Por Míriam Santini de Abreu, jornalista
Tempos atrás falava-se, quase com reverência, em “últimas áreas virgens”, “áreas intocadas pelo homem”, “paraísos desabitados”, na linha do “mito moderno da natureza intocada”, título de um livro de Antonio Diegues. Os citadinos em geral não abrem mão dos benefícios da tecnologia, mas também acalentam o sonho imemorial da vida longe das pressões e exigências da civilização.
Sobre isso o geógrafo Milton Santos faz uma reflexão instigante: ele diz que paradoxalmente é o movimento ecológico que completa o processo de desnaturalização da natureza, ao dar a ela um valor. E digo: o valor de preservar. Isso porque o mais inóspito rincão da Amazônia, supostamente intocado, pode ser alvo de um projeto de preservação pensado fora dele, como, por exemplo, nos escritórios de uma empresa de São Paulo. E para tal projeto podem ser canalizados alguns milhões em recursos. A natureza é transformada em objeto a partir de um conjunto de intenções sociais.
Tal reflexão enriquece a leitura do livro “Patagônia Vendida: los nuevos dueños de la tierra”, do jornalista argentino Gonzalo Sánchez (Marea Editorial, 2006, 280 páginas). O jornalista revela como figuras conhecidas no mundo dos negócios, como Ted Turner, Joseph Lewis e os Benetton, compram milhares de hectares na Patagônia para lucrar com empreendimentos agropecuários e turísticos, além de se apropriarem de paisagens – devidamente cercadas – e de reservas estratégicas de água e terra. Tudo respaldado pelo poder público e sob a chancela do discursinho da preservação ambiental e do desenvolvimento sustentável.
Na Patagônia argentina, tal como na Ilha da Magia brasileira, Florianópolis, políticos de diferentes instâncias de poder mudam a legislação conforme o maestro que toca a música. Basta modificar o artigo de um decreto ali, parte do texto de uma resolução aqui, e o valor da terra cai ou sobe de acordo com a conveniência. No caminho, amassados pela burocracia e pela vista grossa de autoridades, ficam os interesses dos indígenas, das populações pobres, de gente que viu bisavô, avô e pai crescerem num determinado lugar, mas que precisa sair dele por força de leis oportunistas.
Sánchez fez um trabalho primoroso de investigação, que se desdobra ao longo de quatro capítulos que contam a história pessoal de cada ricaço e a forma pelo qual fincaram bandeira e milhões “ao sul do Sul, onde termina o mundo e começa o paraíso”. Todos têm discursos prontos para justificar os próprios interesses. É ilustrativo o caso da família Benetton, dona da famosa grife italiana que, para evitar desgastes à própria imagem depois de disputa por terras com uma família de mapuches argentinos, recebeu-os em Roma graças a uma desastrada interferência do Nobel Adolfo Pérez Esquivel. Foi apenas um circo montado que acendeu holofotes para iluminar a benevolência da empresa.
Os novos donos da Patagônia usam estratégias parecidas com aquelas usadas por donos de outros ditos paraísos: compram as terras a bom preço, contratam mão-de-obra local, reformam a escola, doam veículos e outros espelhinhos tecnológicos para a comunidade e logo parecem a solução para todos os problemas não-resolvidos há décadas pelas autoridades. Enredo irritantemente banal, mas que provoca seus efeitos.
E, como em todo o enredo sobre a dita preservação da natureza, neste há Douglas Tompkins, um dos gurus da chamada Ecologia Profunda, milionário convertido em ambientalista, amigo dos Menem e dos Kirchner. Ele faz suas pregações acomodado em uma estância encravada na Patagônia, onde possui 900.000 hectares de terras na parte chilena e argentina. E porque faz o que faz? – questiona o jornalista. E Tompkins responde: no capitalismo, onde a maioria perde, ele ganhou, e precisa devolver ao mundo o que o mundo deu a ele. Para isso elegeu a “conservação da biodiversidade”. E arremata: “Y sinceramente me da más placer donar la plata que ganarla”. E assim caminha a Patagônia, revela o livro: um bairro privado, destino turístico cada vez mais exclusivo, enorme depósito de riquezas e belezas naturais disponível para quem pode pagar.
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