quarta-feira, 23 de abril de 2008

A América Latina no discurso dos jornais

Míriam Santini de Abreu
A lingüista Eni Orlandi, em seus livros, costuma dizer que somos condenados, desde que nascemos, a interpretar. Precisamos dar um sentido ao mundo, dar um sentido às coisas que acontecem nele. Assim, pode-se dizer que o jornalista é uma espécie de interpretador profissional, porque seu trabalho é produzir discursos sobre o mundo e fazê-los circular em diferentes meios. Todos os dias, lemos textos e ouvimos jornalistas que nos trazem notícias de fatos próximos e distantes, e essas notícias são interpretações. Por isso é impossível falar em jornalismo isento. Ficar isento é renunciar à interpretação. Isso é uma impossibilidade para o ser humano, porque parar de interpretar significa deixar de perceber o mundo, significa morrer.

A palestra do escritor Vito Gianotti, realizada no dia 18 de abril na Assembléia Legislativa de Santa Catarina, trouxe à tona as implicações disso na forma como a mídia em geral trata a América Latina. Gianotti, que também é coordenador do Núcleo Piratininga de Comunicação, cujo foco principal são os estudos sobre o jornalismo praticado em sindicatos, abriu a programação do II Seminário de Imprensa Sindical, promovido pelo Sindprevs/SC, o Sindicato dos Previdenciários.

Gianotti deu vários exemplos sobre a forma como a chamada “grande imprensa” trata a América Latina, principalmente quando estão envolvidos movimentos populares. Um deles trouxe à tona a cobertura jornalística sobre a RCTV, emissora da Venezuela cuja concessão para o sinal aberto não foi renovada pelo presidente Hugo Chávez. Durante semanas, emissoras como a Globo, revistas como a Veja e jornais como O Estado de S. Paulo falaram em “atentado à liberdade de imprensa” e que a “democracia estava ameaçada”.

Gianotti disse que foi omitido, por esses meios de comunicação, que em 2007 estavam por expirar a maioria das concessões de TV no Brasil, inclusive a da Globo. Além disso, de acordo com estudo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), cerca de 40% das atuais concessões brasileiras apresentam irregularidades.

Outros fatos, ainda mais graves, também foram omitidos. Os que Gianotti listou estão disponíveis em vários artigos na Internet, entre os quais o de Edgard Rebouças, jornalista, doutor em Comunicação, professor da Universidade Federal de Pernambuco e membro da coordenação executiva da campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania, da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados. Vale a pena conhecer um trecho:

“Também não foi dito que, já em 1976, a RCTV foi tirada do ar por três dias por veicular notícias falsas; em 1980 ficou 36 horas fora do ar por causa de sua programação sensacionalista; em 1981, foram 24 horas de penalidade por exibir cenas pornográficas em horário inadequado; em 1989, mais 24 horas fora do ar por ferir a lei ao veicular publicidade de cigarro; e em 1991, teve um de seus programas humorísticos tirado do ar pela Corte Suprema por ridicularizar as pessoas.

Não bastasse todos esses problemas relativos ao conteúdo, há ainda os processos na Justiça por sonegação fiscal entre 1999 e 2003, e por veiculação dos discursos do almirante Molina Tamayo e dos generais Nestor Gonzáles e Guaicaipuro Lameda em favor do golpe militar de 11 de abril de 2002. Ambos os casos: enganar o fisco e incitar o povo a um golpe de Estado, são ações puníveis constitucionalmente em qualquer democracia do mundo; pior ainda se tratando de uma concessão pública como as emissoras de televisão.”

Outro dado apresentado por Gianotti é que a não-renovação de concessões é normal. A Administração Federal de Comunicações (FCC na sigla em inglês), um órgão do governo dos Estados Unidos, fechou 141 concessionárias de rádio e TV entre 1934 e 1987. Em 40 desses casos, a FCC nem esperou que acabasse o prazo da concessão. Os dados foram levantados por Ernesto Carmona, presidente do Colégio de Jornalistas do Chile, no artigo intitulado Salvador Allende se revolve em sua tumba: senadores socialistas comparam Chávez a Pinochet. Para ler o original basta acessar
http://www.congresobolivariano.org/modules.php?name=News&file=article&sid=3491

Gianotti também falou sobre a nacionalização do gás boliviano, cuja cobertura, pela grande mídia no Brasil, igualmente omitiu fatos. “Basta lembrar que o presidente da Bolívia, Evo Morales, tinha essa proposta como uma das principais em sua campanha eleitoral, e deu vários avisos à Petrobras antes de tomar a medida.” O palestrante também disse que o gás natural é vital para a economia boliviana, e estava sendo vendido a preços sob medida para os interesses do Brasil, mas não para os da população do país vizinho. “O tom da cobertura jornalística foi quase o de uma declaração de guerra à Bolívia”, emendou.Quem deseja saber mais sobre a Venezuela pode ver o premiado documentário A Revolução não será televisionada, disponível, com legendas em português, em
http://video.google.com/videoplay?docid=-3258871973505291549

No seminário, Gianotti também falou sobre a importância da imprensa sindical e da necessidade de os meios de comunicação de sindicatos falarem sobre os assuntos que afetam o dia-a-dia dos trabalhadores, mas sem deixar de lado temas mais amplos.

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