terça-feira, 23 de junho de 2009

O jornalismo e o fogo


Míriam Santini de Abreu

Comemoramos o aniversário de 65 anos de minha mãe (ela, acima, com os três filhos) em uma chácara em Caxias do Sul no domingo passado. No sábado, noite fria, típica da Serra Gaúcha, eu, ela e meu irmão mais novo, o Marcos, mais os amigos dele, estávamos abrigados em um galpão, o fogo crepitando na lareira.
Eu e a mãe espichadas em uma cadeira; os amigos do Marcos jogando canastra, e o Marcos assanhando pinhões direto no fogo. Ele jogava as sementes sobre uma chapa, depois as tirava com uma pá, depositava numa tábua de madeira e abria com um pedaço de lenha.
A certa altura aquilo me hipnotizou. O fogo imemorial, o gesto imemorial de nele preparar o alimento, as vozes dos guris, o calor entorpecente e, lá fora, a Via Láctea riscando o céu na noite estrelada mais linda que já vi. Pensei que poderíamos estar a girar na galáxia, dentro daquele galpão, como se fôssemos filhos errantes de um planetinha de madeira.
Falava ontem, com a jornalista Elaine Tavares, sobre a dificuldade das pessoas para entender a diferença entre liberdade de expressão e jornalismo. Pensei naquele galpão, naqueles gestos singulares: a lareira acesa remetia à descoberta, em tempos primitivos, do poder de vida e de morte do fogo. Os pinhões são frutos de uma árvore, a araucária, cuja utilização ajuda a contar uma história de destruição, de poder e resistência popular, como foi a Guerra do Contestado em Santa Catarina; os objetos para cozinhar o pinhão, todos resultado de trabalho social na maioria das vezes mal-remunerado; e o meu encanto, o encanto da raça diante do fogo, das entrelas, encanto tão entorpecente que eu só movia os músculos para levantar da cadeira e apanhar uns pinhões.
Liberdade de expressão é poder contar isso. Jornalismo é interpretar o que aqueles gestos imemoriais e singulares, num galpão-galáxia, significam na vida de quem estava lá e o que neles há de universal, de porção simbólica e concreta da experiência humana, de repetição e possibilidade de transformação. Interpretação de um fato pelo que nele há de ligação com todos os outros fatos e com a realidade. Este é o nosso fazer, fazer dos jornalistas, a nossa contribuição para o trabalho social.

2 comentários:

Anônimo disse...

é isso aí miriam... Por isso o jornalismo é ao mesmo tempo técnica e mágica...

elaine

Anônimo disse...

Miriam! Adorei o texto e juro que me deu uma vontade doida de estar perto de um fogão a lenha, curtindo o estalar de pinhões e filosofando ao sabor de um bom vinho... Não quero crer que essa injustiça perdure... Lutar e acreditar: parabéns prá vocês que fazem sua parte!! Bjs, Val