Por Míriam Santini de Abreu, jornalista
Bem sabem os que viajam como passageiros: é intenso, às vezes, o desejo de frear a chegada, de se deter, de interromper o fluxo de espaço e tempo para agarrar um pensamento fugaz, esmiuçar uma paisagem, sentir-se inacessível. É assim que fico, um pouco imóvel, quando das janelas cerradas espio a vida que passa na SC-302 entre Rio do Sul e Alfredo Wagner, em Santa Catarina. Imóvel e comovida.
O longo trecho de estrada é asfalto sobre terra arada. Todos os meus sentidos se dobram diante de florestas preservadas, como ainda há na Serra do Mar Catarinense - na reserva florestal de Caçador vi uma araucária que deve ter meio século. Mas são igualmente belas essas culturas agrícolas que se espraiam nas pequenas propriedades catarinenses.
Bem sabem os que viajam como passageiros: é intenso, às vezes, o desejo de frear a chegada, de se deter, de interromper o fluxo de espaço e tempo para agarrar um pensamento fugaz, esmiuçar uma paisagem, sentir-se inacessível. É assim que fico, um pouco imóvel, quando das janelas cerradas espio a vida que passa na SC-302 entre Rio do Sul e Alfredo Wagner, em Santa Catarina. Imóvel e comovida.
O longo trecho de estrada é asfalto sobre terra arada. Todos os meus sentidos se dobram diante de florestas preservadas, como ainda há na Serra do Mar Catarinense - na reserva florestal de Caçador vi uma araucária que deve ter meio século. Mas são igualmente belas essas culturas agrícolas que se espraiam nas pequenas propriedades catarinenses.
E tão belas quanto elas são as mulheres, os homens e as crianças que vislumbro de passagem, entre um quilômetro e outro. Ora os vejo ajoelhados, de bermuda, chinelos e boné, consertando um instrumento qualquer, ora estão na boléia de um trator que cruza o campo; em seguida espio uma mulher que varre a varanda ou bate com força o tapete para espantar o pó, e mais adiante, na beira da estrada, uma mocinha de chapéu de palha levando pela mão um piá.
Constrange-me um tanto a minha mirada invasiva, desavergonhada, que captura esses instantes íntimos de vida de outro. Comove-se saber que a vida deles e a minha depende do caldo da terra, do vingar das sementes, repousada aí a possibilidade de pagar o crédito agrícola, o empréstimo para o trator, os hectares de lavoura comprados com muita economia. E há as casas, umas de alvenaria, outras de madeira bem velha, como as da minha falecida vó Antônia, tão velhas que parecem ser a sombra cinzenta de uma matéria espessa que ali apenas deixou vestígios. Gris.
Mas se me constranjo, é só um tanto, porque sei que estamos, eu e eles, à espera, à procura, e olhos, ouvidos, mãos, o corpo todo, denunciam esse eterno tatear pelo vir-a-ser, pelo vir-a-estar. E assim, faminta, espicho o pescoço para lançar minhas redezinhas de íris, pupila, cristalino, poéticos nomes para designar o que me permite depois, por horas a fio, trazer à lembrança essas paisagens amadas. E sempre evocar uma frase que li em algum lugar, algo assim: "E sempre ouço às minhas costas a marcha do tempo que passa adiante". E ficamos – eu e eles – em meio aos bramidos desta marcha, deste tempo.
E se tudo isso não bastasse, em setembro florescem nas terras catarinenses, nos canteiros das casas, como em todos os lugares onde se permite à natureza despertar, os olhos-de-boneca. Dendrobium nobile. Floradas quase ofensivas, de tão cativantes, gotejando das árvores e arbustos, deixando-me completamente enevoada. Orquídea feiticeira, esta, que me provoca tal turbação a ponto de me deixar à distância, temerosa de seus efeitos, temerosa dos delicados labelos lilases e roxos, condão vegetal que me arrebata. Os olhos-de-boneca parecem se agarrar aos troncos nos quais se sustentam. Mera aparência. Os troncos é que se agarram aos cachos delicados, para pulsarem ainda mais belos nessa extraordinária e fugaz florada de Primavera.
Constrange-me um tanto a minha mirada invasiva, desavergonhada, que captura esses instantes íntimos de vida de outro. Comove-se saber que a vida deles e a minha depende do caldo da terra, do vingar das sementes, repousada aí a possibilidade de pagar o crédito agrícola, o empréstimo para o trator, os hectares de lavoura comprados com muita economia. E há as casas, umas de alvenaria, outras de madeira bem velha, como as da minha falecida vó Antônia, tão velhas que parecem ser a sombra cinzenta de uma matéria espessa que ali apenas deixou vestígios. Gris.
Mas se me constranjo, é só um tanto, porque sei que estamos, eu e eles, à espera, à procura, e olhos, ouvidos, mãos, o corpo todo, denunciam esse eterno tatear pelo vir-a-ser, pelo vir-a-estar. E assim, faminta, espicho o pescoço para lançar minhas redezinhas de íris, pupila, cristalino, poéticos nomes para designar o que me permite depois, por horas a fio, trazer à lembrança essas paisagens amadas. E sempre evocar uma frase que li em algum lugar, algo assim: "E sempre ouço às minhas costas a marcha do tempo que passa adiante". E ficamos – eu e eles – em meio aos bramidos desta marcha, deste tempo.
E se tudo isso não bastasse, em setembro florescem nas terras catarinenses, nos canteiros das casas, como em todos os lugares onde se permite à natureza despertar, os olhos-de-boneca. Dendrobium nobile. Floradas quase ofensivas, de tão cativantes, gotejando das árvores e arbustos, deixando-me completamente enevoada. Orquídea feiticeira, esta, que me provoca tal turbação a ponto de me deixar à distância, temerosa de seus efeitos, temerosa dos delicados labelos lilases e roxos, condão vegetal que me arrebata. Os olhos-de-boneca parecem se agarrar aos troncos nos quais se sustentam. Mera aparência. Os troncos é que se agarram aos cachos delicados, para pulsarem ainda mais belos nessa extraordinária e fugaz florada de Primavera.
E que aqui se diga: só Florbela Espanca poderia, nos seus versos que fazem o coração arder, palavrear o que a chegada de setembro, no Sul do mundo, inspira em todos os seres. Rendamo-nos à portuguesa.
http://www.laurapoesias.com/poetas/florbela_espanca_primavera.htm
Um comentário:
V. devia ler os escritores barrocos, Míriam. Lezama Lima, por exemplo, porque há em ti uma escritora barroca que se insinua serpente nas linhas da pérola.
A vegetação dos ventos, a música microtonal de Bach, a respiração das velhas virgens.
"Estradas e olhos-de-boneca"
está supimpa, Míriam, favo sujando lábio...
Fernando Karl
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