quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Por amor a São Luiz e às pessoas que lá vivem

Míriam Santini de Abreu

Das viagens que fiz, tenho esse especial amor por aquela que, em fevereiro de 2009, me levou, com o Pepe, a São Luiz do Paraitinga (SP) e a Paraty (RJ). Em janeiro, pouco antes da viagem, uma violenta tromba d`àgua atingira Paraty. E no mesmo mês, em 2010, foi a vez de São Luiz Em meio a tantas cenas de destruição e mortes no noticiário sobre as chuvas no Sul e Sudeste, foi com imensa tristeza que vi o que aconteceu no pequeno município que visitamos.

E imensa porque aquela, em particular, foi uma terra sobre a qual andei, onde moram pessoas que conheci, com uma espessa história sobre a qual li. É a conexão profunda com o conhecido, com o que, no sentimento, se individualiza, se torna único.

Houve um fato em particular naqueles dias em São Luiz, aquela madrugada na qual acordei para flagrar a lua cheia. O tempo estivera chuvoso, mas eu esperava que, por uns minutos, as nuvens pesadas se abrissem para deixar vazar o brilho do luar. O luar do sertão paulista, lugar imaginário pelo qual, desde pequena, cultivo essa estranha confusão de sentidos. Para meu deleite, ela apareceu, pálida e linda, e fiquei eu a balançar o corpo na rede pendurada na varanda da pousada, cercada por araucárias, no ar um cheiro de mato, e no horizonte as luzinhas de São Luiz.

Ah, com que gosto eu caminhei por aquelas ruas, onde o povo se preparava para o Carnaval! Os casarões coloridos, a comida boa do Cantinho dos Amigos, a casa-museu adorável onde morou a família de Oswaldo Cruz, atrás da qual, numa moita de taquaruçus, eu imaginei ver os olhinhos dos sacis. Foi ali que uma estranha ventania sacudiu as árvores da mata atrás da casa, varreu as folhas e fez a atendente do museu fechar todas as janelas.

Agora, vendo as imagens na tevê, me espanto com o fato de que as antigas casas, a igreja no centro da praça, o coreto, boa parte do que eu e Pepe fotografamos, desapareceu sob a lama. Deixou de ser. Deixou de estar. Sim, compreensível como fato, com as explicações meteorológicas, a forma de ocupação do espaço geográfico, os humores do rio. Mas tudo isso, para a alma, é incompreensível. Tal como em Pompéia, uma parte de mim ficou lá, imobilizada, não sob cinzas, mas com a chuva e o barro que levaram casas e histórias para o leito barrento do rio Paraitinga.

Leia abaixo a reportagem que a revista Pobres & Nojentas publicou sobre São Luiz do Paraitinga na edição 17 (março-abril de 2009):

Como encontrar saci no sertão paulista

Por Míriam Santini de Abreu, de São Luiz do Paraitinga (SP)

Cheia de quietude, fui espiar a noite. Os vagalumes eram uma corda de luz dançando no negrume. Atrás de um capão de araucárias, a distante claridade pálida era outra, a da cidade. Então, ouvi um farfalhar vindo duns arbustos. As folhas balançavam de um jeito quase faceiro. Segurei a respiração. Seria um saci?

Era o moleque que eu desejava ver naquele lugar batizado de São Luiz do Paraitinga, região do Alto Paraíba, no topo da Serra do Mar. Ali se está a 170 quilômetros de São Paulo e a 44 de Taubaté, a cidade onde nasceu o escritor Monteiro Lobato, que popularizou o saci com as histórias ambientadas no Sítio do Picapau Amarelo. Foi em São Luiz que, em 2003, um grupo de jornalistas, músicos e artistas fundou a Sociedade dos Observadores de Saci, a Sosaci. E desde então o calendário cultural da cidade tem festa dedicada ao guardião das matas, realizada no final de outubro.

São Luiz é contornada pelo rio Paraitinga, que às vezes se rebela contra as margens e alaga casas e ruas. O município tem 90 edificações do século 19 tombadas pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de São Paulo). A fama do casario histórico - maior núcleo arquitetônico antigo do Estado - se iguala à dos festejos do Carnaval e da Festa do Divino, épocas em que os visitantes se apinham nas ruas do Centro. A cidade de cerca de 11 mil habitantes agora também alimenta o desejo de - como se diz - reflorestar o saci no imaginário brasileiro.

Contam as histórias coletadas pela Sosaci que, na cultura dos povos originários destas terras, o saci era um curumim, encantador de crianças e adultos. Depois se enlaçou com a cultura africana e portuguesa. Tornou-se negro, ganhou um gorro vermelho e um cachimbo na boca.

Geraldinho Santos, taxista cujo ponto é na Praça Oswaldo Cruz, na frente da Igreja Matriz dedicada a São Luís de Tolosa, sorri de leve quando embarco e pergunto se ele já viu saci. Depois, sério, conta histórias de quando era guri e temia as estranhas luzes e barulhos no escuro do sertão. Na frente da Destilaria Mato Dentro, onde desembarco e o relato de Geraldinho tem o ponto final, há um vigilante saci de olhos vermelhos.

Na dissertação de mestrado em História que defendeu na Universidade de São Paulo, o pesquisador João Rafael Cursino dos Santos conta que São Luiz era ponto de passagem de tropeiros e de escoamento de mercadorias rumo ao porto de Ubatuba, no litoral norte paulista. Isso foi nos séculos 17 e 18, período em que a movimentação de tropas deu impulso ao comércio de beira de estrada e ao início de povoamentos e cidades. Quando se completou a ligação de Minas Gerais direto ao Rio de Janeiro para transporte de ouro e diamantes, a pequena localidade no alto da Serra paulista caiu em decadência.

Foi o cultivo de café no Vale do Paraíba, em meados do século 19, que mais uma vez movimentou a vida em São Luiz. São daquele período as construções de prédios públicos e particulares hoje preservadas no Centro Histórico, algumas feitas de taipa-de-pilão, com paredes internas de pau-a-pique. Mais tarde, com a produção de café estagnada, o município retomou a agricultura de subsistência e ficou à parte do crescimento industrial do Vale do Paraíba no século 20.

Parte do antigo casario está na rua Domingues de Castro, onde fica o Cantinho dos Amigos. Foi nesse restaurante que, na busca do saci, encontrei as “Estórias de uma perna só”, literatura de cordel tamanho ¼ de folha de ofício, exposta no Caixa:

- Quem escreve? – perguntei, afoita.

- O Ditão, esse que acabou de sair daqui.

Fui para a rua e fiz parar o primeiro que passava:

- Viu o Ditão?

- Sim, ele foi em direção ao Mercado Municipal.

Corri até o local mencionado, um prédio de 1902, da cor do Mercado Público de Florianópolis. À venda encontrei brincos, broches, todos com a carinha do saci. Pulei de uma banca para a outra:

- Alguém viu o Ditão?

- Sim, na distribuidora ao lado do Correio. É onde o Ditão costuma ficar.

No caminho até lá, cruzando umas três ruas, os meus informantes me perguntavam:

- Encontrou?

***

Os homens conversavam em volta de uma mesa. Eu entrei espevitada. Benedito Virgilio, o Ditão, estava lá, camisa listrada, chapéu gasto encobrindo as ruginhas em volta dos olhos. Meia hora depois, na beira do rio Paraitinga, o autor das “Estórias de uma perna só” relatava o encontro que teve com o saci, também contado no número 1 da série de livrinhos.

Foi num dia em que o pai saiu para cortar lenha e levou o filho. Já estavam na mata quando Ditão, então com uns seis anos, ouviu um barulho vindo dum pé-de-vento. Algo com um chiiiii, folha seca sendo pisada. Era o saci. Esquecido do pai, entrou na floresta. Ao longo do caminho, pulando entre pés de angico, guarantã, cipó-cambira e caraguatá para provar frutos e mel, o saci levou o menino até um muxoco, árvore de raiz profunda que só nasce onde a terra está úmida. E próximo da mina d´água havia uma touça de taquaruçu, o espinhento bambu que é a casa do saci. “Lá no meio da touça eu vi/ Mais de uns trinta sacis/ Pulando de lá pra cá/ Com um pedaço de pau/ Espantava os picapaus/ Que vinham o gomo picar/ Os gomos tinham um furinho/ De onde saíam uns sacizinhos/ Nos seus cachimbos a fumar/ Mal acaba de nascer/ Já sente este prazer/ Do pito não quer largar.”

Ao longo do trajeto, o saci então revelou ao menino como encontrar água e alimento no meio da mata. Já diziam os personagens de Monteiro Lobato: o moleque de uma perna só já nasce sabendo tudo!

Assim como esta, outras histórias de Ditão fazem da natureza o cenário. Uma das mais conhecidas é “O Saci e o Eucalipto”, crítica à monocultura introduzida nos anos 1970 e que faz um cinturão em volta da cidade: Esta planta suga a terra/ As nascentes estão secando/ Nossos rios caudalosos/ Devagar vão se acabando/ As fazendas destruídas/ Pelas máquinas vão tombando/ O caipira sem destino/ Pra cidade está mudando”.

Nascido em São Luiz há mais de cinco décadas, Ditão ficou longe da cidade natal quando, aos 22 anos, foi morar em São José dos Campos para trabalhar na Embraer. Foi e rapidamente voltou. Hoje é apicultor, fabrica queijo e cuida de algumas cabeças de gado e de pés de fruta num sítio onde ainda existe floresta nativa. Mas é na cidade que ele vai “sacizar”, conversar com os amigos e alimentar a imaginação para as “Estórias de uma perna só”. A série, iniciada em 2004, irá emplacar o número 30, e a meta é chegar ao 365, um livrinho para cada dia do ano. Haverá até o do saci e o ano bissexto.

Ditão crê nos seres da terra, das matas. “Eu acho que existem coisas diferentes que as pessoas não conseguem mais ver por causa da luz elétrica à noite, por estarem sempre em seus carros”. A luz elétrica, marco da vida nas cidades, afugenta o saci. Desencanta a natureza do sertão.

***

O Carnaval de Marchinhas hoje é a principal festa de São Luiz, ultrapassando até a Festa do Divino, cuja referência mais antiga é do início do século 19. As festas, o casario histórico e a fama de “último reduto caipira do Estado do São Paulo” levam cada vez mais gente à cidade. O turismo é visto como alternativa de desenvolvimento e renda. Mas, na dissertação de mestrado defendida por João Rafael Cursino dos Santos, fica a pergunta: de que forma o turismo afetará o que é a própria razão da vinda do turista, a cultura popular, mesmo que já tão modificada com o passar do tempo?

A Sosaci nasceu daí, do desejo de valorizar a mitologia brasileira, a cultura popular, para se contrapor à invasão da cultura estrangeira. Agora, passados seis anos de sua criação, também atua em outra vertente, a lúdica. Quer reavivar nas crianças o gosto pelas brincadeiras de amarelinha, cabo-de-guerra, pião. “O nosso objetivo é incluir o estudo da mitologia brasileira na rede pública de ensino”, diz o jornalista Jô Amado, que saiu da cidade grande para morar em São Luiz. Ele é um dos “saciólogos” (estudiosos do saci) que, naquela noite fria de julho de 2003, num boteco da rua Domingues de Castro, fundou a Sociedade.

O primeiro alvo da Sosaci foi o Halloween, o Dia das Bruxas, de tradição celta, comemorado nos Estados Unidos em 31 de outubro. A festa se espalhou Brasil afora e, em escolas públicas e privadas, as crianças são estimuladas a participar da brincadeira. Como nos filmes estadunidenses, arrecadam doces nas casas com o mote “Doçuras ou Travessuras?”. Mas em São Luiz a festa é batizada de Raloim Caipira. O prato de resistência é abóbora com carne seca.

***

Quando São Luiz fica para trás, o ônibus começa a descer os 52 quilômetros Serra do Mar abaixo até Ubatuba, no litoral. Um lugar dos meus mais secretos desejos, aquela mata tão pisada de história. Se o sertão é dentro da gente, como diz o Riobaldo de Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, então o meu é aquele onde a escarpa da Serra do Mar ajoelha-se no Planalto Paulista. E o meu saci é o mesmo do Ditão, como ele diz: é mais um sentir do que um ver.

BOX

Para saber mais:

Veja Ditão Virgilio no endereço da P&N no YouTube:

http://br.youtube.com/PobresyNojentas

Leia o poema “O Saci e o Eucalipto” em:

http://www.overmundo.com.br/blogs/cordel-do-saci-e-do-eucalipto

Sobre os significados do sertão: Texto “Região, sertão, nação”, de Janaína Amado, disponível em:

http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/169.pdf

Sobre o modo de vida caipira: Texto “Na travessia da modernidade: imaginação poética e resistência na memória de caipiras em São Luiz do Paraitinga”, de Bruno Simões Gonçalves, disponível em:

http://www.sapientia.pucsp.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=5439


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