quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Avalanche nos shoppings

Celso Vicenzi - Jornalista (Florianópolis/SC)


Fico impressionado com o que acontece em dias de chuva. Não me refiro aos deslizamentos de morros e encostas ou às enchentes que têm vitimado muitas famílias por todo o Brasil. Reporto-me à avalanche de turistas e nativos que parecem não ter outra ideia para um dia de chuva do que correr para os shoppings centers. O fenômeno é nacional e particularmente observável em Florianópolis, onde o caos no trânsito, faz-se de imediato.

A muito poucos ocorre, por exemplo, de abrir um livro e no silêncio temperado pelo som da chuva, deliciar-se com boa literatura. Ou quem sabe aproveitar para assistir bons filmes (raros nos shoppings!), escutar boa música, escrever, pintar, conversar... A civilização moderna parece viciada em barulho e agitação. Tem verdadeiro pavor da introspecção e da reflexão. Movimenta-se por automatismo, delicia-se no consumismo (sem perceber que suas vidas são também consumidas em banalidades, superficialidades, egocentrismo).

Em recente entrevista publicada na imprensa, o ministro da Cultura, Juca Ferreira, traduziu em números essa questão abissal: “Temos uma realidade dantesca na cultura brasileira. A gente não consegue envolver culturalmente 20% da população com única exceção da TV aberta. Só 8% foram a um museu, só 13% vão com alguma regularidade ao cinema, só 17% compram livros, mais de 90% das cidades não têm cinemas. A realidade é muito grosseira e excludente. Ou seja, não dá para garantir desenvolvimento cultural no Brasil nessas condições. E a Lei Rouanet aprofunda, acirra essa desigualdade, essa desconcentração, esses privilégios e essas exclusões, por isso tem que mudar”. Pois é. Não vou nem comentar sobre a qualidade de livros e filmes que essa população, que já é minoria, lê e vê, para não desesperar. A estatística já é suficientemente assustadora.

O que se espera de um país que já está entre as 10 maiores economias do planeta e tem pretensões de chegar em 2020 entre as cinco maiores? Certamente como nação seremos muito parecidos com esses novos ricos (e cá entre nós, entre os mais antigos também há poucas exceções) que, sem um mínimo de educação e cultura, se deleitam com a vulgaridade, posam para a mídia das futilidades e gastam tempo e dinheiro com banalidades.

Sem um povo com acesso à boa educação (não confundir com erudição), com noção da história, da política, da ciência e da cultura, que país será este? Onde queremos chegar? Que legado deixaremos? Como defenderemos a nossa cultura (a nossa genuína forma de nos constituirmos como um povo), se dela não temos a mínima noção, não a valorizamos e nos deliciamos com o lixo cultural de grandes produtores internacionais? Como se isto também não fosse uma questão de segurança nacional... mas não quero ir tão longe. Voltemos ao passado, para tentar entender.

Quinhentos anos depois da chegada dos europeus, repetimos os mesmos vícios, perpetuamos os problemas. Relatos frequentes de viajantes estrangeiros que circularam pelo Brasil, sobretudo no século 19, quando a Corte portuguesa já se instalara no país, chamavam a atenção para “o analfabetismo, a falta de cultura e instrução”, escreve o jornalista Laurentino Gomes, autor do memorável “ 1808” , que traduz muito da alma brasileira e das raízes daquilo em que viemos a nos transformar. “O Brasil não é lugar de literatura”, afirmou James Henderson, que aqui esteve em 1819. “Na verdade, a sua total ausência é marcada pela proibição geral de livros e a falta dos mais elementares meios pelos quais seus habitantes possam tomar conhecimento do mundo e do que se passa nele. Os habitantes estão mergulhados em grande ignorância e sua consequência natural: o orgulho”. Já o botânico inglês William John Burchell, que percorreu o Brasil entre 1825 e 1830, escreveu que “neste país de analfabetismo, não se encontra ninguém que tenha intimidade com a noção de ciência”. E assinalou: “Aqui, a natureza tem feito muita coisa – o homem, nada. Aqui, a natureza oferece inumeráveis temas de estudo e admiração, enquanto os homens continuam a vegetar na escuridão da ignorância e na extrema pobreza, consequência apenas da preguiça”.

Exageros à parte, preguiça de nobres e ricos daquela época, sejamos claros, porque os escravos e os pobres sempre trabalharam muito. Como o fazem até hoje. E sem que participem minimamente da distribuição de toda a riqueza. O Brasil é o oitavo país com a maior desigualdade social, na frente apenas da Guatemala e dos africanos Suazilândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesoto e Namíbia, segundo o coeficiente de Gini, parâmetro internacionalmente usado para medir a concentração de renda. No Brasil 46,9% da renda nacional concentram-se nas mãos dos 10% mais ricos, enquanto os 10% mais pobres ficam com apenas 0,7% da renda.

Há um provérbio africano que diz: “A pobreza é a escravidão”. Portanto, é perfeitamente constatável que a escravidão não acabou, apenas tornou-se legitimada por uma pseudodemocracia – ou uma democracia meramente eleitoreira. Porque na essência, como bem disse o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, “democracia serve para todos ou não serve para nada”. Boa parte do Parlamento, do Judiciário, do Executivo, do empresariado, de associações e sindicatos e, não vamos esquecer, de todos os cidadãos que tiveram acesso a uma boa educação, juntos poderiam fazer uma grande transformação, mas preferem manter a maioria da população nos limites da sobrevivência. E da ignorância. Ou vocês irão me dizer que essas estatísticas e essa realidade que vivenciamos são obra do acaso?

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