segunda-feira, 22 de março de 2010

Pois eu fui à procissão

Por Elaine Tavares – jornalista

Eu sempre vou à procissão do Senhor dos Passos. Acho bonito de ver a expressão de fé de tanta gente. Essa coisa louca que leva as pessoas a se agarrem a uma esperança, um desejo de se ver acolhido e de acolher. Causa-me profunda emoção observar as velhinhas, com seus terços, a chorarem vendo passar a triste imagem de um deus derrotado, torturado, em sofrimento. É como se, naquela hora, homem e deus se reconhecessem iguais: impotentes diante do poder.

Pois neste domingo fui à procissão, esta que já acontece há 244 anos, aqui, na capital dos catarinenses. Foi em 1766 que a enorme imagem de Cristo sob a cruz chegou. Conta a lenda de que era para ir ao Rio Grande do Sul, mas o barco não conseguia avança e o capitão entendeu que era desejo do senhor ficar nas terras desterrenses. A imagem ficou e virou motivo de adoração. Desde então o povo acorre para lhe render graças.

Neste dia 21 de março mais de 20 mil pessoas saíram às ruas de Florianópolis para reverenciar aquele que morreu na cruz, torturado e violentado por romanos e judeus. O homem que pregava o amor, a igualdade, a partilha, o que afrontou o poder com seus desejos de transformação radical. Eu busquei o melhor lugar para observar as gentes e também para, igualmente, partilhar daquela dor infinda que imagino tenha vivido o Jesus histórico, virado homem, na tortura da cruz.

Então, do homem em sofrimento, curvado pelo peso da cruz, meus olhar fugiu para a expressão de uma quase heresia. Bem a frente da estátua, um grupo de pessoas segurava um pequeno toldo debaixo do qual ia o bispo Dom Murilo, em sua pompa episcopal, contratando com o manto humilde que levava o deus. Pisquei duas vezes. Era real. Quem levava o toldo eram aqueles que no dia-a-dia são os responsáveis diretos por tantos males que o povo tem de viver. Na frente iam o prefeito Dário Berguer e o governador Luis Henrique. Mais atrás, o vereador Gean Loureiro e a deputada Angela Amin, seguida do jornalista Moacir Pereira.

Ah, o poder e sua sede de dominação. Vale-se da fé, da desesperança, da dor humana e aparece, assim, em pompa, como se compartilhasse da mensagem histórica daquele que, caído, seguia-lhes. Meu coração se apertou e fui ficando para trás, enquanto a procissão passava lentamente. Pensei no código ambiental, aprovado para destruir, no plano diretor imposto pela prefeitura, no jornalismo cortesão, nos projetos nefastos, tudo vindo daquele pequeno toldo que abria a procissão. Arrogância, descaso, ilusão. “Corja, corja”, fiquei a resmungar. Então, do chão, ouvi um “ô, ôô...”. Olhei. Eram três homens, caídos como o da estátua, e, com eles, uma garrafa de pinga. Eles me observavam e perceberam que eu falava dos governantes. “Ninguém tá vendo eles, olha só... o povo olha pra Cristo”.

Os três bêbados, caídos no chão da praça, estavam certos. Ninguém os via. Os olhos das gentes se voltavam ao deus sob a cruz. Mulheres choravam, outras lhe jogavam beijos, as senhorinhas repassavam seus terços, os homens faziam o “pelo sinal”. Os olhares não se voltavam para o luxo em roxo da pompa igrejeira. O povo rendia homenagens ao seu deus. “Agora ele está assim (caído), mas no domingo de Páscoa ele renasce. Sempre renasce e fica com nós”, me dizia uma velhinha, pequena como um bibelô.

Eu deixei a procissão passar e fiquei ali, junto aos caídos, num silêncio reverente. Aqueles homens, que a sociedade nem nota, os que chamam de escória, foram, talvez, os únicos que verdadeiramente comungaram com Cristo naquela caminhada de dor. Eles, como o deus caído, sabem muito bem o que é estar sozinho na dor, excluído da vida digna, perdido da compaixão. No silêncio da praça vazia ficamos nós, irmanados no sentimento de que um dia, não será apenas “o senhor dos passos”, mas o passo das gentes, o povo unido e em rebelião que haverá de mudar este mundo. Os caídos se levantarão, as riquezas serão repartidas e a vida será plena. Coletivamente, passo-a-passo, avançaremos...

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