quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Ladra de memórias

Míriam Santini de Abreu

Li alguns artigos sobre a metodologia de história oral e as diferenças em relação à entrevista jornalística. Como metodologia, a história oral suscita inquietações que também devem preocupar os jornalistas. MICHAEL HALL observa que a história oral não é história espontânea - experiência vivida em estado puro - porque as entrevistas não revelam necessariamente a experiência direta dos informantes, e sim o resultado do trabalho que a memória faz com essa experiência.

A memória, diz o autor, não é um fenômeno exclusivamente individual, e sim resultado de determinações sociais complexas. Outra questão é que o entrevistado pode transferir opiniões atuais para o passado, revelando uma certa “presciência” ou “editando” posições tomadas no passado para melhor combinarem com as do presente. Um terceiro alerta do historiador é fundamental para os jornalistas. Ele diz que a forma como uma pergunta é formulada pode influir na resposta. Historiadores, assim como repórteres experientes, diz ele, são capazes de sair de uma entrevista tendo ouvido exatamente o que desejavam ouvir.

Escrevo isso a propósito de uma recente experiência com relação a uma das minhas mais significativas recordações de infância. Lembrava-me de que havia acompanhado meus pais a um supermercado para fazer o rancho. Pequena, uns sete anos, na primeira série, eu adorava a seção de material escolar, e desejava ardentemente uma cola. Para fazer os trabalhos de aula, precisava recorrer a uma mistura de farinha e água, com resultado detestável. E, por tanto querer a cola, não a coloquei no carrinho de supermercado. Quis ficar com o objeto de desejo na mão, e nem me lembrei de entregá-lo à mãe para fazer o pagamento.

Ao chegar em casa, mostrei a cola a todos com incontida alegria. O pai, sem pestanejar, arrancou o tubinho das minhas mãos e o jogou janela afora, no meio de uma área de mata que havia atrás de casa. Olhou-me e disse:

- Nunca mais pegue algo sem pagar.

Ai, que dor! Não pela lição, mas pelo fato de ter perdido algo tão desejado. Não me esqueci do episódio.


Há alguns meses, recebi a visita de meu irmão do meio e, quando conversávamos sobre a infância, relatei, entre risos, a história. E ele:

- Míriam! Isso aconteceu comigo!

- Ah, sim! Era o que faltava! Pois é uma das lembranças mais significativas que tenho!

E o César insistia na afirmação de que ele, e não eu, havia levado a cola para casa sem pagar.

Não satisfeita, tão tenaz quanto a cola, conferi o fato com o pai e com a mãe, e assim era: o autor da estrepulia havia sido o meu irmão!

Só o que pude concluir foi que testemunhei a atitude do pai, fiquei impressionada e, com o passar do tempo, “costurei” remendos de possibilidades imaginadas para o que teriam sido os gestos de meu irmão antes do pito!

O mais impressionante é que, se eu fosse entrevistada sobre minha infância e os momentos mais lembrados, um dos que citaria seria esse.

Desde então, o Cesoca, um gozador, me chama de “ladra de memórias”.


Um comentário:

Anônimo disse...

Adoro teu pensamento,
tua limpidez, e adoro v.

Teu texto é claro, ético,
de grande jornalista

Beijin

Karl, imerso nas águas profundas do Mar de Ubatuba