segunda-feira, 29 de março de 2010

TRILOGIA SER OU NÃO SER (1) – PARTE III – EU SOU NEGUINHA? (2)

Li Travassos, de Florianópolis


Por que algumas pessoas têm o cabelo super cacheado e outras liso? Por que algumas pessoas têm olhos claros e outras têm os olhos mais horizontais (que chamamos comumente de olhos "puxados")? Por que as diferenças de cor de pele entre os seres humanos? Tudo isso tem uma resposta lógica.

Cabelos cacheados servem para "segurar" o suor, fazendo uma capa protetora contra o sol e o calor. Olhos claros se adaptam melhor à luminosidade dos reflexos do sol na neve, enquanto olhos escuros agüentam melhor a luminosidade provocada diretamente pelo sol. Já os olhos mais horizontais dos asiáticos devem-se justamente ao fato de a linha do horizonte ser mais extensa no Oriente. E, é claro, as diferenças de cor de pele são adequadas à força dos raios solares no lugar onde os ancestrais da pessoa nasceram – quanto mais forte o sol, mais escuro o tom de pele. Foi assim que o ser humano foi se adaptando ao clima, e sobreviveram os mais bem preparados para viver em cada região.

O homem branco (como já foi discutido na filosofia, cantado em verso e prosa, citado ad nauseam pelas feministas, e tudo o mais) nunca teve nenhum problema em escravizar outros seres humanos, matar, estuprar, destruir, tudo para ter mais poder. Por algum motivo – talvez uma maior languidez, causada justamente pelo calor excessivo – os povos africanos foram um alvo relativamente fácil para o desejo de dominação de europeus, estadunidenses e (não podemos esquecer), brasileiros. Brasileiros estes que, está bem, na época eram mais europeus que qualquer outra coisa...

Depois, foi preciso justificar o direito dos homens brancos sobre os negros trazidos da África: eles eram menos inteligentes, mais fracos e, pérola das pérolas da Igreja Católica: não tinham alma. Não se tratava, portanto, da dominação de um ser humano sobre outro, em uma época onde a escravidão já não era mais tão natural quanto nos primórdios da humanidade. Não! Se os negros não possuem alma, então não são seres humanos. Daí a horrível expressão que fica, felizmente, cada vez mais em desuso, quanto mais o racismo é considerado politicamente incorreto: "É um negro de alma branca". Seria, na época, mais ou menos como dizer: "Apesar de ser negro, ele tem alma." Pausa para quem quiser vomitar...

Voltando. Para os que pensam que apenas os seres mais ignorantes e desprovidos de informação são preconceituosos em relação às diferenças étnicas, me deixem contar que Charles Darwin, além de um rematado machista, também era um indiscutível racista. Com base nas teorias de um alemão chamado Karl Vogt, Darwin defendia haver uma grande diferença entre homens e mulheres, inclusive em relação à cavidade craniana, com a predominância do homem, claro. Mas esta diferença seria muito maior entre o homem e a mulher europeus, do que entre o homem e a mulher negros, pois neste último caso ambos seriam quase que igualmente inferiores (3).

Na verdade, a justificativa do preconceito, seja ele racial ou de gênero, é sempre inventada por alguém inteligentíssimo, capaz de buscar um "motivo" supostamente plausível para a discriminação. Depois, é só espalhar esta "justificativa" entre pessoas incapazes de pensar por si próprias, e pronto: está feito o fermento que vai crescer o bolo da intolerância.

Quer outro exemplo? Neto de um visconde, herdeiro rico e mimado cujos estudos levaram muito mais tempo do que deveriam, e cujos negócios próprios não davam certo, Monteiro Lobato acabou se tornando escritor. Como responsabilizava os empregados da fazenda que herdou por seu fracasso comercial, criou, no livro Urupês, de 1918, o ridículo personagem Jeca Tatu, que representa o caboclo brasileiro (mistura de branco com índio).

Segundo Lobato, o caboclo é preguiçoso ao extremo, e apenas por isso é pobre e não consegue nada na vida. Na verdade, seguindo a corrente da época, Lobato criticava a miscigenação, por considerar que o homem "branco puro" é superior aos mestiços de quaisquer etnias. Depois, ele teria supostamente se redimido, dizendo que o caboclo estava doente por falta de saneamento e higiene. Mas Jeca Tatu já estava impregnado no imaginário popular.

Antes de Lobato, Euclides da Cunha, em "Os Sertões", de 1902, defendia a mestiçagem, dizia que o mestiço é superior ao homem branco, e afirmava que:

O sertanejo é, antes de tudo, um forte!

E Gilberto Gil arremata:

Jeca Total deve ser Jeca Tatu
Presente, passado
Representante da gente no senado
Em plena sessão
Defendendo um projeto
Que eleva o teto
Salarial no sertão

Graças a Lobato e muitos outros, neste "país não racista" onde vivemos, os nordestinos são considerados preguiçosos, e são tão bem quistos no sudeste e no sul, quanto irlandeses na Inglaterra ou afrodescendentes nos Estados Unidos. E por falar em Estados Unidos, como há também muitos latinos por lá, igualmente mal recebidos e não desejados, os estaduinenses agora estão utilizando um termo errôneo para descrever mulheres e homens brancos que não têm origem latina: caucasianos.

Ora, caucasiano, a princípio, é alguém que nasceu ou vive no Cáucaso, que é a região entre o Mar Cáspio e o Mar Negro, onde ficam Rússia, Geórgia, Armênia, Turquia, Irã e Azerbaijão. Mas é preferível usar termos errados que ser confundido com a corja, não? E tudo dentro do politicamente correto, pois decerto iria pegar mal dizer que "o cara era branco e não latino"...

Mas o preconceito contra pessoas nascidas e criadas em determinada parte do mundo, ainda não é tão absurdo quanto o preconceito relacionado à simples cor de pele de alguém. Se você discrimina alguém porque teve uma educação específica, tem uma religião específica, você está se opondo a uma forma de pensar e de viver. É intolerância? Sem dúvida. É o principal motivo de guerras e de massacres estúpidos? Ninguém há de discutir. Mas que dizer de quem considera as pessoas negras todas iguais, não importa onde nasceram, cresceram, qual sua religião, sua posição política?

O ser humano branco tem tanta dificuldade em aceitar o diferente, que Cleópatra (do Egito que, só para lembrar, fica na África), foi retratada no cinema, e impingida para sempre em nosso imaginário, como tendo a pele branquíssima, os cabelos lisissímos e os impossíveis olhos violetas de Elizabeth Taylor! Cleópatra era negra, tinha cabelos crespos e era cheinha de corpo... Verdade que os egípcios, especialmente os nobres, raspavam os cabelos e usavam perucas. Mas daí à aparência da famosa atriz vai-lhe uma distância...

Jesus de Nazaré, que segundo consta nasceu em Belém, mas era filho de mãe nazarena, e foi criado em Nazaré, e por isso tem o nome desta cidade como sobrenome (o que era o costume na época), é retratado como loiro de olhos azuis! Só para lembrar: Nazaré fica em Israel, Jesus era de família judia, e os judeus já foram assassinados em massa, entre outros "motivos", por não serem loiros de olhos azuis! E Israel fica no Oriente Médio, ali, grudado com a África, portanto tem um clima parecido com o africano, do que podemos deduzir que o mais provável é que não só Jesus tivesse olhos e cabelos escuros, como a pele escura também!

No Brasil, a miscigenação está em todo lugar, em todas as famílias. Até porque as mulheres negras e índias foram vítimas constantes do estupro por parte do homem branco, já que o horror à diferença étnica costumava acabar no desejo sexual. Ou, como dizia a horrível marchinha de carnaval (feita por Lamartine Babo e Irmãos Valença em 1931) "Como a cor não pega, mulata... mulata eu quero teu amor". Pausa para vomitar de novo?

Quem pode dizer com certeza absoluta que não tem um pingo de sangue negro ou índio? Eu posso dizer com certeza absoluta que tenho sangue negro, embora costume ficar branquíssima no inverno. Sei porque tenho as gengivas negras, as mucosas negras, e uma boca linda que veio "de fábrica e de brinde", enquanto Marília Gabriela e outras tiveram que pagar uma boa grana por uma igual... Onde ficam as nossas mucosas? Bueno, basta dizer que não são visíveis com a pessoa vestida...

Quem é o meu ancestral filho da Mama África? Não sei, mas desconfio que o pai de meu bisavô Joaquim, que foi adotado pela família Travassos... Já a mãe da minha avó paterna, que viveu até meus 25 anos, parecia muitíssimo com os índios norte americanos... Por parte de mãe, é tutti buena gente, mas meu avô era descendente de italianos loiros, e minha avó de italianos morenos. Enfim, minha família é uma bagunça... Porque, felizmente, sou brasileira. Felizmente porque, ao menos na letra da lei, o Brasil é um país onde os preconceitos de gênero e raça são proibidos. É verdade que temos que desconstruir, todo dia, os preconceitos super arraigados, e por vezes inconscientes, que carregamos conosco, ou que os que nos circundam carregam.

Ah, você não tem preconceito nenhum? Meus parabéns! Eu, infelizmente não posso dizer o mesmo. Apesar de ser feminista de carteirinha, ainda tem um monte de coisas que eu acho aceitáveis nas mulheres, mas não nos homens, e vice versa. Não gosto de pensar assim, mas penso. Quanto ao preconceito étnico, tenho uma dificuldade imensa de aceitar e respeitar as pessoas que são oriundas de países onde os direitos da mulher não são respeitados sequer na lei. Ou seja, pessoas oriundas de países onde a superioridade masculina está na lei, e os direitos das mulheres são quase nulos. E isso inclui grande parte dos países orientais...

Enfim, tenho que trabalhar com minha intolerância todos os dias, tenho que me lembrar dela para não julgar tão duramente o intolerante ao meu lado, tenho que ter a coragem da autocrítica permanente. Já você que não tem este problema, pode dormir tranqüilo, não? E pode ficar tranqüilo também porque acaba de acabar a minha trilogia "ser ou não ser"...

1 - Palavras iniciais do conhecido monólogo do personagem Hamlet, de Shakespeare, na peça de mesmo nome.

2 - Nome de música de Caetano Veloso, que ele teria feito para um homem, mas que, em minha opinião, ficou imortalizada na voz de Cássia Eller. Na verdade, a música fala sobre gênero, e aqui eu vou falar sobre raça e etnia. Mas eu adoro a música e acho que a interrogação ficou perfeita...

3 - Ver o livro Inventando o sexo, de Thomas Laqueur, página 255.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que pena que acabou a trilogia,pois apesar de longo(mas não chato) o teus textos, foi bastante esclarecedor!
Juss

Li Travassos disse...

Juss, tem um monte de outros textos meus aqui, anteriores a trilogia, e outros virão, se este blog continuar aberto para mim como vem sendo...
Mas obrigada pelo comentário!
Um abraço, Li