Míriam Santini de Abreu
- Olha que eu vou chamar o velho do saco!
Era essa a ameaça que os mais velhos faziam quando os pequenos não paravam de bagunçar. Continua sendo, mas em versões diferentes. Dia desses ouvi um colega – pai de uma menininha para lá de travessa – dizer a ela que iria ter uma conversa com o monstro da palha. Averiguei e descobri que se trata de personagem de uma série infantil. Seja o velho do saco ou o monstro da palha, o fato é que o desejo de assustar a criança recorrendo a eles diz muito da nossa relação com o outro.
O velho do saco de que tínhamos medo geralmente era um andarilho maltrapilho e sujo não-ajustado aos parâmetros da “normalidade”. Sem emprego, casa, sem carro, incapaz de consumir. O saco de conteúdo misterioso só aumentava o nosso pavor, e certamente a bolsa encardida devia guardar apenas alguma muda de roupa, talvez um maço de cigarros, uma foto de alguém querido e há muito desaparecido. O velho do saco, enfim, era miserável, e no fundo temíamos a concretude da miséria exposta naquele corpo. Como hoje, quando eles continuam estradas afora, guardiões dos nossos mais profundos medos.
Uma amiga contou-me que, pequena, ela e as crianças da vizinhança temiam a pé de pano, uma mulher que percorria a cidade com um trapo sempre amarrado a uma das pernas. Também metia medo um tal de Tijolão, andarilho que, numa noite, foi convidado pela pai de minha amiga para se esquentar no fogo da casa. Foi o que bastou para o estranhamento se diluir na convivência.
Quando desconhecidos começaram a assassinar mendigos no centro de São Paulo, há alguns anos, apareceu muita explicação. Uma delas chamou a minha atenção. Dizia que o ato de matar esse outro, despossuído de tudo, revelava o terror de, sob alguma circunstância de vida, ficar como ele. A teoria para explicar isso era longa e densa, não cabe aqui, mas me pareceu ter muita relação com os desejos e angústias que nos dominam no mundo de hoje.
Os sonhos das pessoas são cada vez mais medíocres, a maioria baseados no consumo. Não há sonhos no plural, no coletivo. Tudo é no singular, no individual. Ver a pobreza ofende os sentidos, mas são poucos os que também ficam com a alma ofendida, o que levaria a uma reflexão sobre o porquê da multiplicação acelerada da miséria. Talvez por isso o velho do saco assuste hoje tanto quanto assustava no passado. Ele provoca o incômodo de nos fazer pensar sobre um mundo cuja construção deixa tantos para trás.
- Olha que eu vou chamar o velho do saco!
Era essa a ameaça que os mais velhos faziam quando os pequenos não paravam de bagunçar. Continua sendo, mas em versões diferentes. Dia desses ouvi um colega – pai de uma menininha para lá de travessa – dizer a ela que iria ter uma conversa com o monstro da palha. Averiguei e descobri que se trata de personagem de uma série infantil. Seja o velho do saco ou o monstro da palha, o fato é que o desejo de assustar a criança recorrendo a eles diz muito da nossa relação com o outro.
O velho do saco de que tínhamos medo geralmente era um andarilho maltrapilho e sujo não-ajustado aos parâmetros da “normalidade”. Sem emprego, casa, sem carro, incapaz de consumir. O saco de conteúdo misterioso só aumentava o nosso pavor, e certamente a bolsa encardida devia guardar apenas alguma muda de roupa, talvez um maço de cigarros, uma foto de alguém querido e há muito desaparecido. O velho do saco, enfim, era miserável, e no fundo temíamos a concretude da miséria exposta naquele corpo. Como hoje, quando eles continuam estradas afora, guardiões dos nossos mais profundos medos.
Uma amiga contou-me que, pequena, ela e as crianças da vizinhança temiam a pé de pano, uma mulher que percorria a cidade com um trapo sempre amarrado a uma das pernas. Também metia medo um tal de Tijolão, andarilho que, numa noite, foi convidado pela pai de minha amiga para se esquentar no fogo da casa. Foi o que bastou para o estranhamento se diluir na convivência.
Quando desconhecidos começaram a assassinar mendigos no centro de São Paulo, há alguns anos, apareceu muita explicação. Uma delas chamou a minha atenção. Dizia que o ato de matar esse outro, despossuído de tudo, revelava o terror de, sob alguma circunstância de vida, ficar como ele. A teoria para explicar isso era longa e densa, não cabe aqui, mas me pareceu ter muita relação com os desejos e angústias que nos dominam no mundo de hoje.
Os sonhos das pessoas são cada vez mais medíocres, a maioria baseados no consumo. Não há sonhos no plural, no coletivo. Tudo é no singular, no individual. Ver a pobreza ofende os sentidos, mas são poucos os que também ficam com a alma ofendida, o que levaria a uma reflexão sobre o porquê da multiplicação acelerada da miséria. Talvez por isso o velho do saco assuste hoje tanto quanto assustava no passado. Ele provoca o incômodo de nos fazer pensar sobre um mundo cuja construção deixa tantos para trás.
2 comentários:
Vamos fazer um livro dessas crônicas? Para lançar na feira do livro, em Porto Alegre, no próximo ano. Bjs. Cesoca
ah como este livro está sendo esperado ...
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