Elaine Tavares
O seminário “Novo Constitucionalismo na América Latina, Estado Plurinacional, Cosmovisão Indígena e Pluralismo Jurídico”, promovido pelo programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, deixou bem claro que, hoje, o que acontece na América Latina é o que há de mais interessante no campo do direito constitucional. As novas Constituições da Venezuela, Bolívia e Equador estão sendo esquadrinhadas por pesquisadores de todo o mundo, porque significam novos e originais aportes que mudam substancialmente as práticas jurídicas.
O seminário “Novo Constitucionalismo na América Latina, Estado Plurinacional, Cosmovisão Indígena e Pluralismo Jurídico”, promovido pelo programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC, deixou bem claro que, hoje, o que acontece na América Latina é o que há de mais interessante no campo do direito constitucional. As novas Constituições da Venezuela, Bolívia e Equador estão sendo esquadrinhadas por pesquisadores de todo o mundo, porque significam novos e originais aportes que mudam substancialmente as práticas jurídicas.
A professora Milena Peters, da Universitá Degli Studi Suor Orsola Benincasa, de Nápoles, Itália, mostrou que é a partir dos anos 80 que, na América Latina, começam as reformas constitucionais, visto que boa parte dos países entra na chamada transição democrática. “O que se vê é uma difusa adesão a uma forma de Estado Constitucional que expande os direitos humanos, os direitos fundamentais e aponta para novas garantias e novos significados”. As constituições abrem-se para o paradigma da liberdade e para o reconhecimento de ações positivas das minorias. Nos anos 90, esses direitos se ampliam mais ainda, atuando também no campo das garantias ambientais e direitos humanos.
Mas é a partir no novo milênio que começa a fluir uma nova linfa, trazida pelas transformações políticas de caráter popular na Venezuela, Equador e Bolívia. “Essas constituições são o novíssimo, o original”. Um dos elementos fundamentais dessas constituições é que elas nascem da mobilização real das gentes. São realizadas assembléias participativas, e o conceito “participação popular” torna-se real. “Essas constituições radicam-se na realidade histórica descolonizada, ligam a realidade global à local, tem um enfoque na solidariedade, atribuem valor à biodiversidade e sociodiversidade, reconhecem a cosmovisão indígena e garantem a efetiva participação popular”.
Milena lembra que a Constituição do Equador traz um capítulo inteiro de artigos que garantem a proteção da Pachamama, dando base legal a outro tipo de desenvolvimento que não seja predador da natureza. “É um aporte para toda a teoria constitucionalista. Muda tudo. Reforça o conceito de pluralidade que é a base das sociedades multiétnicas e dos estados plurinacionais. Toda a herança cultural é protegida, tantos dos indígenas como dos afrodescendentes. É um modelo peculiar de estado plurinacional e comunitário.” Para a professora, o projeto que emerge dessas novas Constituições é audacioso e bonito mas, também muito difícil de se concretizar. Não é sem razão que a Europa está de olho nesse processo, porque o que acontecer aqui na América Latina pode ter conseqüências mundiais no campo do Direito.
A professora Maria Rosario Valpuesta Fernández, da Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, Espanha, lembrou que as Constituições não são apenas formas jurídicas, mas o resultado de processos políticos, daí a originalidade das novas Constituições que emergem na América Latina, fruto da mobilização e aceitação popular. “O que dizer dos EUA, há democracia por lá? É o estado que nomeia os ministros da Justiça, tudo depende do estado. E a Inglaterra? É uma monarquia. Uma loucura”. Segundo ela, a América Latina hoje está muito mais interessante do que a Europa. Aqui está vicejando o novo. Mas, apesar das mudanças ainda há muito por fazer no que diz respeito à desigualdade social. “para haver democracia de fato, isso tem de acabar”.
Maria Rosario acredita que a América Latina também precisa acertar contas com as suas elites uma vez que os governos pós-coloniais também fizeram muito mal. “Os mapuches, por exemplo, quem destruiu foram os chilenos e não os espanhóis. Nas guerras de independência os índios não contaram, no Peru não se fala em índio, mas sim em camponês. Então as elites locais também têm sua cota de responsabilidade”.
A professora espanhola argumenta ainda que é preciso observar com cuidado as demandas indígenas pois, “nem todos os índios são bons. Há os que vendem madeira, os que exploram outros índios. Tem gente boa e ruim, como em qualquer etnia. Não dá para romantizar”. Sobre a Bolívia ela aponta a ideia de Estado Plurinacional como uma novidade importante uma vez que garante cidadania a uma maioria que estava completamente excluída do processo político.
O professor Antônio Carlos Wolkmer, da UFSC, mostrou que o Constitucionalismo liberal cristalizou uma igualdade formal que, na prática, forja um estado de controle, sem democracia, com participação elitista e ausência das massas. Ou seja, coisa muito diferente do que se anuncia agora nas novas Constituições. No caso do Brasil, historicamente, o constitucionalismo tem sido sempre uma cópia, desde a primeira carta, em 1824, que reproduzia a Constituição francesa, incluindo aí o poder moderador. Depois, veio uma Constituição conservadora, centrada no direito dos proprietários, individualista, patriarcal, que vai até os anos 30 do século passado. A modernização impulsionada pela oligarquia desalojada do poder gera o estado corporativo, inspirado no fascismo, com controle dos sindicatos e alguns novos direitos sociais. Os anos 60, tempo da ditadura, trazem a doutrina da segurança nacional e só em 1988, sem o jugo da ditadura, a Constituição brasileira vai ampliar direitos.
A carta de 1988 não é a desejada, feita sem exclusividade e sem participação popular. Mas, ainda assim, ela avança em pontos como os direitos coletivos, direitos culturais, proteção aos povos indígenas e ao meio-ambiente. Wolkmer observa que, na relação com as novas Constituições da região andina, a brasileira ainda tem muito que avançar, principalmente no que diz respeito à participação popular.
O seminário mostrou ainda o quanto o novo movimento indígena tem sido importante na consolidação de novas formas de organizar a vida. A recuperação de formas históricas de solidariedade, cooperação, equidade e relação harmônica com a natureza, têm aberto uma cunha na lógica desenvolvimentista do capitalismo dependente que domina a América Latina. As comunidades indígenas assomam e dizem sua palavra, oferecem seus exemplos e formulam propostas que levam em consideração aspectos jamais observados pelos governantes de plantão. Muitas das novidades que tanto encantam o mundo europeu são as que foram incorporadas do mundo indígena e do mundo popular que, até então, nunca tinham sido levados em conta no processo de construção das cartas magnas. Agora, com essas comunidades, muitas vezes na liderança dessas ações, elementos como referendos populares, estado plurinacional e multiculturalidade se fizeram concretos e estão contemplados na lei.
É certo que tornar real o que a letra da lei escreve ainda é um grande desafio para os povos latino-americanos. A plurinacionalidade é um processo em construção, ainda multifacetado e informe, mas assim como as gentes dessa parte do continente lograram avançar no aspecto constitucional não cabe dúvidas de que serão também capazes de inventar as formas concretas de incorporar a lei ao seu cotidiano. Todos os dias, nas entranhas da Pátria grande, a vida avança. E, dessa vez, é daqui que saem as lições. Quem tem ouvidos para ouvir, que ouça.
Um comentário:
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