Por Elaine Tavares - jornalista
Rebeliões no Equador não são coisas difíceis de acontecer. Lá, a população, historicamente se levanta quando as coisas não andam conforme quer. Desde antes das guerras de independência, sublevações e lutas populares eram bem comuns e mesmo depois, já república, o país seguiu vivendo ondas tumultuosas. Passou por ditaduras e alternou entre golpes, contragolpes, governos conservadores e liberais, e o povo volta e meia assoma em rebelião.
Pouco depois da independência muitas foram as guerra travadas por conta dos limites do país. Houve conflitos com o Peru, Colômbia e Brasil e em todos eles o Equador perdeu parte das suas terras, firmando tratados que a população rechaçou, também realizando grandes protestos. Estas instabilidades fizeram com que os governos fossem curtos, tumultuados e proporcionassem a uma elite dominante o controle da vida econômica. Durante mais de uma década pós-independência prevaleceu a hegemonia conservadora e um Estado que quase se poderia chamar teocrático, tal a imbricação com a igreja católica. Os liberais só conseguiram chegar ao poder em 1895 depois de inúmeras lutas e rebeliões. E, apesar de terem se libertado do jugo católico e modernizado o país, os liberais também se fizeram ricos e saquearam o país. Ao povo, indignado, só cabiam as revoltas.
Os anos 20 do século XX foram tempos de ascensão da luta dos trabalhadores e estudantes. Com a participação de comunistas e socialistas se organizaram sindicatos e as lutas recrudesceram. Conforme conta o historiador James Cockcroft, em 1922, nos conflitos de rua, os estudantes chegavam a desarmar os soldados nos conflitos que se faziam diários. Essas rebeliões levaram a matanças e assassinatos que foram deixando marcas na lembrança popular. Em 1925, houve um golpe de estado, de corte socialista, que ficou conhecido como a “reforma Juliana”, levado a cabo por jovens oficiais do exército atraídos pelas idéias progressistas. A crise dos anos 30 desencadeou novos protestos de rua e voltaram os liberais a governar o país, trazendo com eles a oligarquia predadora, a igreja e o fascismo. Em 1933 o povo elege José María Velasco Ibarra que fazia um discurso popular, prometendo acabar com a pobreza.
Velasco tem uma história única no Equador. Nacionalista e determinado a mudar o destino do país que até então era uma grande fazenda, ele foi eleito cinco vezes, em 33, 44, 52, 60 e 68. Apenas no mandato de 52 conseguiu terminar seu governo. Todos os demais foram marcados por golpes e, consequentemente, por massivas lutas populares, rebeliões e insurreições, ora de apoio, ora contra. As revoltas populares são elementos recorrentes na história do Equador. É uma característica do povo equatoriano, que acredita piamente nas promessas dos governantes, mas quando não as vê cumpridas, não hesita em partir para a luta, derrubando os mesmos que ajudou a colocar no poder.
Nos anos 60, sob a presidência de Velasco, o mesmo decidiu aproximar-se da experiência revolucionária que nascia em Cuba, assim como também de Moscou. É aí que a Central de Inteligência Americana (CIA) entra em campo para cortar de vez as tendências esquerdistas de Velasco. Os Estados Unidos iniciavam com mais força as intervenções na América Latina. E, como em 1961 houve uma grande crise no ramo bananeiro, afetando bastante o Equador, Velasco teve de tomar medidas impopulares como o aumento de impostos. Por conta disso vieram grandes greves de trabalhadores e os EUA viram aí uma boa oportunidade de envolver o exército num novo golpe de estado, retirando a ameaça “comunista”. Os milicos atacaram e Velasco mais uma vez fugiu do país. Foi um tempo de novos massacres, prisões de dirigentes, torturas e todo o “kit básico” que os demais países da América Latina iriam conhecer com os golpes que se sucederam.
Foram as greves, as lutas e as rebeliões populares que, em 1968 trouxeram Velasco de volta. E, de novo, foi seu corte progressista que selou novo golpe de estado. Por conta de ter recebido Fidel Castro e ter prendido pescadores estadunidenses que faziam pesca ilegal dentro das águas equatorianas, Velasco ficou na mira do império. Também, por aqueles dias, os EUA já sabiam que as terras do Equador eram um celeiro de petróleo e havia que tirar essa riqueza das mãos de um nacionalista com tendências a fazer “maus amigos”. Assim, o mandato de Velasco não acaba. Vem um novo golpe militar.
O general Rodríguez Lara assume o comando do governo e passa a desenvolver uma série de ações nacionalistas prometendo ao povo usar o dinheiro do petróleo para desenvolver o país. Isso aconteceu por um tempo, até 1973, quando houve o boicote ao petróleo árabe e a quebra da OPEP. Como o governo de Lara tinha uma inclinação progressista e nacionalista, a direita equatoriana começou a planejar novo golpe e, com a ajuda dos Estados Unidos, isso acontece em 1976, sempre com fortes levantamentos populares de protesto. A partir daí quem passou a comandar a política econômica equatoriana foi o Fundo Monetário Internacional. Todo esse processo foi marcado por greves e movimentações populares. Abriu caminho também para a organização mais sistemática dos camponeses que realizaram congressos nacionais e, em 1980, criaram a Federação Nacional de Organizações Camponesas (FENOC). O tempo era de efervescência nas lutas populares e também os povos originários encontram os caminhos da organização através da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, a CONAIE.
Estas organizações e outras agrupações trabalhistas lograram realizar uma frente ampla e em 1979 saíram das trevas dos governos militares para um governo civil outra vez. Foi a primeira nação latino-americana a fazer isso no período em que as ditaduras militares foram hegemônicas na região. O eleito foi Roldós Aguilera, então com 38 anos, o presidente mais jovem que a América Latina já tivera. Mas, também seu governo não conseguiu avançar. Aguilera morre em 1981 num acidente e o seu vice Osvaldo Hurtado segue uma política conservadora que faz com que os trabalhadores, camponeses e indígenas se levantem em novas rebeliões que colocaram o país em estado de emergência até que chegassem as eleições de 1984, que colocou no poder um ultraconservador, León Febres Cordero. A sina do povo equatoriano parecia não ter mais fim. Ao longo de toda a sua história, as mobilizações e lutas populares sempre foram gigantescas, mas raramente estas forças conseguiram construir um projeto de país de forma conjunta. Mesmo a criação de uma frente armada revolucionária chamada de “Alfaro Vive, Carajo!” (uma homenagem ao ex-presidente liberal Eloy Alfaro), que perdurou por toda a década de 80, não logrou aglutinar a população numa proposta concreta de poder.
Com Febres Cordero o FMI nadou de braçada, os latifundiários ganharam rios de dinheiro e a igreja voltou ao poder. Por conta disso aconteceram massivas greves gerais em 86 e 87, com a sempre renovada violência militar contra os manifestantes, gerando saldos enormes de mortos, feridos, presos e desaparecidos.
Em 1989 o povo elege novo presidente, Rodrigo Borja, de centro esquerda. Ele reformou as leis trabalhistas gerando novas ondas de protestos entre os trabalhadores. Também são importantíssimos os levantamentos indígenas que começam em 1990, quando a CONAIE chegou a fazer reféns militares. Depois, em 1991 os indígenas ocuparam o Congresso Nacional em luta por terra e autonomia. Foram batalhas gigantescas e envolveram boa parte da população. Apesar disso, as políticas neoliberais faziam galope pela América Latina e o Equador não ficou imune. Em 1992, com a ascensão de Duran Ballén à presidência, a direita retorna com força apostando em idéias “modernizantes”, que nada mais eram do que as mesmas velhas receitas do FMI e Banco Mundial, arruinando as empresas estatais e apostando na especulação financeira. Também neste governo houve grandes lutas indígenas por conta da Lei Agrária.
O ano de 1996 chega e que vence as eleições presidenciais é Abdalá Bucaram, com o também mesmo velho discursos de dar poder aos “descamisados” dando vazão ao que o economista René Báez chama de “democracia obscena”. Carente de um projeto nacional, democrático e popular, Abdalá se transforma num espetáculo grotesco, cheio de medidas moralistas, como por exemplo prender roqueiros e lutadores de Box. Ele chegou a receber no país a estadunidense Lorena Bobbit (a que castrou o marido) e com ela foi padrinho de batismo do filho de uma popular cantora do Equador. Suas extravagâncias eram tantas que foi apelidado de El Loco. A política econômica ortodoxa seguia o diapasão do ajustes do FMI e mais uma vez as massas saíram às ruas, com protestos, rebeliões e as sempre tradicionais prisões. Indígenas, funcionários públicos, professores universitários sofreram na pele as violência do Estado. E foi Bucaram quem teve a idéia de chamar para o Equador o mesmo tecnocrata que já havia destruído a Argentina: Domingos Cavallo, para igualmente criar um plano que viria arrochar ainda mais a população. Vem daí a idéia de dolarização da economia, a transformar o Equador num grande bazar sem riqueza própria.
Durante o governo de Bucaram não foram poucas as intifadas estudantis e muitos os protestos dos movimentos sociais, a ponto de novamente tentarem uma unidade na Frente Patriótica de Defesa do Povo, chamando uma greve geral para fevereiro de 1997, coisa que acabou se transformando numa nova rebelião. O movimento foi tão forte que provocou a derrubada de Abdalá Bucaram. O Congresso empossa o seu presidente, Fabian Alarcón, como presidente do Equador. De novo, o povo derruba um presidente, mas não encontra forças e articulação suficiente para assumir o mando. Novamente as gentes caem no conto daqueles que fazem promessas e não as cumprem. Tanto que o novo presidente logo foi render homenagens aos patriarcas da direita e seguiu governando dentro das linhas do neoliberalismo, tal e qual o que havia sido deposto. A roda política seguiu sua gira sem fim, com o povo voltando às ruas em novas jornadas cívicas. Durante esse governo é escrita uma nova Constituição que, com maioria direitista, não avança no rumo das lutas sociais reivindicadas nas ruas.
Em 1998 as novas eleições no Equador acontecem num clima de completo descrédito. O país está esgotado. As greves são freqüentes, a pobreza é gigante e ainda há uma parte do país alagada pelas enchentes. A campanha foi baseada na mesma política paternalista de sempre, prometendo acabar com a miséria das gentes. O vencedor foi um jovem graduado em Harward, Jamil Mahuad. Nenhuma novidade sob o sol. Ajustes neoliberais, privatizações, novos acordos com o FMI e a cessão da base de Manta aos Estados Unidos. Em 1999 o país viveu um crack financeiro, que quebrou empresas, bancos e jogou os movimentos sociais nas ruas outra vez. O governo congelou as contas bancárias e aumentou os preços de quase tudo. Por todo o país as gentes se manifestavam paralisando as estradas, realizando greves gerais, enquanto as forças públicas protagonizavam a “balaceira”. Por meses os trabalhadores seguiram lutando exigindo que o governo tomasse uma decisão pelo povo equatoriano, o que acabou por garantir a moratória da dívida externa. No ano 2000, ainda acossado por massivos movimentos, com os indígenas praticamente tomando a capital, Mahuad anuncia a dolarização da economia e o fim do sucre (moeda nacional). É o que basta para que nova rebelião popular aconteça, com a parceria de parte das forças armadas que interveio e depôs o presidente neoliberal na chamada “revolução do arco-íris”. A frágil aliança entre os movimentos populares e as forças armadas, configuradas na Junta de Salvação Nacional, não consegue se sustentar por muito tempo. A oligarquia, temendo que a “chusma indígena” chegasse ao poder, espalhou os seus tentáculos e tomou as rédeas da política.
E foi essa reação da velha direita, articulada com os Estados Unidos (chegou a ameaçar de embargo caso a junta administrasse o país) que fez com que a transição fosse encabeçada por Gustavo Noboa Bejarano, uma espécie de católico fundamentalista que tão logo assumiu o cargo, respaldou as medidas tomadas pelo presidente deposto e seguiu com a política neoliberal, buscando mais empréstimos junto ao FMI. Assim, no ano de 2001 novos protestos começaram a ganhar vulto e os indígenas, que haviam alavancado a deposição de Mahuad, anunciavam novas tomas de cidades, inclusive a capital. A eles se juntaram os estudantes, camponeses e trabalhadores em dezenas de pequenos motins que culminaram na “rebelião dos comuneros", que durou 10 dias, com brutal repressão e acabou com o governo capitulando e negociando. E, assim, mais uma vez, a gente rebelada voltou para suas casas acreditando nas promessas dos governantes. Ainda assim, as intenções estadunidenses de implementar a Área de Livre Comércio, fizeram com que os movimentos sociais voltassem às ruas no ano de 2002, com manifestações massivas.
Desde a aliança com os oficiais do exército no ano 2000, a figura de um jovem coronel, de origem indígena, assomou com bastante força. Era Lúcio Gutiérrez. Ele participou da queda de Mahuad e teve atuação contundente na rebelião dos comuneros assim como nas lutas anti-Alca. Assim, foi quase natural que a sua candidatura, com forte conteúdo nacionalista, tivesse o apoio do movimento indígena e da esquerda em geral. Gutierrez representava tudo aquilo que a direta equatoriana vinha evitando pelos anos a fio. Um mestiço, comunista, lulista, chavista, populista, nacionalista e todos os adjetivos “assustadores” que tornaram a campanha quase que uma guerra do bem contra o mal. A vitória de Lúcio Gutiérrez em 2002 foi um genuíno sucesso popular.
Mas, dias depois lá estava ele aceitando as políticas do FMI, do Banco Mundial, levando gente ligada aos monopólios bancários para seu grupo dirigente e a esperança começou a afundar. “A Frente Popular e Anti-imperialista articulada antes das eleições nem chegou a nascer”, observa René Báez no seu livro A Anti-história equatoriana. Gutiérrez recebeu missões estadunidenses e foi beijar a mão do líder direitista Febres Cordero em Guayaquil. Foi o que bastou para que os movimentos que o haviam apoiado passarem ao outro lado. Cinco meses depois de assumir, já havia luta nas ruas. A CONAIE chamou uma conferência das nacionalidades e apontava caminhos para novas rebeliões, caso Gutiérrez não voltasse ao plano traçado antes de ser eleito. Os gritos de “traidor” já se faziam ouvir entre petroleiros, estudantes, professores, que promoviam greves. Logo em seguida veio a greve de fome dos aposentados que acabou com mais de 10 mortos e, por fim a “rebelião dos foragidos”, que se fez ouvir em todo o planeta com o seu grito de “fora todos”. Em abril de 2005 a revolta popular foi tão grande que Lúcio teve de fugir, refugiando-se na embaixada brasileira. Era o fim de mais um governo e, mais uma vez, as forças rebeldes não lograram sustentar um projeto de país e de poder. Assim, quem assume é o vice-presidente Alfredo Palácio e nada acaba mudando de verdade.
É nesse contexto que aparece Rafael Correa. Crítico da dolarização e das reformas neoliberais ele é escolhido para ministro da economia desenhando o que ficou conhecido como o Plano Correa. De matiz keynesiana e cepalina, o plano aponta para a defesa da riqueza petroleira, incentivos ao aparato produtivo e a busca de um Estado social. Todas estas medidas são eco das tremendas lutas travadas nas ruas pela população rebelada e, por isso mesmo, o ministro não esquenta por muito tempo o cargo. Por outro lado, as ruas também começam a se manifestar, na medida em que o regime de Palacios volta a tender para direita. Da mesma forma, o movimento indígena, comandado pela CONAIE retoma com mais força a luta pelo Estado Plurinacional.
As eleições de 2006 foram absolutamente dicotômicas. Monroísmo/neoliberal com o magnata Álvaro Noboa, versus o nacionalismo/bolivariano, com Rafael Correa. E não restaram dúvidas. Desde o abril de 2005 que as forças populares vinham impulsionando uma série de avanços, mesmo com um governo entreguista. Agora, o jovem economista que havia esboçado o Plano Correa tinha chances de fazer acontecer as suas propostas de revolução cidadã. Mais uma vez as gentes equatorianas acreditaram na possibilidade da mudança e Rafael teve uma vitória estrondosa. Aliado a Chávez e Evo Morales, Correa deu início às mudanças, com a chamada de uma constituinte. Tudo parecia seguir seu rumo de transformação.
Os caminhos de Correa
Mas, com o passar do tempo as coisas voltaram a ficar tensas entre o poder e as ruas. Terminada a nova Constituição, que, de fato, trouxe propostas revolucionárias – como os direitos da natureza – a construção das leis regulamentadoras passaram a provocar novos conflitos. A política petroleira se equilibra entre as idéias de nacionalismo e a subserviência aos interesses das transnacionais, como por exemplo, a Petrobras. De igual maneira a política para a área mineira já levantou os povos originários em várias manifestações, algumas delas bastante expressivas. Os indígenas são radicalmente contra a lei que, concretamente abre as portas para a mineração sem levar em conta os estragos profundos no meio ambiente e nas terras comunais. Neste momento em que o governo viveu o drama da rebelião dos policias, os indígenas estão realizando uma série de protestos no país discutindo as leis das águas, da mineração e da reforma agrária. E esta é uma parcela da população que não pode ser desprezada, visto que já protagonizou rebeliões célebres e vitoriosas.
A nova lei do serviço público, aprovada recentemente, é um calo na vida dos trabalhadores. Ela mexe na aposentadoria, nos salários e já provocou inúmeros protestos ao longo dos últimos anos, enquanto estava em discussão no Congresso. Parte da esquerda insiste que o governo está arrochando os trabalhadores, que tira direitos e aplica a velha receita neoliberal de “ajuste”. Já outros grupos, também nominados de esquerda, insistem que o Equador precisa se rever, atuar sobre novas bases e que estas mudanças são necessárias. Outra lei que tem provocado manifestações gigantescas dos professores e estudantes é a lei da educação, igualmente apontada como neoliberal.
Mas, no meio de toda esta batalha de idéias e propostas travadas com os movimentos sociais e a esquerda também está aninhada a velha direita, a oligarquia, a mesma elite promotora de golpes e contragolpes ao longo destes anos. Esta gente não está parada esperando os acontecimentos. Está agindo e muito bem orientada pelos seus velhos “patrões”. São conhecidos os passos dados pelo ex-presidente Lúcio Gutiérrez, assim como as tramóias dos embaixadores estadunidenses. É por isso que os acontecimentos de 30 de setembro precisam ser analisados com todos os elementos na mesa. É fato que os movimentos estão em luta, é fato que a lei do serviço público traz prejuízos aos trabalhadores, é fato que o levantamento dos policiais estava dentro deste contexto. Mas não dá para ser ingênuo a ponto de não reconhecer que as forças reacionárias seguem agindo, se infiltrando e minando as forças armadas. Porque, afinal, como lembra Heinz Dieterich, são elas, em última instância que determinam o rumo da prosa.
O governo de Rafael Correa passou por uma prova de fogo. Nada que seja desconhecido no Equador. Quando um governante não cumpre o que promete, o povo trata de arrancá-lo do poder. Nestes anos todos, os movimentos, apesar das gigantescas lutas, sempre acabaram se rendendo a institucionalidade capitaneada pelas forças oligárquicas. Agora, com Correa, o povo está de novo na batalha. Ainda não falam em derrubar o presidente. Ele tem bastante aceitação popular. As gentes têm consciência dos avanços e os movimentos estão mais maduros, mas isso não significa que não brigarão para garantir suas demandas. Por isso vão às ruas e protestam. Talvez, os acontecimentos deste 30 de setembro levem o presidente a rever sua postura diante das reivindicações. Mesmo entre os aliados de Correa é corrente a constatação da falta de tato do presidente ao lidar com os movimentos. Por vezes ele é arrogante, intransigente e explosivo. Isso pode ser visto na reação com os policiais quando arrancou a gravata e sugeriu que o matassem ali mesmo. Estas são coisas que os movimentos sociais não aprovam e provocam faíscas durante as negociações.
O fato é que a peleia com trabalhadores armados é muito mais delicada e isso pode ser visto durante o episódio deste 30 de setembro. Parece bastante claro que os trabalhadores iniciaram o movimento como uma legítima defesa dos seus direitos, mas no avançar dos acontecimentos a ocasião se apresentou propícia para aqueles que confabulam contra o governo. E daí para uma tentativa de golpe foi um pulo. Até porque não é de hoje que a inteligência equatoriana denuncia o pagamento de informantes dentro da polícia por diplomatas estadunidenses. Eva Golinder também já denunciou que a USAID derramou no Equador só em 2010 mais de 30 milhões de dólares. O que precisa ficar explícito ao se analisar os fatos no Equador é que o inimigo nunca dorme. Ele aí está, vivo, tramando, infiltrando, ganhando pessoas, e sempre pronto para o bote. Por isso é que esta caminhada de mudanças dentro da ordem sempre é uma grande incógnita. Há que vigiar e cuidar... Vale sempre lembrar o exemplo do golpe em Honduras, o crescimento da direita na Venezuela, o ataque a senadora Piedad Córdoba. O inimigo está desperto e é perigoso!
Rebeliões no Equador não são coisas difíceis de acontecer. Lá, a população, historicamente se levanta quando as coisas não andam conforme quer. Desde antes das guerras de independência, sublevações e lutas populares eram bem comuns e mesmo depois, já república, o país seguiu vivendo ondas tumultuosas. Passou por ditaduras e alternou entre golpes, contragolpes, governos conservadores e liberais, e o povo volta e meia assoma em rebelião.
Pouco depois da independência muitas foram as guerra travadas por conta dos limites do país. Houve conflitos com o Peru, Colômbia e Brasil e em todos eles o Equador perdeu parte das suas terras, firmando tratados que a população rechaçou, também realizando grandes protestos. Estas instabilidades fizeram com que os governos fossem curtos, tumultuados e proporcionassem a uma elite dominante o controle da vida econômica. Durante mais de uma década pós-independência prevaleceu a hegemonia conservadora e um Estado que quase se poderia chamar teocrático, tal a imbricação com a igreja católica. Os liberais só conseguiram chegar ao poder em 1895 depois de inúmeras lutas e rebeliões. E, apesar de terem se libertado do jugo católico e modernizado o país, os liberais também se fizeram ricos e saquearam o país. Ao povo, indignado, só cabiam as revoltas.
Os anos 20 do século XX foram tempos de ascensão da luta dos trabalhadores e estudantes. Com a participação de comunistas e socialistas se organizaram sindicatos e as lutas recrudesceram. Conforme conta o historiador James Cockcroft, em 1922, nos conflitos de rua, os estudantes chegavam a desarmar os soldados nos conflitos que se faziam diários. Essas rebeliões levaram a matanças e assassinatos que foram deixando marcas na lembrança popular. Em 1925, houve um golpe de estado, de corte socialista, que ficou conhecido como a “reforma Juliana”, levado a cabo por jovens oficiais do exército atraídos pelas idéias progressistas. A crise dos anos 30 desencadeou novos protestos de rua e voltaram os liberais a governar o país, trazendo com eles a oligarquia predadora, a igreja e o fascismo. Em 1933 o povo elege José María Velasco Ibarra que fazia um discurso popular, prometendo acabar com a pobreza.
Velasco tem uma história única no Equador. Nacionalista e determinado a mudar o destino do país que até então era uma grande fazenda, ele foi eleito cinco vezes, em 33, 44, 52, 60 e 68. Apenas no mandato de 52 conseguiu terminar seu governo. Todos os demais foram marcados por golpes e, consequentemente, por massivas lutas populares, rebeliões e insurreições, ora de apoio, ora contra. As revoltas populares são elementos recorrentes na história do Equador. É uma característica do povo equatoriano, que acredita piamente nas promessas dos governantes, mas quando não as vê cumpridas, não hesita em partir para a luta, derrubando os mesmos que ajudou a colocar no poder.
Nos anos 60, sob a presidência de Velasco, o mesmo decidiu aproximar-se da experiência revolucionária que nascia em Cuba, assim como também de Moscou. É aí que a Central de Inteligência Americana (CIA) entra em campo para cortar de vez as tendências esquerdistas de Velasco. Os Estados Unidos iniciavam com mais força as intervenções na América Latina. E, como em 1961 houve uma grande crise no ramo bananeiro, afetando bastante o Equador, Velasco teve de tomar medidas impopulares como o aumento de impostos. Por conta disso vieram grandes greves de trabalhadores e os EUA viram aí uma boa oportunidade de envolver o exército num novo golpe de estado, retirando a ameaça “comunista”. Os milicos atacaram e Velasco mais uma vez fugiu do país. Foi um tempo de novos massacres, prisões de dirigentes, torturas e todo o “kit básico” que os demais países da América Latina iriam conhecer com os golpes que se sucederam.
Foram as greves, as lutas e as rebeliões populares que, em 1968 trouxeram Velasco de volta. E, de novo, foi seu corte progressista que selou novo golpe de estado. Por conta de ter recebido Fidel Castro e ter prendido pescadores estadunidenses que faziam pesca ilegal dentro das águas equatorianas, Velasco ficou na mira do império. Também, por aqueles dias, os EUA já sabiam que as terras do Equador eram um celeiro de petróleo e havia que tirar essa riqueza das mãos de um nacionalista com tendências a fazer “maus amigos”. Assim, o mandato de Velasco não acaba. Vem um novo golpe militar.
O general Rodríguez Lara assume o comando do governo e passa a desenvolver uma série de ações nacionalistas prometendo ao povo usar o dinheiro do petróleo para desenvolver o país. Isso aconteceu por um tempo, até 1973, quando houve o boicote ao petróleo árabe e a quebra da OPEP. Como o governo de Lara tinha uma inclinação progressista e nacionalista, a direita equatoriana começou a planejar novo golpe e, com a ajuda dos Estados Unidos, isso acontece em 1976, sempre com fortes levantamentos populares de protesto. A partir daí quem passou a comandar a política econômica equatoriana foi o Fundo Monetário Internacional. Todo esse processo foi marcado por greves e movimentações populares. Abriu caminho também para a organização mais sistemática dos camponeses que realizaram congressos nacionais e, em 1980, criaram a Federação Nacional de Organizações Camponesas (FENOC). O tempo era de efervescência nas lutas populares e também os povos originários encontram os caminhos da organização através da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador, a CONAIE.
Estas organizações e outras agrupações trabalhistas lograram realizar uma frente ampla e em 1979 saíram das trevas dos governos militares para um governo civil outra vez. Foi a primeira nação latino-americana a fazer isso no período em que as ditaduras militares foram hegemônicas na região. O eleito foi Roldós Aguilera, então com 38 anos, o presidente mais jovem que a América Latina já tivera. Mas, também seu governo não conseguiu avançar. Aguilera morre em 1981 num acidente e o seu vice Osvaldo Hurtado segue uma política conservadora que faz com que os trabalhadores, camponeses e indígenas se levantem em novas rebeliões que colocaram o país em estado de emergência até que chegassem as eleições de 1984, que colocou no poder um ultraconservador, León Febres Cordero. A sina do povo equatoriano parecia não ter mais fim. Ao longo de toda a sua história, as mobilizações e lutas populares sempre foram gigantescas, mas raramente estas forças conseguiram construir um projeto de país de forma conjunta. Mesmo a criação de uma frente armada revolucionária chamada de “Alfaro Vive, Carajo!” (uma homenagem ao ex-presidente liberal Eloy Alfaro), que perdurou por toda a década de 80, não logrou aglutinar a população numa proposta concreta de poder.
Com Febres Cordero o FMI nadou de braçada, os latifundiários ganharam rios de dinheiro e a igreja voltou ao poder. Por conta disso aconteceram massivas greves gerais em 86 e 87, com a sempre renovada violência militar contra os manifestantes, gerando saldos enormes de mortos, feridos, presos e desaparecidos.
Em 1989 o povo elege novo presidente, Rodrigo Borja, de centro esquerda. Ele reformou as leis trabalhistas gerando novas ondas de protestos entre os trabalhadores. Também são importantíssimos os levantamentos indígenas que começam em 1990, quando a CONAIE chegou a fazer reféns militares. Depois, em 1991 os indígenas ocuparam o Congresso Nacional em luta por terra e autonomia. Foram batalhas gigantescas e envolveram boa parte da população. Apesar disso, as políticas neoliberais faziam galope pela América Latina e o Equador não ficou imune. Em 1992, com a ascensão de Duran Ballén à presidência, a direita retorna com força apostando em idéias “modernizantes”, que nada mais eram do que as mesmas velhas receitas do FMI e Banco Mundial, arruinando as empresas estatais e apostando na especulação financeira. Também neste governo houve grandes lutas indígenas por conta da Lei Agrária.
O ano de 1996 chega e que vence as eleições presidenciais é Abdalá Bucaram, com o também mesmo velho discursos de dar poder aos “descamisados” dando vazão ao que o economista René Báez chama de “democracia obscena”. Carente de um projeto nacional, democrático e popular, Abdalá se transforma num espetáculo grotesco, cheio de medidas moralistas, como por exemplo prender roqueiros e lutadores de Box. Ele chegou a receber no país a estadunidense Lorena Bobbit (a que castrou o marido) e com ela foi padrinho de batismo do filho de uma popular cantora do Equador. Suas extravagâncias eram tantas que foi apelidado de El Loco. A política econômica ortodoxa seguia o diapasão do ajustes do FMI e mais uma vez as massas saíram às ruas, com protestos, rebeliões e as sempre tradicionais prisões. Indígenas, funcionários públicos, professores universitários sofreram na pele as violência do Estado. E foi Bucaram quem teve a idéia de chamar para o Equador o mesmo tecnocrata que já havia destruído a Argentina: Domingos Cavallo, para igualmente criar um plano que viria arrochar ainda mais a população. Vem daí a idéia de dolarização da economia, a transformar o Equador num grande bazar sem riqueza própria.
Durante o governo de Bucaram não foram poucas as intifadas estudantis e muitos os protestos dos movimentos sociais, a ponto de novamente tentarem uma unidade na Frente Patriótica de Defesa do Povo, chamando uma greve geral para fevereiro de 1997, coisa que acabou se transformando numa nova rebelião. O movimento foi tão forte que provocou a derrubada de Abdalá Bucaram. O Congresso empossa o seu presidente, Fabian Alarcón, como presidente do Equador. De novo, o povo derruba um presidente, mas não encontra forças e articulação suficiente para assumir o mando. Novamente as gentes caem no conto daqueles que fazem promessas e não as cumprem. Tanto que o novo presidente logo foi render homenagens aos patriarcas da direita e seguiu governando dentro das linhas do neoliberalismo, tal e qual o que havia sido deposto. A roda política seguiu sua gira sem fim, com o povo voltando às ruas em novas jornadas cívicas. Durante esse governo é escrita uma nova Constituição que, com maioria direitista, não avança no rumo das lutas sociais reivindicadas nas ruas.
Em 1998 as novas eleições no Equador acontecem num clima de completo descrédito. O país está esgotado. As greves são freqüentes, a pobreza é gigante e ainda há uma parte do país alagada pelas enchentes. A campanha foi baseada na mesma política paternalista de sempre, prometendo acabar com a miséria das gentes. O vencedor foi um jovem graduado em Harward, Jamil Mahuad. Nenhuma novidade sob o sol. Ajustes neoliberais, privatizações, novos acordos com o FMI e a cessão da base de Manta aos Estados Unidos. Em 1999 o país viveu um crack financeiro, que quebrou empresas, bancos e jogou os movimentos sociais nas ruas outra vez. O governo congelou as contas bancárias e aumentou os preços de quase tudo. Por todo o país as gentes se manifestavam paralisando as estradas, realizando greves gerais, enquanto as forças públicas protagonizavam a “balaceira”. Por meses os trabalhadores seguiram lutando exigindo que o governo tomasse uma decisão pelo povo equatoriano, o que acabou por garantir a moratória da dívida externa. No ano 2000, ainda acossado por massivos movimentos, com os indígenas praticamente tomando a capital, Mahuad anuncia a dolarização da economia e o fim do sucre (moeda nacional). É o que basta para que nova rebelião popular aconteça, com a parceria de parte das forças armadas que interveio e depôs o presidente neoliberal na chamada “revolução do arco-íris”. A frágil aliança entre os movimentos populares e as forças armadas, configuradas na Junta de Salvação Nacional, não consegue se sustentar por muito tempo. A oligarquia, temendo que a “chusma indígena” chegasse ao poder, espalhou os seus tentáculos e tomou as rédeas da política.
E foi essa reação da velha direita, articulada com os Estados Unidos (chegou a ameaçar de embargo caso a junta administrasse o país) que fez com que a transição fosse encabeçada por Gustavo Noboa Bejarano, uma espécie de católico fundamentalista que tão logo assumiu o cargo, respaldou as medidas tomadas pelo presidente deposto e seguiu com a política neoliberal, buscando mais empréstimos junto ao FMI. Assim, no ano de 2001 novos protestos começaram a ganhar vulto e os indígenas, que haviam alavancado a deposição de Mahuad, anunciavam novas tomas de cidades, inclusive a capital. A eles se juntaram os estudantes, camponeses e trabalhadores em dezenas de pequenos motins que culminaram na “rebelião dos comuneros", que durou 10 dias, com brutal repressão e acabou com o governo capitulando e negociando. E, assim, mais uma vez, a gente rebelada voltou para suas casas acreditando nas promessas dos governantes. Ainda assim, as intenções estadunidenses de implementar a Área de Livre Comércio, fizeram com que os movimentos sociais voltassem às ruas no ano de 2002, com manifestações massivas.
Desde a aliança com os oficiais do exército no ano 2000, a figura de um jovem coronel, de origem indígena, assomou com bastante força. Era Lúcio Gutiérrez. Ele participou da queda de Mahuad e teve atuação contundente na rebelião dos comuneros assim como nas lutas anti-Alca. Assim, foi quase natural que a sua candidatura, com forte conteúdo nacionalista, tivesse o apoio do movimento indígena e da esquerda em geral. Gutierrez representava tudo aquilo que a direta equatoriana vinha evitando pelos anos a fio. Um mestiço, comunista, lulista, chavista, populista, nacionalista e todos os adjetivos “assustadores” que tornaram a campanha quase que uma guerra do bem contra o mal. A vitória de Lúcio Gutiérrez em 2002 foi um genuíno sucesso popular.
Mas, dias depois lá estava ele aceitando as políticas do FMI, do Banco Mundial, levando gente ligada aos monopólios bancários para seu grupo dirigente e a esperança começou a afundar. “A Frente Popular e Anti-imperialista articulada antes das eleições nem chegou a nascer”, observa René Báez no seu livro A Anti-história equatoriana. Gutiérrez recebeu missões estadunidenses e foi beijar a mão do líder direitista Febres Cordero em Guayaquil. Foi o que bastou para que os movimentos que o haviam apoiado passarem ao outro lado. Cinco meses depois de assumir, já havia luta nas ruas. A CONAIE chamou uma conferência das nacionalidades e apontava caminhos para novas rebeliões, caso Gutiérrez não voltasse ao plano traçado antes de ser eleito. Os gritos de “traidor” já se faziam ouvir entre petroleiros, estudantes, professores, que promoviam greves. Logo em seguida veio a greve de fome dos aposentados que acabou com mais de 10 mortos e, por fim a “rebelião dos foragidos”, que se fez ouvir em todo o planeta com o seu grito de “fora todos”. Em abril de 2005 a revolta popular foi tão grande que Lúcio teve de fugir, refugiando-se na embaixada brasileira. Era o fim de mais um governo e, mais uma vez, as forças rebeldes não lograram sustentar um projeto de país e de poder. Assim, quem assume é o vice-presidente Alfredo Palácio e nada acaba mudando de verdade.
É nesse contexto que aparece Rafael Correa. Crítico da dolarização e das reformas neoliberais ele é escolhido para ministro da economia desenhando o que ficou conhecido como o Plano Correa. De matiz keynesiana e cepalina, o plano aponta para a defesa da riqueza petroleira, incentivos ao aparato produtivo e a busca de um Estado social. Todas estas medidas são eco das tremendas lutas travadas nas ruas pela população rebelada e, por isso mesmo, o ministro não esquenta por muito tempo o cargo. Por outro lado, as ruas também começam a se manifestar, na medida em que o regime de Palacios volta a tender para direita. Da mesma forma, o movimento indígena, comandado pela CONAIE retoma com mais força a luta pelo Estado Plurinacional.
As eleições de 2006 foram absolutamente dicotômicas. Monroísmo/neoliberal com o magnata Álvaro Noboa, versus o nacionalismo/bolivariano, com Rafael Correa. E não restaram dúvidas. Desde o abril de 2005 que as forças populares vinham impulsionando uma série de avanços, mesmo com um governo entreguista. Agora, o jovem economista que havia esboçado o Plano Correa tinha chances de fazer acontecer as suas propostas de revolução cidadã. Mais uma vez as gentes equatorianas acreditaram na possibilidade da mudança e Rafael teve uma vitória estrondosa. Aliado a Chávez e Evo Morales, Correa deu início às mudanças, com a chamada de uma constituinte. Tudo parecia seguir seu rumo de transformação.
Os caminhos de Correa
Mas, com o passar do tempo as coisas voltaram a ficar tensas entre o poder e as ruas. Terminada a nova Constituição, que, de fato, trouxe propostas revolucionárias – como os direitos da natureza – a construção das leis regulamentadoras passaram a provocar novos conflitos. A política petroleira se equilibra entre as idéias de nacionalismo e a subserviência aos interesses das transnacionais, como por exemplo, a Petrobras. De igual maneira a política para a área mineira já levantou os povos originários em várias manifestações, algumas delas bastante expressivas. Os indígenas são radicalmente contra a lei que, concretamente abre as portas para a mineração sem levar em conta os estragos profundos no meio ambiente e nas terras comunais. Neste momento em que o governo viveu o drama da rebelião dos policias, os indígenas estão realizando uma série de protestos no país discutindo as leis das águas, da mineração e da reforma agrária. E esta é uma parcela da população que não pode ser desprezada, visto que já protagonizou rebeliões célebres e vitoriosas.
A nova lei do serviço público, aprovada recentemente, é um calo na vida dos trabalhadores. Ela mexe na aposentadoria, nos salários e já provocou inúmeros protestos ao longo dos últimos anos, enquanto estava em discussão no Congresso. Parte da esquerda insiste que o governo está arrochando os trabalhadores, que tira direitos e aplica a velha receita neoliberal de “ajuste”. Já outros grupos, também nominados de esquerda, insistem que o Equador precisa se rever, atuar sobre novas bases e que estas mudanças são necessárias. Outra lei que tem provocado manifestações gigantescas dos professores e estudantes é a lei da educação, igualmente apontada como neoliberal.
Mas, no meio de toda esta batalha de idéias e propostas travadas com os movimentos sociais e a esquerda também está aninhada a velha direita, a oligarquia, a mesma elite promotora de golpes e contragolpes ao longo destes anos. Esta gente não está parada esperando os acontecimentos. Está agindo e muito bem orientada pelos seus velhos “patrões”. São conhecidos os passos dados pelo ex-presidente Lúcio Gutiérrez, assim como as tramóias dos embaixadores estadunidenses. É por isso que os acontecimentos de 30 de setembro precisam ser analisados com todos os elementos na mesa. É fato que os movimentos estão em luta, é fato que a lei do serviço público traz prejuízos aos trabalhadores, é fato que o levantamento dos policiais estava dentro deste contexto. Mas não dá para ser ingênuo a ponto de não reconhecer que as forças reacionárias seguem agindo, se infiltrando e minando as forças armadas. Porque, afinal, como lembra Heinz Dieterich, são elas, em última instância que determinam o rumo da prosa.
O governo de Rafael Correa passou por uma prova de fogo. Nada que seja desconhecido no Equador. Quando um governante não cumpre o que promete, o povo trata de arrancá-lo do poder. Nestes anos todos, os movimentos, apesar das gigantescas lutas, sempre acabaram se rendendo a institucionalidade capitaneada pelas forças oligárquicas. Agora, com Correa, o povo está de novo na batalha. Ainda não falam em derrubar o presidente. Ele tem bastante aceitação popular. As gentes têm consciência dos avanços e os movimentos estão mais maduros, mas isso não significa que não brigarão para garantir suas demandas. Por isso vão às ruas e protestam. Talvez, os acontecimentos deste 30 de setembro levem o presidente a rever sua postura diante das reivindicações. Mesmo entre os aliados de Correa é corrente a constatação da falta de tato do presidente ao lidar com os movimentos. Por vezes ele é arrogante, intransigente e explosivo. Isso pode ser visto na reação com os policiais quando arrancou a gravata e sugeriu que o matassem ali mesmo. Estas são coisas que os movimentos sociais não aprovam e provocam faíscas durante as negociações.
O fato é que a peleia com trabalhadores armados é muito mais delicada e isso pode ser visto durante o episódio deste 30 de setembro. Parece bastante claro que os trabalhadores iniciaram o movimento como uma legítima defesa dos seus direitos, mas no avançar dos acontecimentos a ocasião se apresentou propícia para aqueles que confabulam contra o governo. E daí para uma tentativa de golpe foi um pulo. Até porque não é de hoje que a inteligência equatoriana denuncia o pagamento de informantes dentro da polícia por diplomatas estadunidenses. Eva Golinder também já denunciou que a USAID derramou no Equador só em 2010 mais de 30 milhões de dólares. O que precisa ficar explícito ao se analisar os fatos no Equador é que o inimigo nunca dorme. Ele aí está, vivo, tramando, infiltrando, ganhando pessoas, e sempre pronto para o bote. Por isso é que esta caminhada de mudanças dentro da ordem sempre é uma grande incógnita. Há que vigiar e cuidar... Vale sempre lembrar o exemplo do golpe em Honduras, o crescimento da direita na Venezuela, o ataque a senadora Piedad Córdoba. O inimigo está desperto e é perigoso!
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