
Míriam Santini de Abreu
Era uma vez um cão. Quando pequenino, já exibia pêlo curto, marrom-escuro no dorso, marrom-claro no peito, sem um adorno que o acolhesse em uma raça especial. Na primeira vacina, recebeu a sentença: SRD, Sem Raça Definida.
Adulto, tinha seus ódios, este cão, chamado de Bitcho. Compreensíveis, uns; incompreensíveis, outros. Da dona – aquela que o ganhou num Natal – não gostava. Talvez porque um dos primeiros gestos dela, no dia seguinte à oferta do minúsculo animal, tenha sido dar-lhe banho. Desde então, o cão passou a detestar água. Para lavá-lo, era preciso trancar o portão do pátio e jogar água sob o corpo em fúria. E ninguém, nas horas seguintes ao banho, pensava em sequer chegar perto dele. Mas eram incompreensíveis seus furores quando queriam acariciá-lo sob o queixo, onde um pêlo claro e macio fazia um desenho em V. Dava um ou dois rosnados e em seguida mordia. Só quem se atrevia a fazer tal gesto era a mãe da dona, única pessoa a merecer o respeito do animal. Aos outros, a única manifestação de reconhecimento a que ele eventualmente se permitia era encostar o focinho úmido numa canela descoberta.
Bitcho movia-se na vida com uma dignidade um pouco irritante, superior até, como se nada nem niguém merecesse um latido mais acolhedor, um olhar de carinho. Tinha olhos frios, um pouco cruéis, e não era por menos que metia medo na vizinhança. Era digno até quando acompanhava o vôo das moscas e abocanhava as menos ágeis e mais distraídas. Até para se coçar parecia um rei: as patas moviam-se devagar, como se em câmera lenta, do que também parecia depender a manutenção de sua dignidade canina.
Nos dias quentes, refugiava-se no banheiro da casa, o cômodo mais fresco depois de horas de sol nas telhas de brasilit. Dali se recusava a sair, e às vezes, por medo de mordida, um ou outro mijava sob sua vista. O olhar dele parecia dizer algo indefinido, mas irritante, por certo, que ofendia a dignidade de quem mijava. Bitcho era cruel.
Comia de tudo, e um lanche que adorava era o biscoito Mignon, que tem um formato de V. Ele chegava a apanhar alguns no ar!
Não se sabe se Bitcho teve filhos. Nunca foi visto namorando ou espalhando seu sêmen nas madrugadas enluaradas. Às vezes desaparecia, tomando rumo incerto e não-sabido, e voltava com ares ainda mais dignos e distantes, indiferente a reprimendas.
Já velho, com 14 anos - cheio de pêlos grisalhos que se soltavam em tufos - manquitolava, com dificuldade para sustentar o peso nas patas. Perto da morte, deram-lhe uma vacina para evitar a dor, e encontraram-no sem vida nas primeiras horas da manhã, com o corpo ainda quente. Enrolado num pano, Bitcho foi enterrado num canteiro na frente da casa, com a terra recém-afofada para receber flores.
E eis que, passado nem um mês, aconteceu. Nascia, no exato ponto onde o cão foi deixado à terra, um pequeno arbusto. A planta cresceu e agora, plena, parece artificial de tão lustrosa. As folhas, de um verde-claro no topo e mais escuro na base, se assemelham a pequenos peixes sem cauda. Todos dizem:
- O Bitcho virou arbusto!
Ele não devia ter medo da morte, por isso aquela estranha dignidade. Sabia que a substância do céu também pode ser vegetália, de lustrosas folhas.
Em tempo: Bitcho foi presente de Glênio Abella dos Santos, que o trouxe no Natal de 1989 dentro de uma caixa de papel!
Eluci, de quem Bitcho, quando cão, mais gostava, fala sobre a transformação: