quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Alien, o eterno passageiro




A face virada para não ver O Monstro; O Monstro como parte da humana e ela como parte dele; a híbrida, no quarto filme, com a andróide: – Aqui também sou uma estrangeira...


Míriam Santini de Abreu

Era sobre O Monstro que eu e Elaine falávamos numa conversa ali no Café Cultura da Praça 15, no centro de Floripa. Mas não era sobre um monstro qualquer. Tratava-se do nosso Monstro, o meu dentro de mim e o dela dentro dela. Cada um sabe do seu. A maioria, aliás, não sabe. Porque saber dele é pavoroso. Mas intuímos que está ali. Às vezes é um vulto que passa num átimo entre uma lembrança e outra, uma dor e outra, uma coisa qualquer, das mais tolas, que sem mais nem menos deixa o dia triste, o coração aos saltos, a alma envelhecida.

Dá para passar a vida ignorando o vulto. Mas às vezes ele cheira como um chacal que recém se alimentou de carne fresca; às vezes ele deixa o ar gélido, e nos espreita sem dó. Basta virar o rosto e ali estará ele, a fera que nos alimenta e da qual nos alimentamos. Horrível. Então quem haveria de querer rodopiar o corpo e olhar O Monstro nos olhos? Melhor seguir adiante, dia após dia, tentando, com a carne que sobra dos nossos risos, dos nossos amores, dos sonhos empoeirados, alimentar o chacal e esperar que ele nos dê uns instantes, dias, meses de sossego.

E em meio a essa conversa, Elaine lembrou da série Alien, com Sigourney Weaver, cuja personagem principal é a tenente Ellen Ripley.

Quem acompanhou a série sabe que, no final do primeiro episódio, ela é a única sobrevivente da tripulação da nave que estava a serviço de uma poderosa Companhia com sede na Terra. Todos os demais tripulantes haviam sido exterminados por uma forma monstruosa de vida alienígena, os xenomorfos, que usava os humanos como “alojamento vivo” para seus ovos e cujo sangue era composto por um corrosivo ácido. No episódio 2, de volta à Terra, Ripley conta a história, mas ninguém acredita na veracidade dos fatos. A verdade só aparece quando uma colônia de seres humanos que buscava tornar outro planeta habitável subitamente deixa de fazer contato com a Companhia.

Ripley então embarca na nave que levará soldados até o misterioso planeta. Ela é a única que sabe o quanto o alien é perigoso. Aparentemente, mais uma vez, depois da batalha com os humanos, o monstro é eliminado. Mas no terceiro episódio descobrimos que, na fuga do planeta, o alienígena conseguiu entrar na nave da tenente, e ela recebe socorro em um planeta que serve como prisão de criminosos que trabalham em uma gigantesca fundição. E há então uma das cenas mais marcantes da série. O Monstro que se alojou na nave e mais uma vez destroçou quase todos os humanos que encontrou no planeta-prisão fica cara a cara com Ripley. Ela vira o rosto e espera a morte. Mas o alien simplesmente se afasta. O motivo: ele percebe que a humana carrega dentro de si um alien, mas especial, uma fêmea, capaz de gerar milhares de ovos da espécie. Há um Monstro dentro dela.

A humana começa a desenvolver sintomas e, ao ter as entranhas reveladas num ultrassom, descobre a verdade. No final do episódio, os homens da Companhia chegam ao planeta-prisão não para salvar Ripley e o que sobrou dos presos, mas sim a fera dentro dela, com seu notável poder a ser usado como arma biológica. Ripley então encara todos aqueles homens com suas máscaras e macacões brancos, a serviço da “ciência”, e sabe o que precisa fazer. Lança-se ao mar fervente onde os metais são fundidos, enquanto a criatura arrebenta o peito dela para tentar não encontrar a morte.

O quarto episódio é particularmente inquietante. A Companhia, enfurecida com a atitude de Ripley, faz tentativas frustradas (os resultados levam a pensar em quem efetivamente é uma forma monstruosa de vida...) para cloná-la, criando um híbrido – com partes das duas espécies. Até que consegue. Vemos Ripley novamente, um clone, com sangue ácido, e também espécimes do alien, agora portadores de herança genética humana, cuidadosamente mantidos em laboratório. Mas tudo sai do controle. A segunda cena memorável é quando Ripley vê a fêmea criada em laboratório não mais colocar ovos, e sim, como uma fêmea humana, com útero, parir um filhote, um ser com aparência híbrida, meio alien, meio humana. Esse ser mata a mãe-alien e fica frente a frente com Ripley, a quem reconhece como “mãe”. Lambe-lhe o rosto, e desta vez Ripley tem certeza: O Monstro não está mais somente “lá fora”, na realidade, na nave sombria; está dentro dela, é agora parte dela, como ela é parte dele. Mas é preciso destruí-lo.

É emblemática a cena em que Ripley o procura dentro da nave e chama, persuasiva:

- Não tenha medo... Eu agora sou da família.

E quando o aniquila, o corpo do alienígena dilacerado no espaço, ela chora, tendo sobre si o olhar espantado de uma andróide, também tripulante da nave e que se fazia passar por humana (o nome de um robô com aparência feminina é ginóide, mas o termo andróide é o mais usado). Quando a farsa é descoberta, Ripley, que viu a andróide arriscar a vida para salvar os outros, faz um comentário cáustico: - Eu deveria ter suspeitado. Ninguém age de forma tão humana...

O final do quarto episódio é fabuloso. Ripley – um clone criado em laboratórios no espaço – e a andróide finalmente pousam a nave no planeta dos humanos.

Sobre uma elevação, observam lá embaixo uma cidade sombria.

- Então esta é a Terra... O que vamos fazer? – pergunta a andróide.

- Não sei – responde Ripley. – Aqui também sou uma estrangeira...

***

Terá sido o vinho? O início da noite na velha Praça 15? As grossas camadas de polpa vegetal da figueira que permanece de pé agarrada a cabos? Não sei. Mas Elaine me convenceu: O Monstro só deixa de nos aterrorizar se nos virarmos, o olharmos face a face e, com o corpo e a alma arrebentados pela náusea, nos deixarmos lamber. Então finalmente percebemos que ele só está ali porque também está dentro de nós. E assim aceitamos que somos, às vezes, gélido chacal. Mas às vezes, também, pássaro enluarado. E ser humano é assim, se reconhecer num e noutro.

2 comentários:

elaine tavares disse...

uau.. ficou lindíssimo....

Anônimo disse...

Quando sou mau, a culpa é do alien dentro de mim. Nem me reconheço... Cesar