sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Compre também uma empresa pública

Por Raquel Moysés – jornalista

“Quer comprar um banco, uma ferrovia, uma rodovia, um porto? O governo vende baratíssimo. Ou pode doar.” O anúncio não saiu em jornal ou revista da chamada grande imprensa nem em redes de televisão do Brasil. Mas poderia ter saído, e quem quiser conferir a barbada que o governo FHC ofereceu para entregar as empresas nacionais a preço de “banana podre” (opa, “moeda podre”), a grandes empresas nacionais e multinacionais, no seu programa de privatizações, não pode deixar de ler o necessário livro O Brasil privatizado - Um balanço do desmonte do Estado, escrito pelo jornalista econômico Aloysio Biondi, que o país perdeu no ano de 2000. Foram quarenta e quatro anos de jornalismo, mais de dois mil textos publicados, num imenso esforço de traduzir a realidade brasileira. A leitura deste livro surpreendente, legado de ética e coerência, é absolutamente necessária para alimentar a memória de fatos históricos que o Brasil não pode jamais esquecer. Deveria ser indicação bibliográfica obrigatória nas escolas, para que a juventude não perca a conta do passado.

Com ilustrações e quadros aterradoramente reveladores, o livro não deixa qualquer dúvida sobre como as privatizações da era FHC foram verdadeiro “negócio da China” para os “compradores”, mas péssimos para o Brasil. “O Brasil privatizado - Um balanço do desmonte do Estado” conta, com riqueza de detalhes, como o patrimônio público dos brasileiros foi entregue aos tubarões do mundo privado, deixando o país muito mais pobre. O livro, campeão de tiragem, com mais de 130 mil cópias, está disponível para download, dividido em capítulos em (http://www.aloysiobiondi.com.br/spip.php?article4).

Durante a década de 1990, Biondi foi uma das poucas vozes a se levantar contra foi a abertura econômica sem freios e a condução das privatizações. Na obra, o jornalista calculou quanto o governo gastou e quanto obteve com a venda das estatais. A conta cuidadosa mostra que o discurso da equipe econômica do governo Fernando Henrique Cardoso escondia o fato de que R$ 87,6 bilhões não entraram ou saíram dos cofres públicos nesse processo. Isso precisava ser descontado do saldo. “O balanço geral mostra que o Brasil ‘torrou’ suas estatais, e não houve redução alguma na dívida interna, até o final do ano passado (1998)”.

Biondi mostra como o governo, antes de entregar as empresas públicas (48 no total, entre federais e estaduais), investiu maciçamente nelas, engordando verdadeiras galinhas dos ovos de ouro para especuladores. Antes de vender as empresas telefônicas, o governo injetou 21 bilhões de reais no setor, em dois anos e meio, vendendo tudo por uma “entrada” de 8,8 bilhões de reais, financiando metade da “entrada” para grupos nacionais. Na venda do Banerj, o “comprador” pagou apenas 330 milhões de reais, mas o governo do Rio tinha feito antes um empréstimo de 3,3 bilhões de reais para pagar direitos dos trabalhadores.

Assim ocorreu a privatização brasileira, denuncia o livro: o governo financia a compra no leilão, vende “moedas podres” a longo prazo e ainda financia os investimentos que os “compradores” precisam fazer. Não fica nisso, para engordar os lucros dos futuros “compradores” ainda engole dívidas bilionárias, demite funcionários, investe maciçamente e até aumenta tarifas e preços antes da privatização. Além disso, houve uma intensa campanha contra as estatais nos meios de comunicação, “verdadeira lavagem cerebral da população para facilitar as privatizações.” Entre os principais argumentos, aparecia sempre o falacioso exemplo de que elas trariam preços mais baixos para o consumidor.

Para garantir imensos lucros aos “compradores” e evitar que enfrentassem protestos do consumidor, as contas telefônicas sofreram reajustes de até 500% a partir de novembro de 95 e de 150% ou mais para as fornecedoras de energia elétrica. Os “compradores” também recebem a garantia do direito a aumentar as tarifas todos os anos, no mínimo, de acordo com a inflação. “O governo fez exatamente o contrário do que jornais, revistas e TVs diziam ao povo brasileiro, que acreditou em suas mentiras o tempo todo”. O governo e a mídia também esconderam que as metas estabelecidas para os compradores das telefônicas só valeriam a partir de dezembro de 99. Na prática, os compradores poderiam deixar de atender os consumidores ou não melhorar os serviços durante todo o segundo semestre de 1998 e o ano todo de 1999.

Também, antes de privatizar o governo enxugou as estatais para os “compradores”,fazendo demissões maciças de trabalhadores e gastando bilhões com indenizações e direitos trabalhistas. O governo de São Paulo, por exemplo, demitiu 10.062 funcionários da Fepasa, de 95 a 98 e ficou responsável pelo pagamento de 50 mil aposentados da ferrovia.

Biondi diz que as estatais foram usadas como arma contra a inflação, mas nunca se explicou suficientemente à população que essa decisão arruinava as estatais, dando motivo a falsas acusações de “incompetência” e “saco sem fundo”. Depois, quando veio a onda de privatizações, o governo fez o contrário aumentando preços (300%, no caso do aço) e tarifas (até 500%). O mais espantoso, comenta o autor, é que “engoliu”, passou para o Tesouro, dívidas somadas em muitos bilhões, que eram de estatais e que deveriam ser pagos pegos “compradores”. No caso da Cosipa o governo se responsabilizou por dívidas de 1,5 bilhão de reais e só recebeu pela venda 300 milhões. Engoliu também dívidas de um bilhão da Companhia Siderúrgica Nacional. Assim, fica fácil entender como os compradores puderam alardear grandes lucros rapidamente. Quem não quer empresas “limpinhas”, prontas para lucros, com tarifas e preços aumentados, folha reduzida, livres de dívidas? “É essa política que o governo chama de “saneamento das estatais”, preparatório para a privatização. Quem não quer?”

São poucas páginas de texto ágil para tantas denúncias. A revelação dos engodos e mentiras faz a mente pular para fora delas e ir abrindo outro livro, que tem a dimensão das terras exterminadas desses Brasis vítimas da dilapidação e do malogro. A mente vai folheando e vendo imagens de meninos curvados pelo trabalho escravo, espancados ou morrendo de frio, de mulheres e homens desesperados, de doentes sofrendo na longa espera pelo atendimento humano, de trabalhadores sem- terra, sem-teto, sem-esperança de vida digna... E daí, em segundos os olhos não vêem mais nada, gotejam... Não há como estancar a dor provocada pela visão da miséria, da fome, do desespero, do desamparo, das feridas desses cinco séculos de veias abertas que empapam a terra. Abra o livro de Biondi!

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