Míriam Santini de Abreu
O meu balanço de final de ano se parece com a frase que Zorba, o Grego, diz ao escritor no trecho final do filme:
- Você já viu um acidente mais magnífico do que aquele?
E responde o escritor:
- Não restou nada!
Como a eles, resta-me celebrar, com risada, música e dança, o que permaneceu: a vida. E por isso três filmes que vi nos últimos meses foram de uma finura especial, rara, de uma dolorosa delicadeza. Em dois deles, a redenção - a certeza de que se ocupar de viver é o caminho que nos ilumina – se dá pela literatura, pelo ato de escrever. E em dois deles o que mais amei foi o diálogo final, que para mim resume o desafio, a dor, às vezes a tristeza imensa de se saber quem se é.
Um deles é “O Segredo dos Seus Olhos”, do diretor argentino Juan Jose Campanella. No filme conhecemos Benjamín Espósito (Ricardo Darin), que se aposentou depois de trabalhar como investigador. As horas livres, porém, o inquietam, e ele decide escrever um livro. Mas não se trata de uma história qualquer, e sim do assassinato de uma jovem ocorrido em 1974 e que, para ele, ficou sem respostas.
O que leva Espósito a não esquecer aquele fato é o amor que o marido sentia pela jovem esposa assassinada e os desdobramentos que, nas ações do marido, são incompatíveis com aquele amor. Na busca de respostas, destilada na sua incursão literária, o investigador aposentado também pressente as prisões nas quais se deixou ficar, no que deixou de se arriscar, nas conseqüências do que se permitiu fazer. É preciso ver o filme para compreender porque é tão... demasiado humano o diálogo final entre ele e uma mulher:
- Vai ser complicado...
- Eu não me importo.
Outro filme que deixou até as minhas artérias comovidas foi “A vida dos outros”, de Florian Henckel von Donnersmarck. O personagem principal é um burocrata encarregado de vigiar um escritor e sua mulher. Tudo se passa antes da unificação da Alemanha. Ele, cheio de si com a missão imposta, cioso de suas tarefas, com o passar das semanas, sem querer, vai sendo envolto pelo visco da ... demasiada humanidade, porque os diálogos que ouve sem que os vigiados saibam, a vida de veias delicadas que há na casa vigiada, o amor, o perturbam. O rosto dele mal se move. É como se tivesse nascido com a mesma expressão, como se os músculos tivessem um mínimo repertório de combinações. Mas o espírito ali é incêndio, e sabemos disso porque o burocrata medíocre faz o que poucos homens ousam fazer: ele age, na mais incerta hora, como um homem, como um ser humano. E paga um preço alto, contra o qual não se rebela nem chora nem implora perdão. Do seu sacrifício não há testemunhas. Mas, um dia, por causa da escrita, da literatura, ele descobre que outro ser humano soube reconhecer, nele, o que de mais terno pode haver no relacionamento entre pessoas: um gesto de generosidade do qual nada se espera
- É para presente?
- Não... É para mim.
Por fim menciono “Netto Perde Sua Alma”, de Beto Souza e Tabajara Ruas, no qual me comoveu a saudação final do general Netto ao amigo, o sargento Caldeira, antes de entrar no barco de Caronte: “Até a vista”. E vai o general à morte, deitado, a cabeça recostada, com o semblante de quem viveu tudo o que havia para viver. Segue sozinho, mas, num canto da barca, está a lanterna acesa, o pequeno brilho que, espero, ilumine a mim também no caminho final. Para que a minha alma não se perca.
Um comentário:
Querida.. que todas estas palavras de humana fortaleza possam se fazer real na viva vivida...
quem tem amigos têm sempre a alma presa no delicado fio do amor... então, fique tranquila, ela nunca se perderá...
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