a seleção holandesa (eu só assisto aos jogos do Brasil, pois não gosto de futebol). Mas por um time tal e qual o da Costa do Marfim: 'já que vocês jogam melhor do que nós, tome sopapo, chute, e outras porradas'. 'E se você apenas chegar perto de mim, eu me atiro no chão, gemo, gesticulo e grito, para ver se você recebe uma falta, e quem sabe é expulso do jogo'. 'Assim, talvez com mais jogadores que vocês, a gente consiga ganhar'. No caso da Holanda, até um dos dois gols deles quem fez foi um jogador brasileiro. Uma naba. Mas, na volta para o hotel, os pobres jogadores da seleção foram vaiados por torcedores brasileiros. Já na saída da África, foram aplaudidos. Que bom! Afinal, está na hora de o povo brasileiro parar de colocar todas as suas esperanças de felicidade no futebol. No esporte, não se pode ganhar sempre. E não se pode transferir para os jogadores da seleção nossa miséria social e política.

Preste atenção: já tem gente 'dando nó' na Lei da Ficha Limpa, e conseguindo se candidatar apesar de condenação prévia. E é claro que vão arrumar quem vote neles, e alguns irão mesmo se eleger. E você, vai reclamar quando? Até quando vai gastar mais seu tempo discutindo quem o treinador da seleção deveria ter convocado ou não, do que as leis que regem este país? Até quando vai achar que Dunga te deve mais satisfações do que o governador de seu estado? Que sua felicidade depende mais do Cacá do que do deputado que você ajudou a eleger? Nossos jogadores deram tudo que tinham para conseguir o melhor resultado. Quantos políticos você conhece de quem se pode dizer a mesma coisa?

2 comentários:

Adriana Cunha disse...

Falou e disse tudooooo.
Não tenho palavras para complementar tanta injustiça articulada neste texto!
Agradecida por escrever.

Li Travassos disse...

Eu que agradeço Adriana, por seu comentário. Um abraço, Li