terça-feira, 14 de abril de 2009

Terra sã para os frutos que virão

Míriam Santini de Abreu, dezembro de 2008

Um saco cheio de granizo ocupa parte do freezer na casa de Marlene Cardoso, 46 anos. É a prova da trovoada que arruinou a plantação de fumo de família, uma das 34 que moram no assentamento Santa Cruz dos Pinhais, em Vitor Meireles, no Alto Vale do Itajaí. As pedras escurecidas pela terra seriam mostradas ao técnico da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) para permitir acesso ao seguro que cobriria o prejuízo, em torno de 700 reais.
A perda da safra aconteceu no dia 14 de novembro, uma semana antes de parte do litoral catarinense ser arrasado pelas enchentes. Os elementos do início dessa história – pequenos agricultores, fumo, perda de safra, seguro – sustentam 11 ações civis públicas propostas há um ano pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em Santa Catarina contra empresas fumageiras, o sindicato que as representa e a Afubra.
A iniciativa do MPT toca em um setor bilionário. O faturamento em 2007, segundo a Afubra, foi de R$ 15,288 bilhões somando mercado doméstico e exportações. Metade do valor ficou com o governo sob a forma de tributos. Atualmente o Brasil está na 1ª posição no ranking mundial na exportação do produto.

Sistema integrado
A cadeia produtiva que gera esses números depende de um bem-amarrado processo que, em Santa Catarina, também é usado na produção de suínos e aves: o sistema integrado. Para colocá-lo em prática, as empresas fumageiras exigem que o agricultor assine o contrato de integração, cujas cláusulas são o alvo das ações do MPT.
Entre os 150 itens listados pelos Procuradores exige-se o fim do trabalho degradante, a formalização do registro dos trabalhadores com base na CLT e o não-uso de mão-de-obra infantil. Também é cobrado o atendimento às normas de saúde e segurança no trabalho, principalmente em relação ao uso de agrotóxicos. As multas pleiteadas deverão ser destinadas à substituição da cultura do fumo e auxílio às famílias que trabalham nessa lavoura. Até agora, porém, os processos pouco andaram por causa da divergência com relação ao juízo competente para processar e julgar as ações.

Busca de alternativas
Em meados de dezembro inicia-se, em Santa Cruz do Sul (RS), a negociação do preço do tabaco para a safra 2008/2009. O resultado interessa aos cerca de 54 mil agricultores familiares catarinenses que produzem fumo. A produção total, noticiada pela Afubra, estava estimada em 756 mil toneladas, mas, por causa das fortes chuvas e do granizo, a previsão baixou em 20%. O estado produz cerca de 193,5 mil toneladas.
Em 2008, quando as ações do MPT começaram o galgar o Judiciário, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetaesc) conseguiu algo que não obtinha desde 2003: preço mínimo para o fumo. Agora, a proposta levada às empresas é de reajuste de 27,9% sobre a tabela praticada na safra passada. Isso para quem tiver mercadoria para vender. A Federação calcula que o prejuízo com a perda de fumo, por causa das adversidades climáticas, seja de R$ 89,576 milhões.
Assim como Marlene Cardozo, muitos produtores, apesar do seguro da Afubra para pagamento das dívidas, não serão remunerados pelo esforço de plantar. Mas a agricultora de Vitor Meireles já decidiu: vai buscar outras alternativas para viver da terra no lugar que escolheu para morar.

Sistema integrado joga prejuízos para os agricultores

Os pêssegos apodreciam nas árvores e na terra encharcada. “Olha, o que vamos colher aqui! Nada! Acabou”, lamentava Marlene Cardozo, que também perdeu boa parte do fumo plantado em 2 dos 15 hectares da propriedade em Vitor Meireles. Tudo por causa de uma – como ela diz – “cossa de pedra”. Mas ela tem planos: assim que terminarem de pagar as prestações da estufa onde secam as folhas de tabaco, os Cardozo pretendem largar esse cultivo. Eles querem se dedicar ao turismo rural e diversificar a produção.
O solo onde agora está o fumo fará florescer mais feijão, milho, aipim e batata-doce, que já são cultivados pela família. Pesquisa feita pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetaesc) em julho de 2008 revela que, em média, os agricultores integrados usam 16% da propriedade para plantar fumo. As próprias empresas fumageiras estimulam, nos contratos, o cultivo de outros produtos agrícolas.
Mas a família cansou do fumo. “É muito ruim porque se trabalha mais para a firma do que para a gente... A coluna também já não agüenta. E não queremos que os netos passem o que a gente passa”, diz Marlene. A transição – depois de 23 anos dependendo do dinheiro pago pelas fumageiras - é planejada. A agricultora já fez cursos sobre produção de leite e de frutas. A família tem criação de animais e um açude na propriedade. A horta – no formato de mandala, um sistema que aproveita ao máximo a água da chuva – fornece temperos e chás. E há os pés de figo, laranja e pêssego, que ficarão maduros para as conservas que Marlene sabe preparar. Largar o fumo, porém, não é um passo pequeno.
A dependência que o cigarro provoca no consumidor é a outra face da que a planta do tabaco gera no agricultor. A explicação para isso está no sistema integrado, adotado e aperfeiçoado pelas fumageiras desde 1918. Esse sistema articula empresas agroindustriais e pequenos produtores rurais. Teoricamente, a base de seu funcionamento é a seguinte: os integrados recebem insumos e orientação técnica e produzem a matéria-prima exclusivamente para a empresa, com garantia de compra do produto. Mas na prática não é tão simples assim.
Os agricultores são procurados por representantes das empresas, que fazem a propaganda do “pacote tecnológico”. Ele inclui concessão de crédito para aquisição de equipamentos e insumos, acompanhamento técnico e compra de todo o fumo colhido. Há também oferta de seguro firmado através da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra), que igualmente vende os agrotóxicos que serão aplicados nas plantas. O Ministério Público do Trabalho (MPT) apurou que muitos agricultores não ficam com cópias dos contratos assinados e desconhecem as implicações do que as empresas exigem. Mais dia, menos dia, os prejuízos aparecem.
Além disso, os Procuradores também constataram que, nos contratos, as fumageiras jogam para os agricultores, parte mais fraca do sistema integrado, três responsabilidades: não explorar mão-de-obra infantil e evitar degradação ambiental e danos à saúde pública. Lidar com isso representa um peso e tanto. A pesquisa feita pela Fetaesc revelou que uma das principais dificuldades apontadas pelos pequenos produtores - além do preço dos insumos e dos valores pagos pelo fumo - é a contratação de mão-de-obra.

Discurso da moda
A Constituição Federal proíbe o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e qualquer trabalho a menores de 16, salvo na condição de aprendizes, a partir de 14 anos. O Estatuto da Criança e do Adolescente também estabelece que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
Contornar essas restrições representou um desafio para as empresas fumageiras. Elas, como é moda nas grandes corporações, começaram a adotar ações de “responsabilidade social empresarial”. Esse processo é analisado na dissertação de mestrado intitulada “Trabalho infanto-juvenil na fumicultura e responsabilidade social empresarial: o discurso da Souza Cruz”, apresentado em 2005, na UFSC, por Ângela Cristina Pincelli. A Souza Cruz investe pesado nessa área, especialmente nas escolas, com programas como o Clube da Árvore e o Hortas Escolares. Na página do Instituto Souza Cruz está a chamada missão institucional: “Contribuir para educar e formar jovens empreendedores no meio rural brasileiro, através de iniciativas que potencializem seu protagonismo nos processos de desenvolvimento sustentável”.
Na pesquisa, a autora revela como as empresas se beneficiam da forma como se estrutura a agricultura familiar, característica de Santa Catarina e baseada nos elementos família, terra e trabalho. Diz ela: “Embora a empresa atribua o trabalho precoce dos filhos dos produtores de fumo tão somente à tradição de suas práticas sociais, esta mão-de-obra é indispensável para a viabilidade do contrato de integração e, por ser necessária, é naturalizada pelas famílias. O trabalho dos filhos dos produtores na fumicultura tem, portanto, o sentido de dar sustentabilidade ao sistema de integração com a agroindústria. Para a empresa, esta modalidade de trabalho fica sob a única responsabilidade dos pais agricultores, e se constitui em mão-de-obra não-computada na fixação do preço do fumo”.
O técnico agrícola Jaciel Folmer confirma que, principalmente na época da colheita, crianças ajudam os pais na plantação de fumo, chegando até a faltar aulas. O problema é que a planta é exigente. Quando as folhas de fumo começam a amarelecer, é hora de arrancá-las do solo. Chova ou faça sol, seja feriado ou dia santo, é preciso trabalhar. “Ou é isso ou o agricultor vê o dinheiro se perdendo”, diz Jaciel, que atua no Alto Vale do Itajaí através da Rede Ecovida. Aí a família toda vai para a lavoura.
A pesquisa da Fetaesc mostrou que 85,2% dos produtores usam mão-de-obra própria; apenas 14,8% conseguem contratar trabalhadores. O fumo, depois de colhido e vendido, não deixa vestígios para aproveitamento pela família, os animais ou a terra. O mesmo se dá com o trabalho das crianças: esforço físico que não aparece nos custos da produção.

Mercado vai do plantio à venda e exibe lucros bilionários

Um sonho movia as cinco famílias naquele ano de 1948: ter um pedaço de chão para plantar. E aquelas terras ricas no Alto Vale do Itajaí eram do governo. Assim se deu a ocupação, baseada no trabalho coletivo. Mas não havia sossego, porque pistoleiros contratados por madeireiros da região insistiam em amedrontar os moradores. A partir de 1980 as famílias, agora 67, resolveram subir a serra, formando a comunidade de Santa Cruz dos Pinhais, hoje um assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Contada por Osmarildo Cardozo, 42 anos, a história tem um sabor especial. Seu avó, José Valentim Cardozo, estava entre aqueles pioneiros. As famílias plantavam milho, feijão, aipim, mas a terra oficialmente não lhes pertencia, e faltavam crédito, equipamentos, estruturas para armazenar as safras. Aí chegaram as fumageiras com o “pacote tecnológico”: crédito, insumos, garantia de compra. É inegável, afirma Osmarildo, que a vida deu um salto. As casas ficaram melhores, as estradas ganharam calcário. Plantar fumo foi uma alternativa para os pequenos agricultores que, historicamente, precisam chorar migalhas nos balcões do governo. No país, crédito agrícola fácil é coisa para latifundiário. A pesquisa da Fetaesc também mostrou que, entre os 934 produtores consultados, a maioria - 36,41% - planta fumo porque a venda é garantida.
Mas o fumo tem algemas. A cadeia produtiva pela qual a folha se transforma em cigarro relaciona interesses locais a decisões globais. São máquinas, implementos agrícolas e agrotóxicos; transportadores, postos de distribuição e usinas de processamento; mercado varejista nacional e exportação. Os fumicultores são apenas um dos elos desse mercado gigantesco. Basta dizer que, no final de julho, os cadernos de economia dos jornais noticiaram que a BAT (British American Tobacco), da qual a Souza Cruz é subsidiária, teve lucro líquido de 1,34 bilhão de libras (2,7 bilhões de dólares) no primeiro semestre de 2008, 15% a mais que no ano anterior.
Em agosto os jornais catarinenses também noticiaram um novo movimento nessa roda. Indústrias de beneficiamento de fumo estão saindo do Rio Grande do Sul para se instalar em Santa Catarina. Um dos municípios escolhidos é Araranguá, Sul do estado. O objetivo é gastar menos com impostos. Como essas empresas são exportadoras, vendendo 85% da produção ao mercado externo, não precisariam pagar ICMS. É um benefício da Lei Kandir, que dispõe sobre o imposto nas operações relativas à circulação de mercadorias e prestações de serviços. Mas, ao comprarem as folhas de fumo plantadas pelos produtores catarinenses, as empresas são obrigadas a pagar alíquota de 12% de ICMS ao governo de SC ao cruzar a divisa com as cargas. Solução: mudar-se para cá.

Muita classe, pouco dinheiro
Tanto cifra gorda na contabilidade das empresas não evita que, na hora de vender a safra, os produtores tenham que suar para não perder dinheiro. O problema é a classificação do fumo, outro nó que o Ministério Público do Trabalho quer desatar. A Instrução Normativa Nº 10, de 13 de abril de 2007, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é que define a classificação do tabaco em folha curado. Ele é classificado em grupos, subgrupos, classes, subclasses, tipos e subtipos. Isso varia segundo o preparo, apresentação, arrumação, posição nas plantas, cor das folhas e qualidade. Há 48 classes do fumo Virgínia, 29 do Burley e 18 do Comum. É um mistério essa classificação. “A gente classifica em casa, pode ser sempre fumo bom, mas na hora de vender fica sempre na média... se o cara teima, dizem: - Pega o teu fumo e leva de volta”, conta Osmarildo.
O depoimento do agricultor revela o quão penoso é o cultivo do tabaco (veja na página 6). Na época da colheita, as famílias trabalham das 6 às 22 horas para arrancar as folhas do solo, e das 22 horas às 6 para secar a planta na estufa. O sono é “picado”, porque de hora em hora é preciso verificar a temperatura e não deixar o processo de cura estragar as folhas. Na lavoura os produtores já sabem: os nervos, nessa época, ficam à flor da pele. É um período de apuro, e traz à tona o que pesquisas já demonstraram. Para ter o dinheiro do fumo, o único garantido se der tudo certo na colheita, o agricultor abandona temporariamente as demais lavouras. E nessa hora toda a família trabalha.

Tudo envenenado
Hoje Osmarildo joga outras sementes na terra. Parou de plantar fumo há seis anos. Motivos não faltaram. O assentamento está dentro de uma Unidade de Conservação da natureza, a Área de Relevante Interesse Ecológico Serra da Abelha e Rio da Prata. Os órgãos ambientais não permitem o corte de madeira nativa, e o agricultor não tinha árvores exóticas, como o eucalipto, para cortar e alimentar as estufas. “O cara tinha que trabalhar como se fosse ladrão”, compara. Ele também se incomodava porque, com família pequena, precisava contratar mão-de-obra. E houve um momento em que Osmarildo, pai de três filhos, voltou os olhos para a roça: “Era tudo agrotóxico, tudo envenenado... Pensei: como essas crianças vão viver?”. A decisão foi desmanchar a estufa e aproveitar o material para melhorar a casa.
Ele teve que trabalhar para os vizinhos para sustentar a família, mas depois buscou alternativas. Há três anos assumiu os cuidados com o viveiro de mudas nativas da associação de moradores, que leva o nome de seu avô. As mudas são usadas para recuperar a mata ciliar, que fica às margens dos rios e evita problemas como o assoreamento. Enquanto caminha entre os canteiros, pronunciando o nome de cada planta, Osmarildo ensina o que aprendeu observando a natureza. As espécies amigas estão misturadas porque quanto maior a diversidade delas, melhor o equilíbrio ambiental.

Trabalho não-remunerado

Christianne Belinzoni de Carvalho apresentou dissertação de mestrado na UFSC, em 2006, intitulada “Relação socioeconômica dos fumicultores-fumageiras da Região de Sombrio, SC, e uma proposta de transição agroecológica”. Ela entrevistou 42 fumicultores de Sombrio, no Sul do estado, onde, entre 1994 e 2003, houve acréscimo de 140% na área de fumo plantada.
Foi demonstrado que 79% dos agricultores não mais produziam culturas de subsistência como mandioca, milho e feijão. Os alimentos passaram a ser comprados no mercado com o dinheiro do fumo. Christianne mostra que, entre as razões apontadas pelos produtores para não largar a atividade, está a dependência econômica em relação às fumageiras, por causa do financiamento, a longo prazo, do capital fixo.
A remuneração, porém, não é compatível com o esforço: o custo de produção foi, em média, 47% maior, por quilo de fumo, que o valor pago pela melhor classificação. 41% dos agricultores não conseguiram pagar suas dívidas com a empresa, e 33% pagaram, mas não tiveram lucro. Em certas fases do processo produtivo os agricultores chegaram a trabalhar 16 horas diárias.

Agrotóxicos afetam a saúde dos fumicultores e da terra

Evitar a degradação ambiental e danos à saúde pública são duas obrigações que as empresas fumageiras também colocam nos ombros dos agricultores através dos contratos. O plantio do tabaco exige diferentes tipos de agrotóxicos que afetam a saúde da terra, da água e do corpo dos fumicultores.
Os problemas se acentuam na época da colheita. As folhas liberam um resina, o melaço, que gruda nas mãos e forma uma camada espessa, com cheiro insuportável. “Fica ainda pior sob sol forte e quando chove, porque a nicotina da planta é dissolvida pela umidade”, diz o técnico agrícola Jaciel Folmer, que atua no Alto Vale do Itajaí.
Segundo dados do Ministério da Saúde e do Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas da Fundação Oswaldo Cruz, em 2006 foram registrados 1.754 casos de intoxicação humana por agrotóxicos de uso agrícola na região Sul do país. Em agosto, o assunto foi tratado na Assembléia Legislativa, que discutiu o uso de agrotóxicos nos alimentos, o excesso de resíduos e a sua relação com a saúde.
Em contrapartida, em Santa Catarina há um movimento que reúne agricultores familiares, técnicos e consumidores empenhados no trabalho associativo para produção e consumo de produtos ecológicos. Jaciel faz parte de um deles, a Rede Ecovida. Jaciel também integra a equipe que está envolvida no plano de recuperação do assentamento Santa Cruz dos Pinhais, onde a meta é revitalizar as áreas degradadas e preservar a natureza. São caminhos a serem abertos para buscar alternativas ao fumo.
Além da contaminação por agrotóxicos, outro problema é que o cultivo do tabaco exige, além da área plantada, muito consumo de madeira para a secagem nas estufas. A pesquisa da Fetaesc com os agricultores revelou que a lenha é um dos principais custos na produção. 55% precisam comprar madeira, o que indica a não-renovação dessa fonte de energia nas propriedades.
Em maio, a Fundação SOS Mata Atlântica e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) divulgaram a conclusão dos levantamentos do “Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica”. Os estudos feitos a partir de imagens de satélite mostram que essa floresta está reduzida a 7,26% de sua área original. Santa Catarina foi o estado que mais desmatou, com 45,5 mil hectares de Mata Atlântica perdidos entre 2000 e 2005. Um hectare tem 10 mil metros quadrados. É mais um custo ambiental que o preço do cigarro não cobre.

Da muda à secagem, labuta de quase um ano

O cultivo do fumo é penoso. Todo o ciclo produtivo pode chegar a 12 meses:
1 - As mudas são semeadas em bandejas de isopor ou plástico que flutuam na água, sistema batizado de float. Isso dura de 60 a 90 dias, com duas a três podas.
2 – As mudas são plantadas no solo preparado e começam os tratos: adubar, aplicar agrotóxicos, capinar, retirar brotos e flores. As empresas indicam e vendem os agrotóxicos e fertilizantes que devem ser usados tanto no sistema float quanto no trato direto no solo. Há, entre outros, bactericidas, fungicidas, fumigantes, herbicidas, inseticidas e reguladores de crescimento.
3 – O agricultor inicia a colheita quando as folham começam a ficar amarelas, e não pode adiar o trabalho. O risco é a perda da safra. No fumo de estufa a colheita é feita em etapas, das folhas de baixo até as folhas de cima. É a parte do processo que mais exige mão-de-obra. Na colheita aparecem os sintomas do que a Organização Mundial de Saúde chama de “doença do tabaco verde”. A intoxicação pela nicotina provoca sintomas como tonturas, dores de cabeça, enjôos e até desmaios, alucinações e convulsões.
4 – As folhas são penduradas em varas ou grampos e ficam na estufa por cerca de sete dias para completar o processo de secagem. Elas perdem água e mudam de cor, transformações bioquímicas que dão a característica das diferentes marcas de cigarro. A secagem deve obedecer indicações precisas de temperatura para que curar bem as quatro partes da folhas. Disso depende o preço na hora da venda.
5 – Com base na classificação inicial feita pelo produtor, as folhas são agrupadas em maços, também chamados de manocas ou bonecas, e armazenadas em paióis. Os fardos são depois transportados para os depósitos das empresas para nova classificação, desta vez pela própria empresa, e venda.
A Instrução Normativa Nº 10, de 13 de abril de 2007, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, é que define a classificação do tabaco em folha curado. Ele é classificado em grupos, subgrupos, classes, subclasses, tipos e subtipos, segundo o preparo, apresentação, arrumação, posição nas plantas, cor das folhas e qualidade. Há 48 classes do fumo Virgínia, 29 do Burley e 18 do Comum.

Quadro montado a partir da pesquisa de Christianne Belinzoni de Carvalho e de informações dadas por agricultores de Vitor Meireles.

Produtores entram na Justiça em Papanduva

A advogada Anilse Slongo Seibel representa 18 pequenos agricultores de Papanduva e 3 de Rio do Campo, no Norte do estado. O motivo das ações declaratórias de rescisão contratual, com indenização por danos morais e materiais, é o mesmo.
Os produtores acumulam prejuízos com o fumo porque a estimativa de safra calculada pelas fumageiras nunca foi atingida. “As empresas chegam dizendo que vai ser o melhor negócio da vida deles, mas depois a produção não dá para pagar as contas”, conta a advogada. Ela observa que são pessoas simples, às quais não são informados os riscos da atividade.
Até agora a vitória na Justiça foi conseguir as cópias dos contratos assinados pelos agricultores. Um deles, que só conseguiu o extrato de sua dívida através de medida judicial, descobriu que devia quase 14 mil reais. A ação desvenda o motivo: “Ano após ano, o autor tentou inexitosamente sanar o seu débito plantando mais e mais fumo, mas, ao contrário do que pretendia, só viu a sua dívida aumentar, diante dos altos preços que pagava pelos insumos e sementes fornecidas pela fumageira ré”.
Como muitos produtores assinaram notas promissórias em branco, o receio é que sejam levadas a protesto ou até execução.

Faltam crédito e seguro para a agricultura familiar

A atuação do MPT, com ações jurídicas de fundamento e base legal, se constituem na defesa da saúde coletiva e do meio ambiente quando intervém no bilionário mercado do fumo, e trazem à tona interesses complexos. Nas defesas que apresentaram nas ações, as empresas enfatizam o papel do setor na geração de empregos e impostos. O sistema integrado, respaldado nos contratos, é visto como modelo exemplar de produção. As fumageiras listam as suas vantagens: planejamento de safra, assistência técnica e financeira, garantia de compra da produção, levantamento de custos, preservação ambiental e responsabilidade social. Numa realidade de forte empobrecimento no campo e de êxodo rural, a renda gerada pelo plantio do fumo é um dos pilares que sustentam a defesa do setor nas ações civis públicas.
Para Altair Lavratti, da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o que fica esquecido nesse debate é o aspecto político: “Quem planta milho, feijão, mandioca, não tem seguro. Se perde a produção, acumula dívidas. O fumo dá essa possibilidade de seguro, mas é uma possibilidade ´fantasma`, porque é preciso comprovar a perda”. Lavratti diz que o governo não protege a pequena agricultura, ao contrário do que faz com os latifundiários, que têm crédito e seguro agrícola e podem prorrogar o pagamento das dívidas. “Os pequenos agricultores correm todos os riscos sem direito de reclamar.”
Com relação ao trabalho infantil, ele faz uma diferença fundamental. Os filhos de agricultores desde pequenos querem ver os animais nascerem, alimentá-los, ordenhar as vacas, cuidar da horta. “Mas colocar a criança e o jovem para trabalhar num produto danoso à saúde e ao meio ambiente, que destrói, tem outro viés, porque também há um vínculo de trabalho que não é pago.” Isso porque, na época da safra, se não pude contratar mão-de-obra, toda a família terá que trabalhar. Lavatti constata que Santa Catarina está cada vez mais voltada para a monocultura, como é o caso das extensas plantações de pinus e eucalipto para a fabricação de celulose. Em lugar disso, o estado deveria valorizar o potencial da agricultura familiar para a produção de alimentos.

Informe
O Setor de Comunicação do SINTRAJUSC, Sindicato para o qual esta reportagem foi feita, ligou para a direção da Afubra em Santa Cruz do Sul (RS) para ouvir a associação sobre as ações do MPT. As perguntas foram enviadas por correio eletrônico, mas a assessoria da entidade comunicou que, em função da agenda lotada por causa da negociação da próxima safra, não foi possível dar as respostas.

“Ser uma herança cultural não legitima o trabalho de menores na lavoura”

A Procuradora do MPT em Santa Catarina Cristiane Kraemer Gehlen Caravieri concedeu entrevista sobre as ações. Confira:

Desde o ajuizamento das 11 ações até agora, quais foram os resultados obtidos com relação aos pedidos do MPT?
Quando do ajuizamento das ações, algumas liminares foram concedidas tanto em Santa Catarina como no Paraná. Atualmente, em decorrência da declaração de incompetência dos Juízes de Santa Catarina para o julgamento das demandas, remetendo parte delas para o Distrito Federal, as liminares foram cassadas e assim o resultado é nenhum.

A divergência se refere ao juízo competente para processar e julgar essas ações civis públicas, por se discutir a ocorrência de danos em abrangência supra-regional. Qual é a decisão mais recente em relação a isso?
Os Juízes do primeiro grau em Santa Catarina entenderam ser o Distrito Federal o Juízo competente; as Turmas do TRT da 12ª Região estão confirmando essas decisões, à exceção de um julgamento que manteve a competência da vara de Florianópolis; já no Paraná, o Juízo se julgou competente para as 6 ações ajuizadas lá e mais as 11 daqui e as que eventualmente pudessem ser ajuizadas no Rio Grande do Sul. A decisão mais recente é a de um Juiz de vara do Distrito Federal suscitando conflito positivo em relação à decisão do Paraná e determinando a remessa de ação que foi ajuizada aqui em Santa Catarina para o TST decidir o conflito.

Que medida a ser tomada pelas empresas é considerada pelo MPT a mais urgente para manter a produção de fumo dentro de tudo o que é pedido pelo MPT nas ações?
Não existe apenas uma medida, porque são vários os fatos e fatores que levam as famílias dos agricultores a viverem em estado de quase escravidão: crianças e adolescentes teriam que ser imediatamente afastados das atividades do campo; as dívidas por financiamentos de insumos, agrotóxicos e sementes teriam que ser canceladas pelas fumageiras, pois os agricultores não conseguem saldá-las. Sabe-se que a situação piorou em decorrência das intensas chuvas, que destruíram várias plantações de fumo no Estado.

Do ponto de vista prático, que diferença há entre o pedido de “nulidade” e de “anulação” dos contratos firmados com os agricultores?

Acaso julgado procedente o pedido de nulidade dos contratos de compra e venda de fumo, deve o Poder Judiciário reconhecer que a natureza da relação jurídica existente entre as fumageiras e os produtores rurais por elas contratados, aí incluídos os seus familiares com idade superior a 18 anos de idade, é empregatícia, e determinar que sejam anotadas suas CTPS, condenando as empresas nos diversos pedidos das ações. Acaso anulados os contratos, deve o Poder Judiciário declarar a inexistência de débitos dos produtores rurais perante as empresas requeridas, bem como que as rés se abstenham de firmar com os produtores rurais do Estado de Santa Catarina contratos de integração com o mesmo conteúdo e teor dos atualmente pactuados, devendo os contratos futuros serem redigidos de forma a refletir direitos que garantem a igualdade das partes pactuantes, excluindo-se todas as cláusulas lesivas mencionadas no texto das ações, bem como condená-las em outros pedidos expostos ao longo das iniciais.

Com relação ao trabalho infantil, há um discurso das empresas de que se trata de “tradição cultural” na fumicultura. Como o MPT avalia esse discurso?
Ser uma herança cultural não legitima o trabalho de menores na lavoura. A proibição é até que os menores completem 18 anos de idade. A legislação em vigor proíbe o trabalho de menores em atividades insalubres e perigosas. Tal legislação decorre de estudos médicos que comprovaram que enquanto em desenvolvimento, o ser humano sofre lesões graves e até irreversíveis se em contato com agentes insalubres (agrotóxicos, no caso das lavouras) ou perigosos. Em muitos aspectos, heranças culturais não passam de mais uma faceta do regime de escravidão a que vem se submetendo o nosso País.

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