Julia Margaret Cameron, 1867
Sonho que sou uma tempestade perfeita lá no alto, mas, cá embaixo, próximo do cotidiano de um copo d'água e de uma folha que cai, sei que pareço mais a um pequeno sopro de chuva na vidraça e aprendi, nesses dias em que reverencio uma planta bravia que eu chamo de A., aprendi que de ar sou e me interessa muito o que a pitonisa pronuncia perto da veneziana por onde posso, ainda, espiar a restinga, sim, eu aqui neste hotel Continental à beira do azul-mar-grosso-de-sal, em pleno século V dos leões transparentes, eu, durante a sagração dos oráculos, sou aquele que escuto atentamente a pitonisa consagrada, a mesma que pronuncia tudo e tudo sabe e devasta um quarteirão com apenas um suspiro seu ou um andar pelas tábuas do quarto. E, quando anoitece nas grutas, nos pulmões e nos sentimentos indecisos, a pitonisa se desnuda até da pele nua e, agora, a planta bravia que eu chamo A. tem, sob a pele nua, uma cútis de Palmolive e sonha que a tempestade guarda entre as coxas uma claridade que não é deste mundo nem do outro. Ela enche os terraços de músicas, de buracos, de árias, de legiões: sua língua não passa de ar, mas um ar que deleita até mesmo aqueles que sorvem cianureto porque têm nostalgia das noites molhadas quando um corpo penetra num corpo alheio: água na areia. Mesmo se eu tivesse a alma rasa e inquieta, a pitonisa viria pra chorar uma estrela em meu tímpano, e também ela viria pra revelar que a única coisa que existe neste mundo é uma sereia de cabelo azul, e este cabelo azul traz à tona um saber vasto e profundo, para enfim aprendemos que só escapamos do pó se estivermos atentos à respiração da planta bravia A.: porque diante dela curva-se o que em nós apodrece e, se o desejo for mais fundo no escurento, e se nada temermos da tempestade, a tempestade estará em nós sonhando, e quanto mais no alto formos a chuva, mais acordamos do sonho e penetramos no hall do hotel Continental pra descansar naquela cama com aquela pitonisa agarrada à planta bravia A. que pronuncia o oráculo delicado: não somos nada – as palavras – mais fortes que cada um de nós!
Fernando Karl
Sonho que sou uma tempestade perfeita lá no alto, mas, cá embaixo, próximo do cotidiano de um copo d'água e de uma folha que cai, sei que pareço mais a um pequeno sopro de chuva na vidraça e aprendi, nesses dias em que reverencio uma planta bravia que eu chamo de A., aprendi que de ar sou e me interessa muito o que a pitonisa pronuncia perto da veneziana por onde posso, ainda, espiar a restinga, sim, eu aqui neste hotel Continental à beira do azul-mar-grosso-de-sal, em pleno século V dos leões transparentes, eu, durante a sagração dos oráculos, sou aquele que escuto atentamente a pitonisa consagrada, a mesma que pronuncia tudo e tudo sabe e devasta um quarteirão com apenas um suspiro seu ou um andar pelas tábuas do quarto. E, quando anoitece nas grutas, nos pulmões e nos sentimentos indecisos, a pitonisa se desnuda até da pele nua e, agora, a planta bravia que eu chamo A. tem, sob a pele nua, uma cútis de Palmolive e sonha que a tempestade guarda entre as coxas uma claridade que não é deste mundo nem do outro. Ela enche os terraços de músicas, de buracos, de árias, de legiões: sua língua não passa de ar, mas um ar que deleita até mesmo aqueles que sorvem cianureto porque têm nostalgia das noites molhadas quando um corpo penetra num corpo alheio: água na areia. Mesmo se eu tivesse a alma rasa e inquieta, a pitonisa viria pra chorar uma estrela em meu tímpano, e também ela viria pra revelar que a única coisa que existe neste mundo é uma sereia de cabelo azul, e este cabelo azul traz à tona um saber vasto e profundo, para enfim aprendemos que só escapamos do pó se estivermos atentos à respiração da planta bravia A.: porque diante dela curva-se o que em nós apodrece e, se o desejo for mais fundo no escurento, e se nada temermos da tempestade, a tempestade estará em nós sonhando, e quanto mais no alto formos a chuva, mais acordamos do sonho e penetramos no hall do hotel Continental pra descansar naquela cama com aquela pitonisa agarrada à planta bravia A. que pronuncia o oráculo delicado: não somos nada – as palavras – mais fortes que cada um de nós!
Nenhum comentário:
Postar um comentário