terça-feira, 25 de setembro de 2007

Estradas e olhos-de-boneca


Por Míriam Santini de Abreu, jornalista

Bem sabem os que viajam como passageiros: é intenso, às vezes, o desejo de frear a chegada, de se deter, de interromper o fluxo de espaço e tempo para agarrar um pensamento fugaz, esmiuçar uma paisagem, sentir-se inacessível. É assim que fico, um pouco imóvel, quando das janelas cerradas espio a vida que passa na SC-302 entre Rio do Sul e Alfredo Wagner, em Santa Catarina. Imóvel e comovida.
O longo trecho de estrada é asfalto sobre terra arada. Todos os meus sentidos se dobram diante de florestas preservadas, como ainda há na Serra do Mar Catarinense - na reserva florestal de Caçador vi uma araucária que deve ter meio século. Mas são igualmente belas essas culturas agrícolas que se espraiam nas pequenas propriedades catarinenses.
E tão belas quanto elas são as mulheres, os homens e as crianças que vislumbro de passagem, entre um quilômetro e outro. Ora os vejo ajoelhados, de bermuda, chinelos e boné, consertando um instrumento qualquer, ora estão na boléia de um trator que cruza o campo; em seguida espio uma mulher que varre a varanda ou bate com força o tapete para espantar o pó, e mais adiante, na beira da estrada, uma mocinha de chapéu de palha levando pela mão um piá.
Constrange-me um tanto a minha mirada invasiva, desavergonhada, que captura esses instantes íntimos de vida de outro. Comove-se saber que a vida deles e a minha depende do caldo da terra, do vingar das sementes, repousada aí a possibilidade de pagar o crédito agrícola, o empréstimo para o trator, os hectares de lavoura comprados com muita economia. E há as casas, umas de alvenaria, outras de madeira bem velha, como as da minha falecida vó Antônia, tão velhas que parecem ser a sombra cinzenta de uma matéria espessa que ali apenas deixou vestígios. Gris.
Mas se me constranjo, é só um tanto, porque sei que estamos, eu e eles, à espera, à procura, e olhos, ouvidos, mãos, o corpo todo, denunciam esse eterno tatear pelo vir-a-ser, pelo vir-a-estar. E assim, faminta, espicho o pescoço para lançar minhas redezinhas de íris, pupila, cristalino, poéticos nomes para designar o que me permite depois, por horas a fio, trazer à lembrança essas paisagens amadas. E sempre evocar uma frase que li em algum lugar, algo assim: "E sempre ouço às minhas costas a marcha do tempo que passa adiante". E ficamos – eu e eles – em meio aos bramidos desta marcha, deste tempo.
E se tudo isso não bastasse, em setembro florescem nas terras catarinenses, nos canteiros das casas, como em todos os lugares onde se permite à natureza despertar, os olhos-de-boneca. Dendrobium nobile. Floradas quase ofensivas, de tão cativantes, gotejando das árvores e arbustos, deixando-me completamente enevoada. Orquídea feiticeira, esta, que me provoca tal turbação a ponto de me deixar à distância, temerosa de seus efeitos, temerosa dos delicados labelos lilases e roxos, condão vegetal que me arrebata. Os olhos-de-boneca parecem se agarrar aos troncos nos quais se sustentam. Mera aparência. Os troncos é que se agarram aos cachos delicados, para pulsarem ainda mais belos nessa extraordinária e fugaz florada de Primavera.

E que aqui se diga: só Florbela Espanca poderia, nos seus versos que fazem o coração arder, palavrear o que a chegada de setembro, no Sul do mundo, inspira em todos os seres. Rendamo-nos à portuguesa.

http://www.laurapoesias.com/poetas/florbela_espanca_primavera.htm


Um comentário:

Anônimo disse...

V. devia ler os escritores barrocos, Míriam. Lezama Lima, por exemplo, porque há em ti uma escritora barroca que se insinua serpente nas linhas da pérola.

A vegetação dos ventos, a música microtonal de Bach, a respiração das velhas virgens.

"Estradas e olhos-de-boneca"
está supimpa, Míriam, favo sujando lábio...

Fernando Karl