segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Teresa lia os búzios na praia dos Paulas



E. O. Hoppé, 1926


Quando eu tinha dez anos, ficava a tarde inteira no cubículo escuro da sapataria do senhor Antonio, que batia sola ao lado de sua mulher cega, nós três envoltos no cheiro de cabedal e miséria, que é o único odor de santidade que conheço.
A dona Dorotéia, sempre de luto, ora porque havia morrido o canário, ora porque o gato foi trucidado pelo cão, ora porque seu marido se atirou sob as rodas do trem, ora porque anoitecesse no mar, sempre de luto, ela transportava com o máximo cuidado, dentro de uma caixa de vidro, uma figura tosca de São Francisco de Assis.
O santo Francisco ficava em sua redoma na sala de dona Dorotéia, sem beber água nem comer frutas. O que aliviava um pouco seu tédio era a luz que emanava do pavio de azeite.
Cresci entre o aviário do ex-lutador de box Franz – que consertava com talas de caniço as asas dos papagaios –, e o bar do Bolacha, muquifo muito suspeito, que vendia maços de cigarro sem filtro, ovos azulados imersos num vidro embaciado e garrafas de um líquido estranhamente chamado de “Cachaça de ver calcinha”.
Minha tia Teresa da Mauritânia lia búzios na praia dos Paulas, embuçada de negro como a viúva de um marujo, embora nunca tivesse casado e preferisse, no fundo, deitar com mulheres. O navio do tal marujo fictício nunca deu à costa, mas um dia aconteceu o que ninguém esperava: tia Teresa da Mauritânia grudou barba postiça em sua cara, colocou roupa e quepe de marujo, sentou num bar, sorveu cascos e cascos de cerveja Eisenbahn, pediu um lápis e rabiscou no papel em branco um navio – o convés era vasto, e os mastros altíssimos –, pegou o papel, foi até o poço do quintal, ergueu a tampa, atirou-se lá dentro a pensar, talvez, que as águas do poço eram águas do mar.
Quando o pólen da acácia chovia nas minhas pálpebras de menino, eu me excitava e, para me acalmar, fingia ser um unicórnio e me trancava no banheiro de casa a folhear revista de mulher nua: eu ainda não sabia que o chifre daquele meu unicórnio poderia, no futuro, fecundar o ventre de uma fêmea.
O barbeiro Astolfo cortava meus cabelos ao som da músicade Brahms. Um dia cansou de tudo e quebrou a asa da xícara, atirou os gatinhos dentro da privada e puxou a descarga, verteu água fervente na cabeça de sua mulher que dormia. Um dia, porque estava triste, cortou suas orelhas, seu nariz, seu pênis e comeu tudo com folhas de alface. Foi considerado louco e internado para sempre na Colônia Santana. Eu ia visitá-lo e punha na vitrola, para que ele se alegrasse, um vinil de Brahms.
A esposa do proprietário da Farmácia Alves era uma grega sumptuosa de nádegas de ânfora e pupilas que ardiam no escuro. O Alves nunca soube, mas sua mulher foi minha primeira namorada. Durante horas ficávamos dentro da igreja e, quando não havia ninguém, entrávamos no confessionário e meus dedos inocentes molhavam a pia de água nada benta que ela trazia entre as coxas e sob a saia.
Hoje, adulto, retorno à Vila Raso da Catarina e não encontro a Vila Raso da Catarina. As acácias ainda continuam por aqui, e me pergunto onde poderei encontrar o senhor Antonio e sua mulher cega, que sentava num banquinho baixo na sua sapataria?
Onde a dona Dorotéia, sempre de luto?
O aviário do ex-lutador de box Franz, me disseram, não existe mais. Franz morreu de solidão, dentro de seu quarto escuro. Os papagaios que ele curou foram empalhados e vendidos como souvenirs na feira dominical. Tia Teresa da Mauritânia foi vista, segundo as más línguas, voando numa vassoura na rua da Caixa d'água. O barbeiro Astolfo engasgou com um vinil de Brahms e levou três dias e três noites pra que enfim o ar cessasse em suas narinas.
Quanto à grega sumptuosa, logo após a morte de seu marido Alves, levou as nádegas de ânfora e as pupilas que ardiam no escuro ao Convento das Carmelitas, onde se entregou, com toda devoção, à leitura de encíclicas e ao ofício de ser noiva de Jesus.
São Francisco de Assis, este continua na sala de dona Dorotéia, que foi empalhada pelos filhos e pode ser vista, ao lado da figura tosca do santo na redoma, ambos iluminados pelo pavio de azeite. Ambos, igualmente, sem beber água nem comer frutas.
Vou ao mictório público e é com satisfação que abro o zíper e verifico que o unicórnio continua ali, sedento pelas ancas de Eulália, pelas coxas de Gabriela, pelo ventre de Cecília.
Algumas casas da Vila Raso da Catarina viraram ruínas, mas o mar resiste: nem o vento destroça suas ondas.

Fernando José Karl

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