Por Míriam Santini de Abreu
“Amigos para sempre” é slogan de uma propaganda que vi, duas semanas atrás, na Folha de S. Paulo, de um “PET Memorial”. Dizia: “Seu melhor amigo merece seu carinho e respeito... eternamente!”. O lugar tem cremação, capela São Francisco, salas de velório e urnas personalizadas. Não é novidade que, nesses tempos, tudo vira mercadoria, mas surpreende o avanço dos negócios que envolvem animais de estimação. Em 2003, a notícia era de que o mercado de pet crescia cerca de 17% ao ano no país, com faturamento de aproximadamente US$ 750 milhões.
O PET Memorial me fez lembrar de uma entrevista feita há alguns anos com a filósofa Sônia Felipe, da Universidade Federal de Santa Catarina. Recordei das palavras dela por constatar o quão contraditória é essa realidade: muitos animais domésticos, como cães e gatos, têm mais regalias do que seres humanos; boa parte, porém, é deixada nas ruas, muitos até com pedigree, experimentando a fome e o abandono. Também é contraditório esse imenso amor que muitas pessoas têm por animais de estimação, enquanto preferem ficar alheias, por exemplo, ao impacto econômico, social e ambiental do consumo de carne.
Sônia Felipe costuma dizer que os animais são seres com “alma”, animados, no sentido filosófico, e não religioso, da palavra. Eles movimentam-se para viver, fugir, com o ânimo, o espírito próprio de cada espécie. Cada animal, ensina Sônia, tem a sabedoria de viver em seu próprio corpo, seja qual for a forma como essa vida se expressa, e de nutrir-se conforme sua necessidade. Quando preso, o bicho é alimentado pela mão humana, que desconsidera o que aquela forma de vida precisa para se manter. O animal vira um produto, uma mercadoria.
Nesse processo se “naturaliza” um cerimonial típico da modernidade: matar para celebrar a vida. No batismo, no casamento, na comemoração de aniversário, algum bicho vira churrasco de comemoração. Sônia observa que lobbies poderosos impõem a dieta adotada pelas pessoas. Hoje, aponta a pesquisadora, os grandes supermercados são locais para aluguel de espaço onde as grifes expõem seus produtos. São, diz a filósofa, grandes edifícios de derivados de bichos mortos. Neles, o animal não interessa, e sim as partes de seus cadáveres.
No fim da contas, é isso: cachorro pobre tenta matar a fome na rua; cachorro rico é cremado na capela São Francisco e enterrado sob um bosque, enquanto, numa bela casa ou apartamento, os donos celebram a lembrança do bicho com um belo churrasco.
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