domingo, 13 de janeiro de 2008

O incrível cão que virou arbusto

O arbusto e o cão: transmutação

Míriam Santini de Abreu
Era uma vez um cão. Quando pequenino, já exibia pêlo curto, marrom-escuro no dorso, marrom-claro no peito, sem um adorno que o acolhesse em uma raça especial. Na primeira vacina, recebeu a sentença: SRD, Sem Raça Definida.

Adulto, tinha seus ódios, este cão, chamado de Bitcho. Compreensíveis, uns; incompreensíveis, outros. Da dona – aquela que o ganhou num Natal – não gostava. Talvez porque um dos primeiros gestos dela, no dia seguinte à oferta do minúsculo animal, tenha sido dar-lhe banho. Desde então, o cão passou a detestar água. Para lavá-lo, era preciso trancar o portão do pátio e jogar água sob o corpo em fúria. E ninguém, nas horas seguintes ao banho, pensava em sequer chegar perto dele. Mas eram incompreensíveis seus furores quando queriam acariciá-lo sob o queixo, onde um pêlo claro e macio fazia um desenho em V. Dava um ou dois rosnados e em seguida mordia. Só quem se atrevia a fazer tal gesto era a mãe da dona, única pessoa a merecer o respeito do animal. Aos outros, a única manifestação de reconhecimento a que ele eventualmente se permitia era encostar o focinho úmido numa canela descoberta.

Bitcho movia-se na vida com uma dignidade um pouco irritante, superior até, como se nada nem niguém merecesse um latido mais acolhedor, um olhar de carinho. Tinha olhos frios, um pouco cruéis, e não era por menos que metia medo na vizinhança. Era digno até quando acompanhava o vôo das moscas e abocanhava as menos ágeis e mais distraídas. Até para se coçar parecia um rei: as patas moviam-se devagar, como se em câmera lenta, do que também parecia depender a manutenção de sua dignidade canina.

Nos dias quentes, refugiava-se no banheiro da casa, o cômodo mais fresco depois de horas de sol nas telhas de brasilit. Dali se recusava a sair, e às vezes, por medo de mordida, um ou outro mijava sob sua vista. O olhar dele parecia dizer algo indefinido, mas irritante, por certo, que ofendia a dignidade de quem mijava. Bitcho era cruel.

Comia de tudo, e um lanche que adorava era o biscoito Mignon, que tem um formato de V. Ele chegava a apanhar alguns no ar!

Não se sabe se Bitcho teve filhos. Nunca foi visto namorando ou espalhando seu sêmen nas madrugadas enluaradas. Às vezes desaparecia, tomando rumo incerto e não-sabido, e voltava com ares ainda mais dignos e distantes, indiferente a reprimendas.

Já velho, com 14 anos - cheio de pêlos grisalhos que se soltavam em tufos - manquitolava, com dificuldade para sustentar o peso nas patas. Perto da morte, deram-lhe uma vacina para evitar a dor, e encontraram-no sem vida nas primeiras horas da manhã, com o corpo ainda quente. Enrolado num pano, Bitcho foi enterrado num canteiro na frente da casa, com a terra recém-afofada para receber flores.

E eis que, passado nem um mês, aconteceu. Nascia, no exato ponto onde o cão foi deixado à terra, um pequeno arbusto. A planta cresceu e agora, plena, parece artificial de tão lustrosa. As folhas, de um verde-claro no topo e mais escuro na base, se assemelham a pequenos peixes sem cauda. Todos dizem:
- O Bitcho virou arbusto!

Ele não devia ter medo da morte, por isso aquela estranha dignidade. Sabia que a substância do céu também pode ser vegetália, de lustrosas folhas.

Em tempo: Bitcho foi presente de Glênio Abella dos Santos, que o trouxe no Natal de 1989 dentro de uma caixa de papel!

Eluci, de quem Bitcho, quando cão, mais gostava, fala sobre a transformação:

Crédito: Periodistas Pobres & Nojentas

2 comentários:

Anônimo disse...

Isso é um absurdo! Como é que pode um cão virar arbusto? Em que mundo estamos, meu Deus?!

Tá bem que outro dia, andando pelas ruas aqui de Curtitiba, eu vi uma senhora comprando sutiãs para seus arbustos.

É o fim da picada...

Adorei a matéria.

Beijo

Karl

Uncle Bob disse...

"Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma" : )