terça-feira, 20 de julho de 2010

Durante a barba da manhã


Henry Clarke, 1869


Fernando Karl


A minha própria voz, sufocada de espuma durante a barba da manhã: a piscina vazia em que os ventos continuam a crescer.

Há muito que eu, Palma Bravo, morri de ascite (vulgo hidropsia, vulgo barriga d'água). Se, em boa justiça era essa a doença que me cabia por ter sido um monarca dos botecos onde eu era bebedor inveterado de gim.

Mesmo morto, ainda piso os azulejos rachados do casarão em que vivi durante trinta anos: morto e a lutar com a silhueta das coisas: mesmo assim, decido fazer a barba, para fingir que estou vivo.

Mesmo morto troco de camisa, conserto o ventilador, rego as plantas, gasto um vidro de perfume barato atrás da orelha e saio para o vasto quintal do casarão no momento em que o bolero na vitrola se cala, exausto de percorrer o sulcos negros do vinil

Como uma faca revira nas entranhas, eu não me acostumo com estar morto e aproveito para espiar o mar, o deserto de areia, enfim, a mata carrasquenta que se alonga por toda orla de vegetação rasteira, e pergunto a mim próprio porque aquele engenho que se chama respiração, que vencera a incerteza e os marouços, teve que cessar entre os corvos do mar, sim, pois foi entre os corvos do mar que eu morri de hidropsia há oitenta anos.

Mas isso não importa agora, posto que destampo a rolha da cachaça, e, embora um pouco carcomido pelo salitre e pela cinza das horas, me sento no velho sofá e a certeza do efêmero toca-me o coração.

Sorrio, como se a foice da morte de novo me fizesse cócegas. Tenho ciência que, apesar do frouxo alinhavo de minha prosa, há nela qualquer coisa com o sabor dos ventos e dos mares.

Mesmo morto e sentado nesse velho sofá do casarão, eu ainda sou esse voluptuoso espectador da mediocridade e analista das almas entorpecidas pelo hábito, das almas sem acesso a qualquer forma de renegeração moral.

Eu, Palma Bravo, morto há oitenta anos, não me queiram mal se retorno ao casarão vez em quando para colher das horas nuas uma última aragem de vida.

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