Por Elaine Tavares – jornalista
As eleições no Brasil se revestiram de um manto moral. Quase ninguém discutiu os projetos de nação que apresentavam as candidaturas. O que importava mais era atuar na destruição da pessoa, no que ela tinha de “sujo e condenável”. Assim, a história de Dilma Roussef, uma mulher valente que entregou sua juventude para lutar contra a ditadura sanguinária que se instalou no país em 1964, no projeto de dominação perpetrado pelos Estados Unidos para evitar o “comunismo”, acabou se transformando em inomináveis absurdos. Pelas redes sociais, pelos correios eletrônicos, e na mídia comercial circularam informações das mais esdrúxulas. Que Dilma era assassina, terrorista, e pasmem, que havia dito que nem Jesus Cristo tirava a vitória dela. Cabia atacar a candidata do Lula, pois era a mais forte e se configurava a favorita. O fato de ela ter sido uma lutadora contra a ditadura, ter sido presa, torturada, ter se constituído uma profissional competente num mundo masculino, ter sido ministra numa pasta nunca antes ocupada por uma mulher, e tudo mais, não foi saudado. Nem pelas militantes do “gênero”.
Mesmos para aqueles que, como eu, sempre fizeram a crítica sistemática ao governo Lula, pelas coisas que deixou de fazer e pelas que fez dentro do recorte neoliberal, ler os correios que chegavam aos borbotões causava engulhos. Porque a crítica ao governo Lula precisa ser feita desde a esquerda, como forma de apontar os erros e de alavancar mudanças. Jamais poderíamos compactuar com as atrocidades ditas pela direita raivosa, pela igreja conservadora e pelas marionetes. Quando o argumento crítico é político, vamos discutir, mas atuar na lógica dos ataques pessoais, e além de tudo mentirosos, é voltar ao triste episódio dos anos 60, quando os católicos foram às ruas na Marcha da Família dizendo se defender do tremendo “mal” do comunismo, que comia criancinhas e roubava a propriedade privada. Os tempos atuais não poderiam conter esse viés reacionário e pouco inteligente. Hoje temos muito mais acesso a informações para que se possa cair neste velho conto. Mas, ainda assim, patrocinado pelos Estados Unidos, o inimigo que assoma - e ao qual se acusam todos os lutadores - é o de “terrorista”. Bastou gritar contra o preço do cafezinho e a pessoa já pode ser apontada como um.
A própria Marina Silva, que ao longo da campanha não deixou explícito que projeto de país defendia, embora durante sua trajetória como ministra e depois como candidata tenha realizado alianças claríssimas com o chamado “ecocapitalismo”, foi atacada no pessoal. A direita não a acusava de ter se aliado aos grandes empresários do agronegócio ou do chamado “desenvolvimento sustentável”, muito menos de ter compactuado com a liberação dos transgênicos ou com o roubo do conhecimento ancestral dos indígenas. Não, isso, na visão dos dominantes, foi coisa boa e não poderia ser criticado. A crítica a ela também era pessoal. Ela era a feia, a esfomeada, e outros adjetivos abjetos. Seu projeto de ligação visceral com o capitalismo dito responsável ficou obscurecido e os ambientalistas do capital a seguiram alegremente, como se fosse possível ser “sustentável” no capitalismo. O fraco discurso de salvar as florestas e os animais sem apresentar proposta de transformação para a vida humana na consolidação de uma proposta socialista acabou sem crítica e o resultado foram os milhões de votos.
Plínio de Arruda Sampaio, apesar de sua estatura intelectual, tampouco ficou de fora da mira do moralismo barato que invadiu a campanha eleitoral. O homem era inteligente, simpático, mas “muito velho”, iria morrer logo, então, melhor evitar o voto em alguém assim condenado. Nas campanhas anônimas que encheram caixas de correio e viajaram no boca-a-boca apenas Serra era a opção. Os motivos? Ora, os motivos eram claros: a Dilma era terrorista, a Marina, esfomeada, o Plínio, velho, o Zé Maria, louco, os demais eram ninguém, então só sobrava o paulistano, amigo do FHC, que tanto fez pelo Brasil. Para que melhor argumento? A morte da política.
É certo que o governo de Luis Inácio tem parte da culpa desta despolitização total da população. Mesmo na propaganda da Dilma, os argumentos para se votar na ex-ministra, acabavam sendo morais, de forte apelo emocional. Em um deles a canção chega a dizer que Lula entregava seu povo nas mãos dela, como se a população fosse um saco de batatas sem voz ou desejos. Enfim, o resultado foi o espelho da proposta de campanha que praticamente todos os candidatos empreenderam.
Figuras histriônicas como o Tiririca, Romário, e outros sem qualquer proposta concreta para o país, foram eleitos e causa surpresa a indignação que toma conta da mídia. Como se não fosse também responsabilidade dos formadores de opinião midiáticos esta completa falta de credibilidade que toma conta da população com relação ao Congresso Nacional. Não é de hoje que factóides denunciatórios tomam conta das telinhas da televisão, mostrando os políticos de Brasília como ladrões que levam dinheiro em cueca, num achincalhe pessoal, sem que a crítica se espraie para o terreno da política mesma.
O julgamento dos deputados corruptos é sempre moral. As atrocidades políticas que eles comentem contra o país e sua gente não são tratadas com a mesma “fome”. O que dizem os meios sobre as votações da bancada ruralista em prol do agronegócio? O que dizem sobre a aprovação de obras predadoras como a construção indiscriminada de barragens? E o Código Ambiental? Nada. Só que as pessoas não são idiotas e sabem que as casas legislativas não representam a vontade popular. Votar no Tiririca parece muito mais racional, não é, “peixe”?, como diria o Romário. O achincalhe é o protesto da consciência ingênua, daqueles que sabem que algo está errado no “reino de Brasília”, embora possam não saber bem o quê.
Agora vem o segundo turno. É a disputa plebiscitária. Serra contra Dilma. O eleitor inteligente haverá de buscar as informações reais. Serra é cria de FHC, que ficou no comando do país por oito anos, tal qual Lula, de quem Dilma é cria. O que fez o Fernando Henrique pelo país e pela população nos oito anos que lhe couberam? Qual era seu projeto de país, quem foram seus aliados? E o Lula, o que fez? Que projeto tornou real ao longo do seu mandato?
FHC foi a locomotiva do projeto neoliberal. Durante seu governo, os trabalhadores foram arrochados ao máximo, perderam dezenas de direitos, empresas públicas foram privatizadas em verdadeiros crimes de lesa pátria, o patrimônio da nação foi dilapidado. Sua idéia era a de estado mínimo para os pobres e estado total para os ricos. Representava a elite selvagem, capaz de saquear o próprio país sem qualquer abalo moral. Na sua testa poder-se-ia pregar o nome “bussines” (negócio, em inglês), sem medo de errar. Basta pesquisar as mobilizações populares no governo de FHC para se perceber os golpes dados contra o país.
O governo Lula assomou em 2003 com a promessa de mudança. Ao longo dos tempos foi fazendo composições e concessões com a elite produtiva do país. No seu governo os ricos ganharam muito, mas, na linha da social democracia, ele também trabalhou na outra ponta. O Bolsa família levou comida a milhões de famílias, criou vagas nas universidades, criou 14 novas universidades públicas, melhorou o salário mínimo, alavancou a vida da classe média, abriu crédito, praticou uma política externa de aproximação com a América Latina, coisa nunca feita antes. Claro que o governo Lula não significou qualquer avanço no projeto socialista. E ele nunca se propôs a isso. Talvez por isso tenha se tornado palatável a parte da elite local. As críticas feitas a todos estes projetos citados acima sempre foram contundentes. O bolsa família ainda não avançou para um processo de libertação, as universidades novas ainda carecem de qualidade, as vagas universitárias foram para a privadas, e toda uma sorte de outros pontos que poderíamos citar, e já o fizemos em vários outros artigos. Mas, mesmo dentro da lógica do capital, o governo Lula foi melhor que o de FHC.
Assim, se o processo que inicia agora rumo ao segundo turno é um plebiscito sobre propostas de governo, é preciso clareza. Serra representa o atraso, o conservadorismo, a elite insaciável e entreguista, capaz de qualquer coisa para sangrar as riquezas nacionais em benefício próprio e incapaz de conceder um mínimo que seja à população. Dilma representa o chamado “capitalismo humanizado”, que concede à elite, mas busca atender aos de baixo, em políticas assistenciais, programas sociais e políticas públicas. Dilma não é socialismo e muito menos a ameaça comunista, pode chegar a social democracia, garantindo privilégios, mas distribuindo melhor a riqueza. Já o Serra não é social democrata, apesar de isso estar no nome do seu partido. Ele é o vampiro das elites.
Ao povo, que no geral sabe muito bem das ínfimas diferenças que existem entre os candidatos, valeria uma reflexão. Estudar as ações de cada grupo em vez de dar voz a argumentações morais e pessoais que só reduzem a vida política ao ridículo. A eleição, enfim, não é “a mãe de todas as batalhas”, mas, nessa conjuntura, ela pode definir o futuro. A grande política pressupõe análise da realidade e propostas de superação. O socialismo pressupõe mais trabalho entre as gentes. Há que se voltar ao trabalho de base, coisa praticamente esquecida pelos partidos políticos que, na sua maioria, entraram na lógica do institucional. Há que voltar às ruas, aos bairros, às estradas barrentas da vida real, para construir desde baixo o sonho da sociedade justa, igualitária, fraterna e cooperativa.
Enquanto isso não acontece, não se pode retroceder. Sem volta atrás...
3 comentários:
Elaine, acho seu texto ótimo, muito lúcido, e com algumas informações que eu não tinha. Mas preciso esclarecer que nós, feministas, não somos “militantes do gênero”, como vc nos chama. Não defendemos um gênero, defendemos que as mulheres tenham direito aos direitos humanos, coisa que algumas pessoas muitíssimo esclarecidas, como vc, parecem não perceber que ainda não acontece. Parecem não perceber que há uma feminilização da pobreza, uma feminilização da violência doméstica, uma feminilização eterna da vitimização da violência sexual em todos os espaços e tempos, e, pior que tudo, idades. Nós, feministas de SC e do Brasil, falamos sim, de todas as questões que tornam Dilma especial por ser a primeira mulher que isso ou aquilo. Defendemos Dilma com unhas e dentes, e lutamos, desde sempre, por sua eleição, já no primeiro turno. Por entender que ela representa o que há de melhor, neste momento, não apenas para os interesses feministas, mas para os interesses da nação. Por que são interesses das mulheres aquilo que pode mudar o mundo de fato, como defensoria pública, combate ao racismo, distribuição de terra, moradias dignas, direito a vida, liberdade, dignidade. E estamos, exaustivamente, passando mensagens neste sentido. Faço parte de um grupo de e-mails feminista em SC e outro Nacional. Mandei mensagens sobre isso para meus amigos, discuti com alguns. Mas eu, “a feminista que escreve para o site da Pobres”, não mandei nenhum texto para este site porque sei que minha postura política não é tão de esquerda quanto a de vcs, então evito falar de eleições, candidatos e etc. neste espaço. Mas, caso vc queira acompanhar o que nós feministas estamos falando e fazendo o tempo todo, inclusive apoiando pessoas vítimas de violência, ajudando a criar condições para mulheres em situação de miséria, e muitas outras coisas, posso providenciar que seu e-mail seja colocado nos grupos de que participo. Sim, nós feministas lutamos por mais vagas nos três poderes para mulheres. Mas tem que ser mulher de esquerda, comprometida com as questões de raça, condição social, violência... E sim, nós discutimos eleições todo o tempo. Apenas os espaços são diversos, e vc não teve acesso. Um abraço, Li Travassos
cara Li, há uma diferença abissal entre o debate dfe gênero e o feminismo. Pelo que tu colocas , tenho certeza de que estás mais próxima do feminismo tal qual eu. Eu percebo sim como a mulher sofre duas ou três vezes e me revindico feminista. Feminista que faz a luta de classe. Como tu. Então, estamos no mesmo espaço do pensamento.
CANDIDATO ELEITO É COMO ESPELHO,MOSTRA O ROSTO DO ELEITOR
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