quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Uvas de Natal



Míriam Santini de Abreu


A história abaixo contada ganha seu sentido inicial em http://pobresenojentas.blogspot.com/2010/11/abencoada-seja-musculatura-masculina.html

Prólogo

Amo um trecho quase final da edição que tenho sobre a Epopéia de Gilgamesh, o deus-homem que foi em busca da imortalidade. A história foi preservada em tabletes de argila e escrita em caracteres cuneiformes nas línguas suméria, hitita e babilônia. A Epopéia é anterior em pelo menos 1.500 anos a Homero. O trecho ao que me refiro diz:
- Fez uma longa jornada, exauriu-se, esgotou-se de tanto labutar e, ao retornar, gravou numa pedra toda a história.
Gravar na argila sua história fez de Gilgamesh um imortal.

Espelho
Não recordo a idade que tinha quando, pela primeira vez, vi a casa onde morou meu bisavô Emílio Santini e sua família. Ela fica em uma localidade no interior de Caxias do Sul. De tudo o que amei dentro e fora daquela moradia de pedra, que deve ter cerca de 115 anos, tocou-me em especial uma antiga penteadeira com o espelho já todo manchado. Enxergar ali o meu rosto borrado, num átimo, me ligou a todos os outros rostos que também um dia ali se debruçaram para ajeitar uma mecha de cabelo, alisar o canto de uma blusa bordada, gestos individuais de uma história que, no geral, se conhece. Mas eu desejei vislumbrar, naquele espelho, a história que é incontável, porque só pertence a nós. Os medos, os secretos desejos, a tristeza que às vezes só toleramos em honra dos que, antes de nós, também se exauriram em longas jornadas e não tombaram. Essas histórias não estão nos livros, mas pensei que elas poderiam ser capturadas no espelho se alguém tivesse o dom de ali olhar e colher, como se flores fossem, todos os piscares, lágrimas, movimentos de lábios, que, em fatias de segundos, deixassem transparecer uns fios desses segredos.
Quatro anos atrás estive na velha casa, mas só neste 25 de dezembro de 2010, quando lá retornei, tinha uma câmera fotográfica, o equipamento que captura imagens. Essas eu capturei, mas os fios de alguns segredos eu só consegui capturar de outro modo.

Cemitério
Era por demais estranho chegar na casa de parentes distantes, que não se vê há muito tempo, sem avisar, no dia de Natal. Mas fomos, eu, minha mãe, meu irmão César e sua mulher, Valéria, e a prima Rosita, a São Valentim da 2◦ Légua. A casa de pedra é cuidada por Aldina Caberlon e sua família, que moram na frente da antiga habitação de meu bisavô. Aldina foi casada com Severino Santini, por sua vez filho de Clemente, irmão de meu avô Feliciano, um dos filhos do bisavô Emílio. São muitos laços.
O céu estava nublado quando chegamos lá. Eu disse:
- Mãe, vai na frente e te apresenta. O que vão pensar de nós ao aparecermos num dia como hoje, sem avisar? Vai, vai!
Aldina estava sentada na varanda da casa, e logo, apresentados todos, eu entrava porta adentro da moradia de Emílio, tudo ali tão antigo, familiar. Ainda há objetos e peças de muitas décadas atrás e, sedenta, fui procurar a penteadeira. Estava no sótão, e era como eu me lembrava. Estranho como para certos encantos a gente não encontra palavras... Pedi a meu irmão que fizesse fotos minhas, de forma que o meu rosto aparecesse no que restou de partes do espelho. Três, em especial, parecem flagrar, por causa de um certo nublar do olhar, as duas que me habitam – ou as duas dúzias, talvez...
Pedimos aos parentes se era possível visitar a igreja – cujo altar-mor também foi construído por meu bisavô – e o cemitério, onde repousam Emílio e Angela, sua mulher. Emílio tinha 10 anos quando os pais, Ângelo e Maria, resolver vir para o Brasil. Ambos nasceram em Pergine, na localidade de Costasavina, perto de Trento, no norte da Itália. Eram, na época, terras da Áustria. Embarcaram para o Brasil no dia 15 de setembro de 1878, no barco Isabela.

Tempestade
Sandra, filha de Helena, que é uma das filhas de Aldina, nos levou à igreja. Entretida com a conversa, não notamos a tempestade que se aproximava. Foi uma tempestade estranha, como se volumosas massas negras dispersas de repente se enroscassem e desabassem de uma só vez, encharcando estradas, casas e parreirais. Mal tivemos tempos de nos abrigar nas capelas do cemitério – eu e Sandra na que guarda Maria e Ângelo, Clemente e a esposa Raquel e Emílio e Ângela.
Eu grito de lá, em meio à tempestade:
- Mãe, Rosita, venham, estamos no túmulo com Emílio e Ângela!
E Rosita responde:
- Não, estamos longe daí e esta capela aqui é maior!
Estranho diálogo num dia de Natal!
A chuva não parava, e coube a mim ir até a casa dos parentes para chamar meu irmão e colocar o carro de volta à estrada.
Mas antes de irmos, todos se sentaram à mesa para provar uma das tortas feitas por Helena, biscoitos cobertos por suspiros coloridos e café passado na hora. Houve risos, histórias, brincadeiras. E quando nos despedimos, estava novamente azul o céu e molhados os parreiras, com as uvas já – cada qual a seu modo – prontas para serem colhidas.
Fico a observar meu rosto no velho espelho, que agora também me capturou. E ali, nos meus olhos, eu pressinto os fios dos meus segredos. E ao redor daquela mesa de conversas fraternas, em meio à terra que fez vingar tantas safras de uvas, eu consegui capturar a infindável, às vezes terna, outras vezes rude, teia que nos liga a todos, daqui ao passado e daqui ao futuro, a imortalidade que Gilgamesh, o deus-homem, procurava.

2 comentários:

Anônimo disse...

Mi,estou sentindo uma ligação..srsrsrs. ultimamente,tenho pensado em voltar o lugar em que nasci,rever a casa de minha avó paterna,Ana, q fica na beira da estrada,onde todos os dias eu passava para ir à escola. Ainda continua lá. E fica aí por estes ares gaúchos..srsrs
Juss

elaine tavares disse...

que beleza de texto mimi.. quando te vejo escrevendo assim penso que a tempestade está passando...
beijoca