terça-feira, 12 de maio de 2009

Andarilho da luz

Míriam Santini de Abreu

“Eu vô-lo digo: é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela cintilante”
Nietzsche

- Boa tarde! Como vai? Viu o Clayton?
Era geralmente com esta saudação que o seu Geraldo aparecia na sala do sindicato onde eu trabalhava no campus da Universidade Federal de Santa Catarina, a UFSC. Eu nunca soube quem era o Clayton. Mas incitava a conversa:
- Teve uns problemas! Agora vai bem.
E o seu Geraldo continuava:
- E como vai a Salete? Soube de fulano? E como vai sicrano?
E assim íamos, os dois, conversando sobre pessoas de quem eu não ouvira falar. Nem mesmo desse homem, que volta e meia me visitava, tenho a certeza da identidade. Era a forma como ele respondia quando eu perguntava o seu nome... A resposta não era segura; às vezes, nem vinha. Ele me olhava com aqueles olhos azuis lá no fundo das órbitas, deixando ainda mais magro o rosto comprido, e respondia: Geraldo. Ou não respondia, e engatava outro rumo para a conversa.
Conhecidos dizem que seu Geraldo mora no Saco dos Limões, um bairro da capital próximo da universidade. Pode ser. Em sua andança diária, ele sempre atravessa o campus da UFSC. Um dia desses cruzei com ele no Corredor das Casuarinas, as árvores enfileiradas ao lado dos prédios das engenharias. Calças ajustadas na cintura por uma corda, tênis velho e sujo, seu Geraldo caminhava com passos seguros e rápidos, apoiado num cajado:
- Para que isso, seu Geraldo?
- Para espantar os lobos! Você não vê? Estão por toda parte.
Sorri ao compreender que ele se referia aos cachorros andarilhos da capital catarinense.
Seu Geraldo é um homem de luz e de movimento. Um mistério que perdurou durante algum tempo no sindicato envolvia os ventiladores de teto do auditório. Era comum algum funcionário passar por ali e encontrar os quatro ligados em velocidade máxima, mesmo nos dias mais frescos. Pois houve uma tarde em que o seu Geraldo acabara de sair de minha sala e o flagrei apertando todos os interruptores que fazem o equipamento funcionar. Ligou e saiu!
Acho que minha miopia de alto grau me faz intolerante a excesso de luz, principalmente para trabalhar. Lá no sindicato, as cortinas ficavam sempre cerradas, com uma ou duas janelas abertas. Pois a primeira coisa que o seu Geraldo fazia era afastar as cortinas com volúpia, descerrar as janelas e, com expressão séria diante do meu espanto impotente, recomendar:
- Você precisa de luz!
Num dia de chuva fina, apareceu com uma de suas camisetas surradas coberta por uma sacola de supermercado com o fundo aberto, as alças presas aos braços, toda molhada. Uma capa improvisada. E no final das visitas, ele geralmente pedia uma pasta, onde colocava folhetos em geral recolhidos em setores da universidade, e umas “pratinhas”.
Pena que nunca fui capaz de compreender o sentido de muitas das conversas de seu Geraldo. Tudo nele, a voz, o rosto, as palavras, tinham algo inquietantemente profético. Numa andança minha que cruzou com a dele, fora do ambiente de trabalho, ele mal me olhou:
- Seu Geraldo! Que pressa! Vai aonde?
- Vou encontrar os guerrilheiros. Eles estão amotinados! – respondeu, voltando o rosto e acelerando o passo.
Mas nos entendíamos. Certa tarde, no sindicato, tivemos uma breve conversa sobre a saúde do Clayton, enquanto as cortinas eram abertas com um quase furor. De repente, ele me olhou, sorriu e disse, já para fechar a porta:
- Você é uma estrela. Eu sou outra. Nós somos alguma coisa, né?
Faz tempo que não o vejo. Talvez esteja com os guerrilheiros.


“Ah, o mendigo!
No verão foi visto só
com a terra e o céu”
Kikaku

2 comentários:

Anônimo disse...

esse texto é belíssimo miriam, não canso de ler e de me emocionar....
saudade do seu Geraldo...

et

Anônimo disse...

mimi, às vezes seu Geraldo demora prá aparecer lá no meu setor,na UFSC e, eu me pergunto; será que ele ainda está bem? Um dia destes,enquanto me fazia esta pergunta, dentro do ônibus, olhei prá rua e lá estava ele andando...