segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O velho do saco

Míriam Santini de Abreu

- Olha que eu vou chamar o velho do saco!
Era essa a ameaça que os mais velhos faziam quando os pequenos não paravam de bagunçar. Continua sendo, mas em versões diferentes. Dia desses ouvi um colega – pai de uma menininha para lá de travessa – dizer a ela que iria ter uma conversa com o monstro da palha. Averiguei e descobri que se trata de personagem de uma série infantil. Seja o velho do saco ou o monstro da palha, o fato é que o desejo de assustar a criança recorrendo a eles diz muito da nossa relação com o outro.
O velho do saco de que tínhamos medo geralmente era um andarilho maltrapilho e sujo não-ajustado aos parâmetros da “normalidade”. Sem emprego, casa, sem carro, incapaz de consumir. O saco de conteúdo misterioso só aumentava o nosso pavor, e certamente a bolsa encardida devia guardar apenas alguma muda de roupa, talvez um maço de cigarros, uma foto de alguém querido e há muito desaparecido. O velho do saco, enfim, era miserável, e no fundo temíamos a concretude da miséria exposta naquele corpo. Como hoje, quando eles continuam estradas afora, guardiões dos nossos mais profundos medos.
Uma amiga contou-me que, pequena, ela e as crianças da vizinhança temiam a pé de pano, uma mulher que percorria a cidade com um trapo sempre amarrado a uma das pernas. Também metia medo um tal de Tijolão, andarilho que, numa noite, foi convidado pela pai de minha amiga para se esquentar no fogo da casa. Foi o que bastou para o estranhamento se diluir na convivência.
Quando desconhecidos começaram a assassinar mendigos no centro de São Paulo, há alguns anos, apareceu muita explicação. Uma delas chamou a minha atenção. Dizia que o ato de matar esse outro, despossuído de tudo, revelava o terror de, sob alguma circunstância de vida, ficar como ele. A teoria para explicar isso era longa e densa, não cabe aqui, mas me pareceu ter muita relação com os desejos e angústias que nos dominam no mundo de hoje.
Os sonhos das pessoas são cada vez mais medíocres, a maioria baseados no consumo. Não há sonhos no plural, no coletivo. Tudo é no singular, no individual. Ver a pobreza ofende os sentidos, mas são poucos os que também ficam com a alma ofendida, o que levaria a uma reflexão sobre o porquê da multiplicação acelerada da miséria. Talvez por isso o velho do saco assuste hoje tanto quanto assustava no passado. Ele provoca o incômodo de nos fazer pensar sobre um mundo cuja construção deixa tantos para trás.

2 comentários:

Anônimo disse...

Vamos fazer um livro dessas crônicas? Para lançar na feira do livro, em Porto Alegre, no próximo ano. Bjs. Cesoca

Anônimo disse...

ah como este livro está sendo esperado ...