terça-feira, 2 de março de 2010

Trilogia ser ou não ser – Parte II – Será que ela é?

Li Travassos, de Florianópolis


Muita gente utiliza a palavra GÊNERO sem, contudo, saber o que significa exatamente. Em sentido amplo, ela define tanto o valor quanto as expectativas colocados sobre uma pessoa, em determinada sociedade, de acordo com seu sexo biológico. Estas expectativas são sobre os comportamentos, sentimentos, tarefas, e até mesmo vestimentas que cada sexo deve exibir. E tudo que aparece como diferente do esperado é questionado – e não raramente rejeitado. Além disso, a orientação sexual do indivíduo "rebelde" é logo questionada também.

Por exemplo, na horrível marchinha (cujo autor desconheço) que modifiquei e usei para nomear este texto, se diz que Zezé tem cabelo comprido. Cabelo comprido, na maioria das sociedades atuais, é considerado "coisa de mulher" (séculos atrás era símbolo de macheza...). Por isso, se Zezé é homem, MAS usa cabelo comprido, então ele deve ser homossexual. Será que ele é?

Quanto a mim, várias pessoas já "deduziram" que sou homossexual, em função de minhas posições radicais, minha tendência a defender o que penso com unhas e dentes... Já me acusaram de pensar demais, falar muito alto, e outras coisas que as mulheres não fazem. Ou não deveriam fazer, na cabeça de alguns... Para completar, eu não gosto de unhas compridas, não uso esmalte (porque é péssimo para o meio ambiente), não uso brincos (para poder "meter a boca" em quem usa piercing)... A conclusão é que sou homossexual. Sou?

Respondo parafraseando o personagem (foto acima) do filme Hair (Milos Forman, 1979), sobre o movimento hippie nos Estados Unidos, na época da guerra do Vietnã. Ao ser preso, o rapaz não deixa cortarem seus longos cabelos, levando à velha conclusão de que só pode ser homossexual. Ao ser questionado sobre isso, responde: "Se eu encontrasse Mick Jagger na minha cama, eu não o expulsaria de lá... Mas não, eu não sou homossexual". Quanto a mim, se eu encontrasse Zélia Duncan na minha cama eu não a expulsaria de lá... Mas não, eu não sou homossexual.

Então, se uma pessoa homossexual não é aquela que age de forma diferente daquilo que é esperado para seu sexo, nem quem tem uma aparência diferente daquilo que é aceito para seu sexo, o que define a homossexualidade? Em linhas gerais, homossexual é quem, na vida adulta ², sente desejo sexual por pessoas do mesmo sexo e, normalmente, busca manter relações sexuais e afetivas com estas pessoas. Digo normalmente porque alguns sentem o desejo, mas não buscam as relações, seja por vergonha, seja por medo, seja por culpa.

E porque todos estes sentimentos negativos em função de um simples desejo? Ora, todo mundo sabe que a homossexualidade ainda é muito rejeitada socialmente, e desperta muitos preconceitos. O que a maioria das pessoas não imagina é de onde vem esta rejeição e o que gera estes preconceitos. Em minha opinião, toda a negatividade que se coloca sobre a homossexualidade é uma questão de gênero. Mais claramente, está relacionada à profunda desvalorização da mulher através dos séculos.

Como assim? A mulher é considerada muito inferior ao homem. Assim, o homem que "se equipara" à mulher, tendo relações sexuais com outro homem, ou imitando os trejeitos de uma mulher, está abrindo mão de um poder e valor com o qual ele nasceu. E isso é considerado ridículo. Homens e meninos que parecem mulheres são vítimas de chacota, são chamados de Maricas, Sisi, etc.

Há uma tendência a achar particularmente ridículo um homem vestido de mulher. Principalmente se ele não for um travesti. Por isso, os blocos de homens vestidos de mulher fazem tanto sucesso no carnaval: este é um período onde há uma licença para o ridículo... Fora da "festa da carne", há até casos absurdos de pessoas que, em grupo, seguram um homem (homossexual ou não) e, na marra, o vestem de mulher, colocam batom... tudo como uma forma de humilhá-lo, vingar-se dele. Nossas novelas adoram mostrar uma cena assim vez ou outra... E o pior é que a agressão costuma vir dos personagens considerados "mocinhos"...

Mas por que a mulher "muito masculina" ou vestida de homem, raramente é considerada engraçada? Por que ela desperta raiva, e não risos? Começa pelo fato de que as mulheres se apropriaram das roupas dos homens faz tempo. Mas mesmo que haja uma situação flagrante de travestismo, a mulher que quer se parecer com um homem, ou que participa de uma relação sexual com outra mulher "de forma ativa", desperta muito ódio. Porque, ao contrário do homossexual do sexo masculino, ela está querendo ter um poder e um valor que não tem. Com o qual não nasceu. Por isso, desperta ódio por parte dos homens, que se sentem ameaçados. A cena terrível de estupro no filme "Meninos não choram" (Kimberly Peirce, 1999) é um bom exemplo disso. Mas a mulher muito masculina também desperta ódio em algumas mulheres, que não admitem que alguém do seu sexo não se adapte ao estereótipo feminino de "sedução e submissão" ao qual elas mesmas estão amarradas.

Também é por este motivo, pela relação que existe entre gênero e homossexualidade, que o homem homossexual visto como "ativo" na relação, sequer é considerado homossexual (ou bissexual). O mesmo vale para a mulher homossexual "passiva" (a sandalinha que se relaciona com a sapatão). Em Florianópolis, isto é particularmente forte: o homem que "come" outro homem se considera um baita macho... Jamais irá se pensar como bissexual. Eu mesma já fui considerada homossexual pelos pais de uma amiga (porque "mulher não fala assim, não pensa deste jeito"...), e eles acreditavam que nós duas tínhamos um caso. Mas é claro que ela não era homossexual, só eu... Que lamentável!

Outra questão que precisa ser levantada, é o fato de algumas pessoas chamarem a orientação sexual de opção sexual. Considerando todo o preconceito que sabemos que existe sobre os homossexuais, quero crer que muito pouca gente iria escolher ser homossexual, se realmente pudesse escolher. As pessoas podem escolher se vão viver de acordo com seus desejos sexuais, mas não podem escolher o que vão desejar. Desejar sexualmente homens ou mulheres é igual a preferir pessoas loiras ou morenas, com mais ou menos pêlos, mais altas ou mais baixas, etc. Até mesmo as escolhas repetitivas por homens violentos, por alcoólatras, por mulheres "castradoras", por pessoas pouco afetivas, por alguém menos inteligente, também fazem parte de nossa orientação sexual. Ou seja, as características físicas (incluindo o sexo) e psíquicas das pessoas que vão despertar nosso desejo são pré-determinadas.

Mas antes que você decida fazer parte do Bloco da Gabriela ("Eu nasci assim, eu cresci assim... vou ser sempre assim..."), vale dizer que todas estas questões são definidas pela nossa relação com nossos pais, ou com as pessoas que fizeram estes papéis em nossas vidas. Para alguns, dizer que a homossexualidade é inata é uma forma de garantir que não se trata de uma doença. Mas é o mesmo que alguém dizer que já nasceu gostando de mulheres loiras, ou de homens peludos... Não dá. Esta linha de pensamento que pretende que características de personalidade sejam inatas visa, ao fim e ao cabo, tirar da sociedade (e conseqüentemente da família) toda a responsabilidade pelos sujeitos que ela produz.

Agora, que o Conselho Federal de Psicologia tenha que baixar uma resolução para proibir os psicólogos de considerarem a homossexualidade uma doença (e oferecerem tratamento para a mesma) e que tenhamos que lutar por uma lei que proíba a expressão do preconceito contra os homossexuais (assim como que tenhamos que ter uma lei que proíba a expressão do racismo), é algo que me deixa injuriada com a espécie humana.

E qual o alcance de uma lei? Ela não pode mudar os sentimentos e pensamentos das pessoas. Poderá uma lei impedir, por exemplo, que um pai ou uma mãe expulsem o filho ou filha com mais de 18 anos de idade de casa, ao descobrir que ele/ela é homossexual? Porque isso acontece até hoje, não tenha dúvidas. O que levaria um pai ou mãe a agir deste jeito? Vergonha de ser apontado como genitor de um homossexual? Medo de ser considerado "culpado"? Ou a decepção porque não vai ter netos?

Com relação a esta última questão, vale ressaltar que, quando se quer, há muitas maneiras de se ter um filho, além da relação sexual heterossexual. Mesmo que a adoção de crianças por casais homossexuais tenha sido proibida no Brasil, há como um dos dois adotar e o outro ajudar a criar, existe a inseminação artificial, e várias outras "modernidades".

Interessante é que, apesar da intolerância da maioria, na luta entre "civilização e barbárie", os homossexuais podem ser considerados "mais civilizados" que os hetero, justamente por não escolherem seu par sexual de acordo com o instinto de preservação da espécie. Porque não vamos nos iludir: a maioria dos homens hetero ainda sente maior desejo por mulheres jovens e bonitas (leia-se com seios fartos e quadris largos), ou seja, com características de boas procriadoras. E a maioria das mulheres hetero ainda se sente mais atraída por homens bem sucedidos, ou fortes, ou super inteligentes, que seriam bons provedores para suas crias ³.

Há mulheres que, como nos tempos primitivos, ainda se acham no direito de escolher o macho mais poderoso que seus atributos de fêmea podem atrair, e engravidar dele, quer ele queira, quer não. É uma forma de garantir o próprio futuro, contando com as leis que obrigarão o sujeito a sustentar o filho para sempre. Foi o que fez a brasileira que engravidou de Mick Jagger, acabou com o casamento do cara, e arranca dele uma verdadeira fortuna por mês, à guisa de pensão para o filho. Fala aí, Mick, você não preferia ter transado com o moço loirinho do Hair? Hein, hein?

Em breve, o terceiro e último capítulo da trilogia "Ser ou não ser". Falar nisso, que estrambótico uma pessoa deixar seu comentário em japonês, chinês, ou sei lá que língua oriental no meu primeiro texto da trilogia, não? Nem o nome da criatura dá para saber. Sou defensora do direito de expressão, mas quem não diz nem o nome, e não se expressa para todo mundo entender, sinceramente, acho muita empáfia. Poderia até conseguir uma tradução, mas me nego...


1. Palavras iniciais do conhecido monólogo do personagem Hamlet, de Shakespeare, na peça de mesmo nome.

2. Experimentar sua sexualidade com pessoas do mesmo sexo na infância ou adolescência não conta.

3. Quanto a mim, ficaria bem satisfeita com um sujeito que tivesse o corpo do Humberto Martins e o cérebro do Chico Buarque...

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