Por Marcela Cornelli
Moro em uma comunidade pobre do Maciço do Morro da Cruz, trabalhava em uma rede de supermercados e, quando meu filho mais velho tinha 9 anos, voltei a estudar. Com as cotas pude entrar na universidade. Ao pedir as contas do meu emprego fui questionada: ‘mas você já não tinha um emprego?’, ‘o que está fazendo agora?’ Agora não carrego mais caixas. Vivo de bolsa. Sou estudante. Até para meu marido não foi fácil explicar que eu não iria mais trabalhar, iria estudar. Esta é a difícil condição da mulher, negra e pobre na nossa sociedade”, conta Luciana de Freitas Silveira estudante cotista de Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), militante do Movimento Negro Unificado (MNU) e do 4P - Poder para o Povo Preto/UFSC. A história de Luciana se repete Brasil afora. Com a instituição das cotas nas universidades em 2003, um passo importante para grandes mudanças foi dado.
“As cotas estão dentro de um projeto maior: as políticas de ações afirmativas. Quem precisa se afirmar? Os grupos sociais e/ou étnicos que foram historicamente excluídos, em virtude do processo de modernização da sociedade que é excludente, como apontam estudos. No caso brasileiro, os africanos escravizados e as sociedades indígenas foram as ‘vítimas preferenciais’, pois durante muito tempo foram vistos pelos colonizadores e seus descendentes como seres inferiores intelectual e fisicamente”, aponta o professor da Universidade Federal de Pernambuco, José Bento Rosa da Silva.
“As cotas étnicas nas universidades são reivindicações que remontam a década de 40 e 50. É bom lembrar que outros países já estabeleceram cotas, como os EUA, a partir da luta pelos direitos civis dos negros nos anos 60. E o que foi a criação do Estado de Israel em 1948? Uma espécie de reparação pelo que os judeus sofreram no decorrer da segunda guerra mundial. Portanto, temos precedentes de ações afirmativas, de ações reparadoras. As cotas são isso também na história contemporânea”, resume o professor José Bento.
“Os negros foram expropriados e sequestrados para trabalhar em outras nações. A população negra ficou excluída de todas as políticas que pudesse levá-la a um processo de igualdade. Por isso, se exige a reparação e direitos fundamentais como saúde, educação e habitação, que lhes foram negados nestes anos de história. As cotas são parte desta reparação”, diz Maria de Lourdes Mina, Lurdinha, militante do Movimento Negro Unificado (MNU).
Lurdinha lembra que 52,8% da população brasileira é negra e que as cotas vão atender cerca de 12% desta população. “Uma parcela ínfima. As cotas vêm para minimizar a desigualdade e promover parte da equidade. Vamos ter um país que promove a igualdade e discute com a sociedade as desigualdades existentes”.
“Um amigo me disse outro dia que antes, ao andar pela UFSC, não avistava negros. Estamos nos vendo mais dentro da universidade. É o negro se empoderando na universidade e isso assusta porque não se tem um debate mais profundo, ou por desconhecimento ou por medo. Quando me apresento como cotista, há um silêncio na sala. Ninguém quer debater a importância disso, nem o professor, nem os demais alunos. Ainda há muito preconceito racial que é estrutural no meio acadêmico”, opina Luciana.
“Os estudantes cotistas sofrem com o preconceito, principalmente em algumas regiões mais conservadoras do Estado”, diz Ticiane Caldas de Abreu, estudante cotista do curso de História da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Ticiane trabalha em um projeto em várias regiões de Santa Catarina que tem o objetivo de ajudar os alunos cotistas pedagógica e psicologicamente. Ela também acredita nas cotas como forma de reparação dos anos de desigualdade racial e social. “Na sociedade brasileira, a desigualdade social também tem cor, por isso, não podemos abandonar o discurso de raça no conceito de desigualdade social”.
“Como manter o sistema de meritocracia, se não fomos tratados de forma igual? Quando o negro foi liberto, não lhe foi dado qualquer condição de trabalho. Como os negros eram considerados mercadorias, a lei os tratou como mercadorias. Mesmo libertos, trabalhavam em troco de comida e não tinham acesso à educação”, reforça Wilson Martins Lalau, representante do Sinergia.
Historicamente, o Movimento Negro Unificado defende a reparação. “A África foi espoliada. Os europeus usurparam do povo africano peças de arte e diamantes que dariam para matar a fome do Continente. Os reflexos desta usurpação e do racismo pelos povos ocidentais europeus na África deixaram marcas até hoje. O que se vê nas grandes cidades é que a maior vítima de crimes, violência e das ações da polícia é a população negra, bem como a que tem menos acesso à saúde, educação de qualidade e, consequentemente, aos melhores empregos”, diz Lalau.
“Até então qual era o papel do negro na sociedade? O lugar do negro era no chão de fábrica, na cozinha. Sempre fomos vistos na condição de empregados e agora estamos nas universidades”, reforça Lurdinha.
No entanto, para Lalau, apesar do sistema de cotas aprovados, o Brasil não tem uma política de fato de combate ao racismo. Exemplo disso é a Lei 10.639 que institui o ensino sobre a história da África nas escolas e até então não foi implementada. “Enquanto não houver um ensino que comece a trabalhar estas questões na educação do país, não vamos avançar mais”. Na sua opinião, quando os movimentos tentam se organizar para lutar, a exemplo também do movimento indígena, há uma forte criminalização dos mesmos por parte dos governos, o que impede também que a lute avance.
Cotas no serviço público também são formas de reparação
Além das cotas nas universidades, foi aprovada neste ano a lei que institui cotas nos serviços públicos. Para Lurdinha, as cotas nos serviços públicos são um avanço apesar de serem restritas ao executivo, deixando o legislativo e o judiciário de fora. “Ainda há muito pelo que lutar”. Já o professor José Bento, lembra que estes grupos não entrarão sem concurso público, “mas será um concurso dentro da sua especificidade, dentro do pressuposto de tratar diferentemente os diferentes, até porque, os diferentes geralmente são tratados como desiguais, socialmente falando. Então as cotas visam suprimir as desigualdades, não as diferenças humanas”.
No Estado de Santa Catarina andamos a passos lentos
Em Santa Catarina, não há uma política para a população negra. Há poucas oportunidades para as crianças pobres e negras. Em Florianópolis, cinco colégios que atendiam a esta parcela da população foram fechados, a exemplo do Celso Ramos e do Antonieta. “Foram fechados de forma intencional, impossibilitando estas crianças que ali estudavam de acessar a educação pública”, diz Lurdinha. Ela lembra que os movimentos sociais e sindicais defendem outras bandeiras além das cotas, como o fim da violência policial e o genocídio da população negra e indígena no país e a titulação das terras das comunidades quilombolas. “É um enfrentamento direto com os latifundiários, com o agronegócio, com grandes empreiteiras que querem as terras para construir grandes empreendimentos”.
“Só vamos mudar esta realidade através da educação. Quem hoje no país tem uma educação mais crítica, que compreenda as relações de poder, que debata outro modelo de sociedade? Sem uma educação com senso crítico da sociedade em que vivemos, não se pode fazer mudanças profundas”, reflete Lurdinha.
O professor José Bento também avalia que solução está na educação. “É preciso educar para outras maneiras de conceber e ver o mundo. O modelo ocidental, capitalista não dá conta das nossas diversidades. É preciso elaborar outras epistemologias, outras maneiras de conhecer e conceber a sociedade e a vida do ser humano. Isso pode se fazer com políticas macro e micro, ou seja, nos sindicatos, associações, entidades de classe, movimentos sociais, etc.”, finaliza.
Fonte: Revista Previsão nº 7 – agosto 2014
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