sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O tempo da manjedoura, o tempo da gente

Míriam Santini de Abreu, jornalista

Nestes dias que anunciam a vinda de um novo ano, pus as mãos no fundo frio do meu cântaro para ver o que ali havia sobrado. Areia, pedras, pó. Então li Fernando Pessoa, escolhi a esmo passagens bíblicas, passei algumas horas das madrugadas tateando para ver se, na areia, era possível desenhar, com as pontas dos dedos, algo que parecesse belo, terno e me tirasse do coração aquela sensação de terra – ou melhor- cântaro arrasado.

Mas a resposta veio na segunda-feira da semana de Natal, quando estive em Biguaçu a trabalho. Passei algumas horas na praça central e, depois uma conversa com um vendedor de caldo de cana, entrei, pela porta dos fundos, na Igreja Matriz São João Evangelista. O belo presépio me atraiu. Fui até lá, curiosa para ver como eram o Menino e seus Pais. Mas onde estavam?

Havia a estrebaria, os animais, os caminhos, a manjedoura. Mas só. Inquietei-me, como às vezes, outras tantas miudezas me nublam e inquietam. Mas aquilo não era uma miudeza qualquer. Na igreja, comentei o fato com um casal que ali entrara, e também eles se surpreenderam. Não tinham explicação para o fato. Eles, como eu, haviam conhecido somente presépios onde, antes do Natal, já estavam Jesus, Maria e José.

Fui buscar respostas. Atrás da igreja havia um local para venda de artigos religiosos, e ali tive os esclarecimentos de que precisava. Contaram-me que naquela igreja Jesus é colocado na manjedoura, assim como seus pais, na noite do dia 24, durante a missa. E isso porque não faz sentido que ali estejam antes desta data, porque o Homem nasce no dia em que nasce, e não antes, oras.

Pensei que na vida também é assim. Há estalagens, estrebarias, manjedouras, em potencial, em todos os tempos e lugares. Estão ali, à espera. Mas há o instante para nascermos para elas. Para que virem em lugar de nossa alegria, tristeza, acalento, torpor, promessas, expectativas.

E quando elas deixam de ser objetos em potencial para se transformarem em realidade concreta, sabemos então que será a vida a fluir, e estaremos lá, sujeitos desta concretude. Os amigos saberão, pelo brilho de uma estrela, que a manjedoura está quente e confortável, e saciados os animais, os lobos também – à distância – intrigados com aquela comunhão de almas. Trarão, os amigos, ouro, incenso e mirra, e tanto o Menino quanto o Pai e a Mãe terão a certeza: um tempo novo se anuncia. Bom? Nem tanto? Não importa. Está tudo em potencial, e o delicado mover e montar e decorar a estalagem da alma, protegida no corpo físico, e tudo o que há dentro dela, é o que vai dar a resposta.

Meu cântaro estará novamente cheio em 2011, agora eu sei, agora eu sinto. Só o que terei que fazer é manter as lamparinas acesas e orar e vigiar com mais cuidado.

O padre da igreja matriz de Biguaçu sabe: há um tempo para se nascer. E quando se nasce, e o que era potência vira concretude, realidade, é tempo de celebrar. Eu, nesta sexta, darei um jeito de espiar, por trás dos prédios que agora a escondem, as janelas do Convento das Carmelitas Descalças, lá no topo do morro, em Caxias do Sul, porque é nesta noite que elas ficam acesas. De cântaros repletos.

2 comentários:

Anônimo disse...

Meu portal se fechou novamente e,por alguns dias,já sei q ficará só a secura do deserto a perseguir minha alma... mas como nada dura para sempre,há chover em breve...Eu quero acreditar!

Anônimo disse...

sim, o que v. escreve chove sobre meu pensamento: a memória nevando no outro mundo

lindo o teu texto míriam

karl