segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Almas de pedra e madeira


Míriam Santini de Abreu

Casa é substantivo concreto, diz a classificação da língua portuguesa. Para mim, é abstrato. A pedra e a madeira de que são feitas têm alma. As casas são seres vivos. Elas nascem, crescem, envelhecem e morrem. As casas rangem, mudam de humor se está frio ou quente. As portas vergam, se expandem; as maçanetas enferrujam, o reboco se esfarela. As casas têm espírito.
Isso, dirão os descrentes, são apenas fenômenos físicos e químicos. É claro. Mas, desde o início dos tempos, somos, os humanos, fadados a interpretar, a dar sentido às coisas. Por isso nos custar tanto largar a vida, a vida que alimentamos também dentro de casa.
Minha avó Antônia faleceu há quase 25 anos, e ainda está no beco da Olavo Bilac a casa onde ela morava, hoje habitada por dois primos. A tinta se foi; a madeira, de tão apodrecida, em alguns cantos se solta ao toque dos dedos; as telhas só por milagre ainda não despencaram do beiral. Nada resta, mas, contraditoriamente, resta tudo, porque ali estão cristalizadas as minhas mais antigas memórias de infância.
O sótão era o que mais me apavorava. Que medo quando os degraus de madeira cediam sob o meu peso de menina e gemiam! E eu mesmo assim subia, atraída por um não sei o quê de mistério, de algo a ser secretamente revelado. Da janelinha eu via a rua, a solitária araucária na frente do terreno, e umas flores cujo nome não sei e nunca mais flagrei em jardim nenhum. Até as flores saem de moda.
A vó morava na parte de cima da casa e eu, meus pais e meus dois irmãos no porão. A tremenda umidade do inverno da Serra Gaúcha atraía, para os nichos mais quentes daquelas velhas tábuas, uma fauna repelente. Eu, protagonista de estranhos feitos, fiquei famosa no beco por ter, sem querer, esmagado uma aranha caranguejeira ao correr de pés descalços. Vinham, esses bichos, da horta atrás da casa, dois mundos a mutuamente se alimentar. Num dos canteiros eu enterrei, com uma sensação de triunfo, as adenóides extraídas de meu irmão do meio, trazidas dentro um pequeno vidro quando ele saiu do hospital. O Jardim das Adenóides.
Vi a casa da avó Antônia há poucas semanas. Uma ruína aos olhos de todos, no beco onde as demais foram consertadas e pintadas ao longo dos anos. Minha mãe até evita fazer visitas que a obriguem a pousar os olhos e as lembranças na casa. Cai-lhe uma pedra no peito. Também cai no meu, mas os sussurros do passado me atraem, e ali os ouço mais agudamente. Só não sou capaz de entrar. Está de pé, ainda, pelo que me contaram, a escada para o sótão, com muitos degraus já engolidos pelo tempo. Mas lá, naquele sótão, os sussurros da alma de pedra e madeira da velha casa são inquietantes demais.

2 comentários:

Anônimo disse...

Quero os direitos autorais no que se refefer às adenóides. Cesoca.

ju disse...

Que Lindo,filósofa da pedra e madeira!!!!